Em janeiro deste ano, Paloma Roberta Santos, uma jovem de 15 anos do Recife, pisou, pela primeira vez na vida, em um estúdio. Nada muito pomposo. Não havia isolamento acústico e a voz precisava ser captada de dentro de um guarda-roupa para evitar os barulhos da rua. Dono do estúdio caseiro, o produtor musical DG se comoveu com o sonho da menina, que queria ser MC mas não podia bancar os R$ 250 cobrados pela gravação de uma música. Decidiu ajudá-la. Gravou e arranjou uma música sem cobrar nada. Sentado em seu estúdio, agora reformado, com revestimento acústico e melhor equipado, DG me conta que naquele dia, em certo tom de brincadeira, pediu a iniciante MC que não deixasse de lado sua raíz pernambucana: “Se tu estourar com essa música aí, não esquece de dizer lá fora que é bregafunk, não! Aí o pessoal vai querer gravar no nosso estilo, que só a gente daqui sabe fazer”.
Paloma deixou o estúdio de DG com “Envolvimento”, que dias depois tomou o Brasil, tornando-se o hit do Carnaval e a transformando-a em MC Loma, a primeira artista de Pernambuco a ter um clipe seu na produtora KondZilla. O seu sucesso espontâneo e repentino não apenas abriu as portas para uma carreira em âmbito nacional, como pautou no resto do Brasil o movimento musical que domina as periferias do Recife há cerca de uma década: o bregafunk, aquele que DG a pedira para não esquecer.
Como o nome indica, o bregafunk é um enlace entre o cancioneiro romântico do Nordeste (o brega) e o funk que nasceu na cidade do Recife. Mas não é só uma soma mecânica de estilos musicais. O surgimento do gênero envolve um emaranhado de motivos sociais, econômicos e estéticos. Para entender a história, é preciso voltar aos meados dos anos 1980, quando equipes como a Milkshake, Mastermix e DJs como Ricardinho e Ivanildo, entre vários outros, sacudiam festas com milhares de pessoas na capital pernambucana. Essas festas duraram até o início dos anos 2000, sendo as mais famosas o Baile do Clube Rodoviário, também chamado de Baile do Rodó, (no bairro da Imbiribeira, Zona Sul da cidade) e o Baile do Téo (em Casa Amarela, Zona Norte).
Além dos DJs e equipes de som, esses bailes passaram a abrir espaços para shows e concursos de MCs locais. Foi aí que desabrocharam os primeiros Mestres de Cerimônia da cidade, tendo como referência os primeiros sons de MC Galo, DJ Marlboro, Cidinho e Doca, MC Frank, Tikão e outros pioneiros do funk carioca.
“Nóis ia pro baile e sempre tinha um que ia no palco representar o bairro, e eu sempre cantava pra representar o meu bairro, desde pequeno, na rua”, diz o veterano MC Leozinho, que canta desde os 16 anos. “Eu cantava os funks do Rio na época. ‘Rap das Armas’ e vários outros que na minha voz o povo ficava abismado, porque eu era pequeno. Nessa brincadeira, os caras me chamaram prum baile. Chegou lá me botaram pra cantar pela primeira vez. No outro dia ficou todo mundo comentando”.
Os bailes do Recife eram divididos em lado A, lado B e lado C, reunindo diferentes galeras que representavam seus bairros e rivalizavam com outras comunidades no meio do corredor — uma disputa que envolvia também tráfico de drogas e, na ausência de grandes facções, torcidas organizadas dos times de futebol da cidade, e foi ficando mais pesada na virada da década de 1990 para os anos 2000.
“A galera incorporava mesmo. Dizia assim: eu represento aquilo ali com meus dentes e minhas unhas”, pontua o MC Elloco, outro nome importante do bregafunk que esteve presente nos dias dos bailes de galera. “Antes do baile começar, lá fora, era briga. Lá dentro era briga. E quando acabava era briga também”, lembra o MC Feru, que permaneceu no pancadão. Um dos organizadores da PV (um dos maiores bondes de Pernambuco), Mozart diz que as brigas ultrapassavam até o ambiente do baile: “Em qualquer canto era conflito. Só de reconhecer um cara de um bonde inimigo era conflito, não importava se a pessoa ia levar desvantagem ou não”.
