Por Pedro de Souza/UFSC-CNPq RESUMO
RESUMO
O objetivo deste artigo é saber de que maneira as cantoras contemporâneas, historicamente localizáveis a partir da década de 1980, podem buscar na voz o ponto enunciativo de subjetivação. Trata-se de focalizar o momento em que, na história da música popular brasileira, as maneiras de colocar a voz no canto feminino não mais obedecem ao regime de discurso que, na época de ouro do rádio, determinava a colocação de um drama na voz como parte das condições de produção do sujeito que canta. No campo da escola francesa de Análise de discurso, o presente trabalho insere-se em uma pesquisa mais ampla que investiga processos de constituição do sujeito mediante enunciações cantadas. O ponto de referência do processo discursivo a ser rastreado na análise é a história das cantoras do rádio em relação às cantoras contemporâneas. Nesta relação, focalizo certo modo de subjetivação do feminino operado na relação entre voz cantada e ato enunciativo.
PALAVRAS-CHAVE: voz, enunciação, MPB, discurso.
A MÍNIMA VOZ NO LIMIAR ENTRE O MESMO E O DIFERENTE
Volto ao ponto de partida em que me proponho a confrontar a modulação cool
da voz feminina nas cantoras contemporâneas com o regime de regulação vocal que, conforme destaco a partir do depoimento de Chico Buarque, sustenta a forma discursiva
da presença da mulher na tradição da música popular brasileira. Coloco agora em
destaque para análise um feixe de proferimentos, estes certamente perdidos em meio a outros
arquivos tratados e conservadas como acontecimentos irrisórios de enunciação na hora
presente.
Em 2009, a Revista Veja publicou uma matéria, assinada pelo jornalista Sérgio
Martins, comentando a qualidade vocal das novas cantoras relativamente a seu jeito
sussurrado de cantar. Ligado ao comentário de Chico Buarque de Holanda, analisado acima,
considero essa matéria como ressonância de muitas outras falas com a mesma referência e
que não ganham destaque nem no espaço da mídia nem no campo especializado da música
popular brasileira. Refiro-me ao fato de que o quer que se ressalte sobre o novo estilo de
cantar percebido nas novas cantoras incontrolavelmente há que se passar pela força vocal das
grandes intérpretes da época de ouro de rádio. Não se trata de intencionalidade, mas da
propriedade do dizer que só significa a partir do que antes se impôs como possibilidade de
constituição de sentido na história. No que diz respeito à voz, muitos apreciadores do canto
popular podem não saber bem quem foi uma Ângela Maria, Lana Bittencourt ou uma Lene
Everson, mas involuntariamente está preso à necessidade de esquecer esses intensos e
dramáticos vozeados para deixar que os sussurros vocais do agora tenham lugar de
reconhecimento na escuta de uma cantora.
A partir da reportagem em questão, procuro agora tomar aleatoriamente fragmentos de
fala que nela remetem ao estilo vocal adotado pelas cantoras do tempo presente. O ponto
fundamental é explicitar a relação discursivamente transversal que as falas destacadas a seguir
entretêm com os comentários de Chico Buarque. O eixo comum dessa transversalidade é a
presença do feminino, seja como objeto de que se fala na perspectiva do compositor, seja
como sujeito que fala, tal como sublinho na minha análise. Isso permite sustentar que o que
se diz aqui encontra relação de sentido no que se dizia acerca das cantoras tradicionais
adiante mostro como a adoção da postura vocal em mínimos tons nas atuais cantoras só gera
problema na referencia com as grandes vozes da era do rádio. Em termos analíticos, trata-se de percorrer o movimento do discurso sobre a voz no canto feminino e marcar aí um ponto
de descontinuidade na história da música popular. Uma análise como esta, considerando a
dispersão dos dizeres referidos à voz na canção, pode produzir elementos a fazer ver uma
diferente forma da história das práticas culturais emergidas em torno do canto.
A matéria é intitulada O poder do sussurro e abre com a seguinte afirmação,
emblemática no presente e no campo em que se enuncia:
As cantoras de voz pequena provam que não é preciso se esgoelar para tirar o
melhor de uma música.
Logo de inicio é interessante notar o espaço enunciativo a partir do qual se desenrola,
nesta reportagem, uma certa discursividade sobre a voz feminina no canto popular dos
tempos atuais. Refiro-me, como adiantei antes, à adoção do volume e da força vocal como
eixo axial a definir o processo pelo qual se constitui uma cantora.
