Por Pedro de Souza/UFSC-CNPq RESUMO
RESUMO
O objetivo deste artigo é saber de que maneira as cantoras contemporâneas, historicamente localizáveis a partir da década de 1980, podem buscar na voz o ponto enunciativo de subjetivação. Trata-se de focalizar o momento em que, na história da música popular brasileira, as maneiras de colocar a voz no canto feminino não mais obedecem ao regime de discurso que, na época de ouro do rádio, determinava a colocação de um drama na voz como parte das condições de produção do sujeito que canta. No campo da escola francesa de Análise de discurso, o presente trabalho insere-se em uma pesquisa mais ampla que investiga processos de constituição do sujeito mediante enunciações cantadas. O ponto de referência do processo discursivo a ser rastreado na análise é a história das cantoras do rádio em relação às cantoras contemporâneas. Nesta relação, focalizo certo modo de subjetivação do feminino operado na relação entre voz cantada e ato enunciativo.
PALAVRAS-CHAVE: voz, enunciação, MPB, discurso.
A PRESENÇA FEMININA COMO VOZ NA CANÇÃO
Começo, portanto, elegendo um depoimento que se refere à presença da mulher na
música, sem nunca mencionar como tal presença está estreitamente ligada ao regime de
regulação da voz para cantar. Em uma entrevista incluída numa das partes do documentário A
flor da pele (2005), o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda relata como criou
algumas de suas composições sobre e no feminino.
Não fui eu que comecei a fazer música no feminino.
Na música brasileira há essa
tradição [...].
Na verdade, a primeira música que eu fiz na primeira
pessoa foi por
encomenda da Nara. A Nara Leão me pediu uma música.
Ela falou: quero uma
música daquelas, das mulheres que esperam o marido.
Foi aí que eu escrevi Com
açúcar com afeto pra ela. [...].
Tanto as canções no feminino - compostas por
homens, no feminino - assumem
essa personalidade da mulher caseira, boazinha e
compreensiva,
quanto as masculinas louvavam essa qualidade doméstica da mulher.
A primeira canção que fiz feminina, uma mulher cantando sua liberdade
é Olhos nos
olhos, que eu fiz para Bethânia gravar.
Um pouco isso: a mulher que é abandonada
pelo marido, pelo amante,
que seja, e dá a volta por cima e que diz que é mais feliz
assim.
Isso não digo que fosse uma novidade nos anos setenta,
mas uma canção
dessa seria absurdo nos anos quarenta.
Se tiver que elencar pelo menos um critério que me levou a esta escolha, de saída, digo
que o depoimento de Chico Buarque abre para o processo discursivo que mostra o trajeto dos
dizeres sobre a aparição do feminino nas canções. Refiro-me ao percurso retrospectivo de sua
enunciação na memória do que se disse antes e que ressoa no presente de outras enunciações
alheias e posteriores à sua na mesma rede de discurso. Quando o criador de Mulheres de
Atenas alerta não ser o único a compor no feminino e aponta para a tradição na música
brasileira - Não fui eu que comecei a fazer música no feminino. Na música brasileira há essa
tradição -, seu proferimento não só se enuncia como parte de um discurso sobre o lugar de
enunciação da mulher na canção, mas também se apresenta como a posição discursiva de
onde Chico Buarque toma a mulher como tema de suas criações musicais.
Note-se, porém, que se está dito, na primeira frase deste depoimento, a ausência de
mulheres compositoras no período a que se refere, por outro lado, não está dito que o mesmo
vazio dá espaço à presença da mulher como voz. Muito embora os compositores, como o faz
o próprio Chico Buarque, gravassem suas criações formuladas no feminino, certa postura
vocal ostentada em corpo de mulher era importante para fazer ouvir a condição do feminino
sendo falada em seu próprio território, ou seja, a da voz da cantora como contrapartida do
sujeito preconsruido em discurso.
Compreende-se logo como na época referida por esse compositor o tema do feminino
nas canções tem ligação direta com as condições sob as quais a mulher não só é interpelada
como objeto, mas é, sobretudo, feita sujeito protagonista de um gênero cancioneiro que só
pela voz de uma cantora vinha existir com a mesma força de subjetivação que tornou possível
sua presença na inspiração de um cancionista. Afinal de que adianta, sob a tutela do discurso
que o antecede na historicidade do sentido, todo homem dizer-se o senhor incontestável da mulher, e esta não tomar seu atribuído lugar de fala para assumir em primeira pessoa este
posto discursivamente constitutivo de seu ser enquanto sujeito cantante?