São exatamente esses conflitos que MC Shevchenko aborda em “Melô do Cardinot”, uma música emblemática dessa fase do funk pernambucano. O beat e a levada das rimas ainda são tentativas do som carioca, mas as letras retratam as tretas locais que rodeavam os MCs. Shevchenko diverte-se ao comentar o passado, mas também não deixa de mostrar uma certa tristeza ou arrependimento no tom de voz. “A gente incentivava morte, né, mano. Era muita desavença de nós mesmos. A gente não podia chegar em bairro nenhum porque a gente fazia apologia a um bairro brigar com outro, a um amigo brigar com outro, porque a gente dizia que um era melhor que o outro. A gente fazia tipo uma guerra, guerra de galera. O bagulho ficou tão doido que a gente ia pro shopping pra brigar. Vê que loucura!”.
Apesar de estarem imersos e de fato curtirem toda a cultura dos bailes de corredor, os MCs entendiam que a violência entre as galeras impossibilitava o futuro do funk. Não havia possibilidade de expansão, não era possível desenvolver uma carreira artística cantando apenas pra vizinhança. Leozinho foi um dos que percebeu esse momento e tentou cavar brechas. “Eu meio que não podia ir pra todos os cantos, porque eu era do lado de cá [Maranguape, bairro de Paulista] e tinha a rivalidade dos bairros”, diz ele, que chegou a ter um amigo baleado e morto ao seu lado.
Seguindo os conselhos do amigo MC Gera, Leozinho buscou “cantar para todo mundo”. Não somente para um único bairro ou uma galera, mas para todos, independente dos conflitos entre lado A, B e C. Um funk que pudesse agregar todo o baile. Assim surgiu em 2003 o “Rap da Cyclone”, sua primeira música e um clássico do pancadão nordestino. “É o funk que eu falo de todas as comunidades, de todas as galeras, todos os bairros, a galera da pichação que ia pro baile funk”, define. “Até hoje a galera pede no show”.
Curiosamente a música também foi um sucesso em Belo Horizonte, onde existe uma cena fortíssima da vertente do “funk consciente”. Leozinho soube disso apenas recentemente, através de Alex Gusmão de Andrade, o pai e empresário do MC mineiro Yuri BH. “Há uns 4 ou 5 anos o filho dele veio fazer um show aqui e ele ficou no meu apartamento. Ele disse: ‘Cara, se eu te encontrasse há uns 3 anos a gente tava rico até hoje’. Ele disse que essa música só não tocou mais que o ‘Rap da Felicidade’ lá em Belo Horizonte, só que ninguém sabia quem eu era, a turma achava que eu era do Rio e me chamava só de ‘o cara da Cyclone’”, narra Leozinho, que também ficou conhecido por músicas que criticavam a condição do sistema carcerário — “Cenário Louco” é como a “Diário de um Detento” pernambucana.
Mas o sucesso de “Rap da Cyclone” não foi o suficiente para promover a união entre as comunidades. Pelo contrário, a violência foi escalonando, provocando intervenções policiais cada vez mais pesadas e brutais. Guel, 39 anos, é um dos altos membros do bonde da PV. Curte baile funk desde os 11 anos e diz que nessa experiência viu “tudo o que presta e o que não presta” do mundo funk. Durante nossa conversa no Baile da Paz (que busca reviver os bailes e promover a conciliação das galeras rivais), ele conta que “vários amigos foram sequestrados” pela polícia na saída dos bailes e nunca mais retornaram.
“Se eu for te contar é muito, centenas. E isso só do bonde da gente! Em saída de baile a polícia sequestrava e matava com raiva, achando que tu era da comunidade e tinha que pagar arrego pra eles. No final eles te sequestravam e morreu muito cara assim, como também morreu vários em guerra entre comunidades, envolvendo tráfico e várias coisas”, explica, secamente.
Leozinho, por sua vez, recorda o dia em que o icônico Baile do Rodoviário foi fechado, por volta de 2004, e enfraqueceu toda a cena funk, colocando o último prego no caixão dos bailes da cidade. “O baile acabou numa operação com mais de 100 policiais. Chegou polícia de tudo: Civil, PM, Bptran (Batalhão de Polícia de Trânsito do Recife), Bombeiros… Era a final do concurso de MCs, tava eu e MC Taz. Aí o baile acabou no meio, a polícia levou todo mundo. Os de menor foram pra GPCA (Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente) e tal, só saiu no outro dia. Aí acabou o Baile do Rodoviário. Ainda ficou rolando o do Téo, mas o Rodoviário era o mais conceituado”.
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