Se pudesse ter escolhido, Fernanda Takai
gostaria de cantar com a força de Clara
Nunes.
A natureza, no entanto, lhe deu uma voz miudinha –
e a obrigou a procurar
outras referências.
No começo da carreira, Fernanda encontrou inspiração
na inglesa
Tracey Thorn, do duo Everything But the Girl,
e na americana Suzanne Vega. Nos
shows, era com esforço
que ela dava conta das músicas mais barulhentas.
Mesmo
assim, seu vocal suave se impôs e se tornou
uma marca de sua banda, o Pato Fu. Em
seu primeiro
disco-solo, lançado no fim de 2007, Fernanda, hoje
à vontade com seus
dotes, homenageou outra cantora
de voz pequena: Nara Leão (1942-1989),
uma das
maiores intérpretes da bossa nova.
Vê-se de imediato como, na abertura desta matéria jornalística, as referências a nomes
próprios alinhavam uma rede de cantantes cujo diferencial remete a uma possivel genealogia
da voz feminina na história da música popular brasileira (Souza, 2011). Digo isso porque
muitos foram os jeitos e os naipes vocais que compuseram o campo da canção popular
brasileira, nem todos com a mesma validade, ou reconhecimento dados ao mesmo tempo em
que se faziam escutar.
Abrindo o texto, ao estilo de discurso indireto livre, o crítico musical não apenas
destaca estrategicamente o nome Fernanda TaKai, um dos mais fortes exemplares do estilo
vocal cool na canção brasileira contemporânea, mas faz com que o dizer auto referencial
desta cantora funcione na relação com o nome de Clara Nunes, que seria, no jogo desta
remissão, a contraparte do estilo cool vigente nas novas cantoras. Na maneira como é
citada pelo entrevistador, Fernanda Takai torna sua voz audível pelo que não opera no volume e na força, mas também pelo que realiza na emissão colocada entre o silêncio e a
suavidade.
Quando, pela escrita do jornalista, Takai se diz cantando, suas referências se ancoram
na paleta sonora de suas contemporâneas. Sem menção a critério de gênero musical ou de
nacionalidade, para mostrar os espectros vocais que a inspiram ao cantar, falando à revista,
Fernanda Takai cita nomes que ouve no rádio, na internet ou nas baladas, como o da cantora
inglesa Tracey Thorn, do duo Everything But the Girl, e a americana Suzanne Veja.
Não que situe seu canto como dirigido especificamente ao público do meio onde
circulam essas vozes registrando a histórica e culturalmente o jeito adolescente de amar. Em
verdade, para propor a voz pequena como contrapartida do lugar de enunciação que a
subjetiva como cantora, ela se situa na linha temporal do que vem antes dela mesma e dos
referenciais vocais de seu tempo presente, isto é, no limiar entre a força de uma Clara Nunes e
a suavidade de uma Nara Leão. A distância em que se vai de uma a outro significa, portanto
pela remissão à força e à intensidade, o que pode definir o limite físico de uma, mas poderia
definir a economia no emprego do tamanho vocal que se tem. Quero retomar esse ponto logo
abaixo.
Assim é que, no discurso aqui encetado sobre a emissão da voz feminina no canto
popular, escuta-se todo um espectro de sonoridade vocal que se efetiva na fixação de uma
região interdiscursiva em que apenas um regime deve valer como sinalizador de que em
meios a uma multiplicidade de sons vocais, ouve-se uma cantora. Não é casual que o texto
jornalístico em foco trate de enumerar nomes de cantora que evidencie como verdadeira a
presença de uma e não de outra modalidade de voz feminina:
Pode-se dizer o mesmo do canto contido e delicado
da paulista Tiê, em seu recente
disco de estreia, Sweet Jardim.
E o estilo deliciosamente inconsequente de algumas
cantoras do pop britânico, como Lily Allen [...] e Kate Nash,
deve muito ao jeitinho
meio infantil com que elas cantam.
As cantoras de voz pequena têm algo a dizer no
cenário
pop atual – e o dizem bem.