Chico Buarque delineia esse processo típico da subjetivação que se opera por
assujeitamento. É o que se pode interpretar na sequência de sua fala, quando o compositor
relata o que o levou a escrever a sua primeira canção no feminino. “Na verdade, a primeira
música que eu fiz na primeira pessoa foi por encomenda da Nara. A Nara Leão me pediu
uma música. Ela falou: quero uma música daquelas, das mulheres que esperam o marido”.
Por certo, neste enunciado, nem o narrador que cita em estilo direto o pedido da cantora, nem
Nara Leão aparecem neste depoimento como protagonistas aderidos à posição de discurso a
que se remete ao definir o tipo de música no feminino que a cantora pediu e que o
compositor devia criar
De todo modo, o que assinalei como não dito explicita-se na forma enunciativa
deste testemunho. A fala de Nara Leão corresponde a uma espécie de dramaturgia exemplar
apontando para a posição em que a mulher aceita falar de si na maneira com que o
cancionista, agente de discurso, a concebe na relação com seu homem. Com açúcar com
afeto, em letra e melodia, é uma composição que contém todos os ingredientes a
performatizar a cena do feminino tal como significado no contexto a que se refere. Neste
sentido, é que o depoimento do compositor situa a filiação discursiva de algumas de suas
músicas na rede de canções que exibem, em primeira ou terceira pessoa, a posição submissa
da mulher.
Observe-se como o encadeamento da fala de Chico Buarque exibe o percurso de uma
produção musical movimentando-se na mesma rota de sentido que percorriam as composições
da velha guarda, quando se tratava de falar ou de fazer falar a mulher. “Tanto as canções no
feminino - compostas por homens no feminino - assumem essa personalidade da mulher
caseira, boazinha e compreensiva, quanto as masculinas louvavam essa qualidade domestica
da mulher”. É a ela, a mulher compassiva, a quem o compositor quer passar a palavra,
assim como é dela, a respeito de quem ele quer falar em tom de louvor dirigido às
emblemáticas Amélias e Emílias . Não importa tanto reiterar o sentido que se repete neste
trecho da fala de Chico Buarque, mas sim ressaltar a historicidade aí tornada presente e a
maneira com que a voz da mulher é chamada a incorporar o discurso que dita a subjetividade
através da qual deixa-se referir em seu canto.
A forma como Chico Buarque, no estrato da entrevista em foco, descreve a presença
da mulher no cancioneiro dos anos quarenta pode bem ser a metáfora dessa espécie de
vínculo contratual entre a cantora e o gênero de música popular que agencia a relação entre a
voz feminina e o discurso. Não bastava apenas o compositor dizer e fazer dizer o feminino
dotados dos sentidos de “mulher caseira, boazinha e compreensiva”. Obviamente, a mulher
não é em si mesma a origem de qualificativos como estes. Mas sua voz constitui o lugar onde
as palavras que lhe designam subjetivamente podem aparecer enquanto força discursiva. Tal
é o estatuto enunciativo de existência relativamente autônoma da voz que, no contexto
histórico tomado aqui como referência, faz falar o sujeito feminino na cantora enquanto canta.
Em ato, o gesto da voz no canto brota já discursivamente determinado na partitura da canção,
e esta funciona como o espaço onde a voz da cantora realiza seu encontro com a já proferida
dimensão vocal da memória discursiva.
Levando às últimas consequências esta perspectiva, pode-se interpretar que Chico
Buarque projetou a sonoridade de com açúcar com afeto a partir de uma voz feminina soando
em uma intensidade bem diversa da mulher que espera pacientemente o marido figurada nas
composições tradicionais. A emissão vocal que ecoa na encomenda de uma canção aludida
como “aquelas das mulheres que esperam o marido” comporta um traço de ironia. A doçura
da colocação vocal rivaliza com o vozeirão das grandes divas de outrora, as que detinham a
força interpretativa necessária para que seu cantar configurasse a presença e a posição de
sujeito correspondente a condição do feminino implícita na letra da canção. Em vez disso, a
voz da musa primeira da bossa nova sugere, mas não dá lugar ao drama da mulher que sempre
cede a última e decisiva palavra ao homem a quem se submete.
