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terça-feira, 2 de abril de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Poema maldito

Escrevendo sobre Poesia e História, Octávio Paz observa que "os 'poetas malditos' não são uma criação do romantismo: são o fruto de uma sociedade que expulsa aquilo que não pode assimilar. A poesia não ilumina nem diverte o burguês. Por isso ele desterra o poeta e faz dele um parasita ou um vagabundo" (O arco e a lira).
Se por um lado, distanciamo-nos um pouco da mirada de Paz, demasiadamente imersos que estamos hoje na "sociedade do espetáculo", com o entretenimento pesando mais que a cultura (conjunto de práticas de um lugar) e a arte (conjunto de práticas específicas de uma linguagem), por outro lado, essa definição atemporal de poesia e de poeta, recobrando preceitos platônicos, sugere que todo poeta e toda poesia são malditos, párias, fantasmas, vagabundos.
Isso é percebido do lugar que a poesia ocupa nas estantes das livrarias até os espaços destinados aos poetas nas celebradas festas-feiras literárias. Passando pelo fato de que a poesia não tem valor, cotação. Desse modo, seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer que os adjetivos que damos à poesia e aos poetas - maldito, marginal - são uma exigência do ordenamento social e do mercado.

Forma é conteúdo. Porém, observando particularmente a nossa historiografia, ancorada em leituras sociológicas, percebemos que os adjetivos, bem como a periodização da literatura feita no Brasil, além de tomar por empréstimos termos estrangeiros, estão mais fincados nos temas. E poesia, sendo arte, é forma.

É desse modo que, quando a noite entra no jogo, notada e assumidamente com os românticos, o conceito de "maldito" cola na poesia e no poeta. A noite e seus mistérios, suas figuras e personagens nublam a harmonia sacerdotal e filosófica. A noite revela (para usar um termo caro a Octavio Paz) sentimentos e sensações até então meticulosamente controlados, ordenados pela religião. Se "a missão do poeta é restabelecer a palavra original, distorcida pelos sacerdotes e pelos filósofos", como sugere Paz, as perguntas lançadas pelos românticos persistem sendo a tônica da poesia desde sempre.

Por essa perspectiva, as canções que Luís Capucho guarda no disco Poema maldito (2014) são malditas tanto nos temas, quanto na performance vocal de dicção "marginal", "fantasmática", não-radiofônica, livre dos programas de afinação vocal. Dicção que vocaliza sujeitos noturnos, de "braços atrofiados", camponeses de bad trip, desassossegados, que acordam babados "tarados de você".

Tomemos como exemplo a canção que dá nome ao disco. Assinada por Luís Capucho e Tive, "Poema maldito" recupera questões urgentes à poesia oitocentista brasileira, porém, atualizado em gesto afórico, ou seja, no entre-lugar da euforia e da disforia.

O sujeito da canção, em primeira pessoa, diz: "Sou luís capucho e escrevi o Cinema Orly e tenho namorado". Paquerado na praia por "um sujeito aleijado", vai à casa desse beber e ver filme pornô. Mas o outro cai no chão. De "louva-deus sagrado" passa a ser visto como um "inseto moribundo".

Usar o cotidiano como objeto estético requer repertório literário e artístico. O que poderia parecer a "escrita automática" de uma memória (os verbos estão no presente, mas o "vou embora dali" demonstra distância temporal) revela-se a consciência entre as coisas, o homem e a linguagem: a) referência biográfica a Luís Capucho, autor e personagem do fato cancional; b) uso das comparações - "louva-deus" e "inseto moribundo"; c) presença do sujeito de "braços atrofiados" como tema noturno, em contraste com a situação vivida na praia; d) apatia diante da agonia do outro; e) exploração do tempo em flashs cinematográficos; f) homoerotismo.

Por sua vez, o sexo é dessacralizado, dessublimado. A interdição sexual é resultado do confronto quase barroco entre a ideia de um "louva-deus" e a revelação de um "inseto moribundo". O corpo do outro interdita e intimidade, promove um abandono próprio capturado e ressemantizado pelo sujeito da canção.

Mas de nada valeria esse trabalho verbal, esse contar das coisas estranhas sem a vocalização afórica - estéril - de Luís Capucho, dando significado cruel, mau, maldito ao sujeito cancional. Esse sujeito parece dialogar esteticamente com os versos do poeta decadentista Medeiros e Albuquerque: "Que importa a Idéia, contanto / que vibre a Forma sonora, / se da Harmonia do canto / vaga alusão se evapora?".

Esses versos traduzem a dicção de Luís Capucho: crua. Como crus são os temas abordados em sua poesia, prosa, canções. O autor de Cinema Orly transita com movimentos estranhos ao mainstream: entre sutilezas e brutalidades, gestos e afetos, tradição e ruptura, fatos culturais e estética. E a autorreferência cruel, diferente dos selfies comuns e integrados de "alegria", é artifício que revela o outro lado do espelho onde se reflete o espírito (ou seria o fantasma?) de uma época.


***

Poema maldito
(Luís Capucho / Tive)


Tô na praia
Com um sujeito aleijado
Que busca intimidade comigo
Ele tem os braços atrofiados e isso faz
Com que ele se pareça um louva-deus sagrado
Estamos conversando
Ele me diz que vive só
E que prefere assim
Porque gosta de se deitar no sofá
A ver filme pornô
Eu disse:
- Sou luís capucho e escrevi o Cinema Orly e tenho namorado.
Em todo caso ele me chama pra beber e ver filme pornô na sua sala.
Então, se aproxima e trata de sentar-se do meu lado
Mas não sei como aconteceu, ele caiu no chão
Com movimentos estranhos que não entendo
Fico um tempo a reparar que não vai se levantar sozinho
E vou embora dali
E o abandono em sua agonia de inseto moribundo.




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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