Em termos de discursividade, não se trata apenas de enumerar nomes de cantoras,
mas de fazer certa materialidade vocal aplicar-se a um efeito de subjetivação. No trecho
em que o jornalista afirma: “as cantoras de voz pequena têm algo a dizer no cenário pop
atual – e o dizem bem”, há uma operação discursiva fazendo da voz por ela mesma e por
seu modo de soar o ponto de encontro entre uma modalidade sonora de significante e uma
possibilidade de significação.
Isso é o que a matéria da Revista Veja aqui focalizada registra, ou seja, o modo
discursivo de conceber a voz, ligando a propriedade expressiva do vozeado de baixo
volume e extensão ao regime de subjetivação da mulher muito distante do que se
impunha na era do rádio. Seja por limites corporais, seja por opção estética, o interessante
a reter nesta dominância discursiva é o modo outro com que se mantém certa
transitividade que liga a postura vocal ao sentido do que a voz diz: “A voz contida, porém,
tem maleabilidade para dar às palavras seu significado emocional preciso [...]. Menos é
mais”.
Esta afirmação adquire um efeito de sentido historicamente importante, quando o
jornalista cita contraexemplos. Do lado discursivamente inclusivo, sob a égide do estilo cool,
expõe os casos de João Gilberto, Nara Leão e Fernanda Takai - o primeiro pela contensão
do alcance próprio e as segundas, pela exploração de seus limites vocais na busca do
mesmo efeito sonoro ligado ao modo de dizer.
Do lado discursivamente excludente, alerta para “os superagudos de uma Whitney
Houston ou de uma Celine Dion”. O uso abusivo da própria potência vocal não serve para
definir o que se espera de quem canta. Vozes ostensivamente potentes “distorcem as letras e
banalizam o sentimento”, pontua o jornalista. Eis as palavras que em seu encadeamento
lexical e semântico fixam a formulação de outra discursividade em movimento na história.
Chamo aqui atenção para o marco genealógico em que o tamanho e o alcance
limitados de uma emissão vocal não são mais impedimento, mas exigência para que aquela
que canta faça valer seu acesso à posição de cantora. Contudo, é possível dizer que a análise
deste breve trecho da reportagem conduz ao discurso em seu movimento de deslocar para
outro lugar o diferencial da voz a que ele se refere. É dizer, conforme adiantei acima, que a
voz pequena não se distingue tanto em termos de extensão e volume, mas em termos do
espectro de intensidade em que mesmo grandes vozes recolhem-se ao sonido do sussurro
para fazer passar o ato de cantar.
Esta observação é importante, mas não essencial para descrever o ponto de
descontinuidade ou de deslocamento de sentido da voz como presença do feminino na
história da música popular brasileira. Cantar com força, no regime tradicional de formação de
cantoras, é demandar dramaturgicamente a subjetividade dirigida tanto ao ouvinte quanto à
cantante. Em cada uma das grandes divas do rádio, nunca se podia responder, mediante a voz
que emitiam, que pouco importava quem cantava. Pela intensificação vocal, tudo se passava como se cada mulher, tomada na forma-sujeito que se lhe impõe nesta época, ouvisse a si
mesma envolta no melodrama de seu feminino cotidiano.
Hoje, ao contrário, na escuta da voz minimalista, é possível afirmar que não importa
quem canta. A partir dos anos de 1980, a força, extensão e intensidade da voz feminina fica
vazia de função enunciativa. Isso não significa argumentar em nome de uma identidade social
ou pessoal, mas, tanto num quanto noutro estrato da mesma história, salientar a forma de
constituir sujeito nas condições de produção de referência
Por isso mesmo, na atualidade da canção popular, que se acentua no final da década de
1990, a voz miúda não faz dizer o mesmo com menos drama. Embora seja este o discurso que
a ela se interpõe, o caso é que as formulações tecendo o discurso de afirmação do estilo cool
para a voz feminina, operam involuntariamente uma descontinuidade. As falas atestáveis
daqui e dali e que ressoam na matéria que focalizo, pretendem se deter na materialidade da
voz por ela mesma e no efeito estético a que se chega. Contudo, essas falas parecem compor
uma série de enunciações em que no lugar do efeito puramente estético está o vazio do drama
da afirmação subjetiva da mulher tal como se punha em períodos getulistas e que ora não
mais se põe. Na dominância do vozeado suave e sussurrado, o eixo da subjetivação fica
colocado em suspenso. Pode-se supor que há como que uma indeterminação no jogo de
posições de sujeito no que tange à presença do feminino na canção. Diferente das cantoras
tradicionais, a injunção a preencher certa posição não mais investe as formas com que a
mulher se problematiza no presente.
O que se passa é que o minimalismo vocal contrastado com o tradicional vozeirão não
se dá em uma linha de continuidade. É preciso dizer que as condições em que a voz da cantora
torna-se a dêixis do sujeito a vir em seu canto são obviamente outras. O sentimento que vem
como efeito operado na voz tem agora outro diagrama de subjetividade feminina, o que não
cabe a ser dito pelo regime de postura e força vocal disponível no regime enunciativo da
canção para apropriação das cantoras do rádio.
Ao modo cool, é como se hoje as cantoras atuassem o risco de não se deixar escutar e
com isso barrassem a possibilidade de nele realizar-se um processo de subjetivação
extemporâneo, ou seja, subjetivar-se na forma e um lugar que não coincide com o que
imagina como seu no tempo em que canta. Esta é a perspectiva na qual significa o que diz
Fernanda Takai, na entrevista referida aqui, sobre o acerto na escolha de um tom suave e
baixo para cantar “canções tristes e sofridas – como Luz Negra, de Nelson Cavaquinho”.
Escuta-se nela um exemplar de apropriação individual da forma melódica e verbal da canção, de modo a atingir, no e pelo ato enunciativo cantante, o que a cantora nomeia como “uma
pungência sem melodrama”. Se quisermos saber que discurso funciona nessa valorização da
voz emitida ao modo do sussurro, não vamos poder mostrá-lo senão na relação que o distancia
do discurso de afirmação das vozes de grande extensão.
Uma objeção pode ser levantada aqui colocando em dúvida a novidade desta
constatação na história da música popular brasileira. Basta recorrer ao que depõe Nana
Caymmi, no Programa Ensaio, TV Cultura de São Paulo, 1992. Mesmo dotada de voz forte,
Nana um dia descobre, ouvindo o tom manso do cantor e compositor Tito Medi, que se podia
entoar de outra maneira frases melódicas tão carregadas de dor quanto as que chegavam a
seus ouvidos pelo vozeado que se repetia no canto da mãe entregue às lidas domesticas.
Certamente dar-se conta de que se pode cantar com suavidade melodias cheias de dor
já tinha se revelado a cantores da velha guarda, notadamente aos que pela voz modulada ao
mínimo, abriram espaço ao movimento bossanovista, mesmo estando fora dele. Os
intérpretes e compositores Dick Farney (1921-1987) e Tito Medi são exemplos desta
transgressiva atitude vocal rivalizando com as vozes de peito de um Silvio Caldas ou Orlando
Silva.
Mas não se trata do sentido de novidade vinculado ao fato em si, ou seja, ao ter lugar
da voz pequena. O que se irrompe como o novo ou o diferente no mesmo, é o regime de
subjetivação da mulher que acontece na exterioridade constitutiva do ato de se enunciar
cantando. De tal modo que o novo está na associação de um certo modo de colocar drama
na voz e outra possibilidade de sujeito a vir pela e na voz.
Aqui se encontra a marca genealógica, ou o ponto outro em que se atualiza o encontro
entre o acontecimento vocal em sua singularidade e a memória discursiva de subjetivação.
Essa diagramação de uma genealogia da subjetivação no canto popular pode valer tanto para o
drama ressoando no plano amoroso quanto no âmbito político.
Este deslocamento de posição conduz a levantar analiticamente duas questões. A
primeira refere-se ao modo como a voz cantante pode ser o gesto enunciativo crucial
concorrendo para a constituição do sujeito alocado em dado discurso. A segunda questão diz
respeito ao que experimento designar a substância ética da voz. Mais especificamente aponto
para os funcionamentos vocais que a modulam no drama ou fora do drama. Compreende-se
enfim como a análise de discurso pode apontar para o que se acentua na longa e inconclusa
duração do processo discursivo que focaliza o feminino nas canções. Trata-se de explicitar, na qualidade de alavanca do processo discursivo, a operação pela qual, através da voz, se põe
em cena certa forma de subjetividade.
REFERÊNCIAS
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ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001. SOUZA, Pedro de. Sonoridades vocais: narrar a voz no campo da canção popular Revista outra travessia, Jun. 2011 [S.l.], n. 11, p. 99-114
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