Interessante que o jeito próprio de Nara Leão entoar se verifica não só cantando Com
açúcar com afeto , mas também na interpretação de outras melodias antigas e da mesma
rede de sentido como Camisa Amarela, de Ary Barroso. Entre as duas composições, podese projetar em certo trecho entoado pelo mesmo sonido vocal auto distante de Nara, o
liame temático da mulher que ironiza o incontornável domínio que o homem amado exerce
sobre si mesma. Coloco aqui em paralelo os versos respectivos de
Com açúcar com
afeto
Dou um beijo em seu retrato
E abro meus braços pra você
Camisa Amarela
Gosto dele assim
Passou a brincadeira e ele é pra mim
O certo é que o tom irônico insinuado nesse manso modo de dizer não teria sido
possível senão como ironia nos anos em que os compositores começam a fazer a mulher falar
nas canções. Quando se tratava de enunciar em primeira pessoa era crucial que a cantora
pusesse em cena na e pela voz o sofrimento misturado à passividade de uma condição
exterior ao canto. Não importa tanto o que toca à história de vida de cada mulher quando
canta, mas o que tangencia a forma subjetiva da mulher na história. Ainda que falando por
palavras alheias, a voz da cantora devia tornar seu o dizer no qual só lhe restava lamentar,
resignar com algumas incidentes aberturas ao protesto como no trecho de Errei sim, de
Ataulfo Alves, em que Dalva de Oliveira aumenta o volume e a intensidade da voz para
entoar: “Mas se existe ainda/Quem queira me condenar /Que venha logo /A primeira pedra
me atirar”.
Retorno ao trecho inicial da fala de Chico Buarque quando adverte que não é o
inventor de composições no feminino. A ressalva liga-se à observação do compositor de que
seria impossível, na era do rádio, fazer falar a mulher a não ser na posição submetida em
que ganha acesso à palavra de si. Neste ponto de seu testemunho vê-se um ponto de
descontinuidade discursiva marcando a relação entre o que produziam os autores antigos e o
que produz Chico Buarque compondo no feminino. Não por acaso, o criador do samba Rita
atenta para uma exceção na maneira de os compositores tradicionais apresentarem as
mulheres que são seu objeto de desejo. Ele relembra o caso, inusitado para a época, da
marcha de carnaval em que a protagonista da canção deixa um bilhete para o marido,
desabafando, ao modo masculino “não posso mais eu quero é viver na orgia” . Chico
Buarque não faz apenas relatar uma exceção, mas nos leva a pinçar vestígios de modalidades
disparatadas de presença feminina no cancioneiro popular dos anos quarenta.
O que, nos tempos integralistas e estadonovistas da história do Brasil, impede
atitudes de transgressão no modo de fazer dizer o feminino é o risco de o sujeito-mulher vir a ser outro, diverso do que estava autoritariamente rubricado em discurso. Do impossível
em certo tempo, vem a originalidade do presente do criador de O dono da voz.
Incidentalmente, no transcorrer da entrevista, antes de se referir pontualmente à canção em
que dá voz diferente ao feminino, Chico Buarque alude à ousadia de uma fala em que a
mulher que perde seu homem se diz muito feliz e até muito e melhor amada por muitos
outros homens: “isso é uma paulada na cabeça do homem”, exclama ele. No acolá das
cantoras tradicionais e no aqui das cantoras contemporâneas, o compositor exerce, em sua
criação, a transgressão do modo de incitar a fala da mulher no canto.
Pode se interpretar, para os termos da história que esta minha análise pressupõe, que,
igual à atitude criativa que teve na voz de Nara Leão o leit-motiv inspirador que resulta em
Com açúcar com afeto. Foi assim que Chico Buarque criou Olhos nos olhos para a cantora
Maria Bethânia em 1975. Sob o enfoque analítico aqui assumido, digo que,
independentemente da intenção de seu testemunho, o que diz Chico Buarque marca um ponto
de mutação discursiva. Para criar na e pela voz o sujeito feminino de Olhos nos olhos, foi
preciso que a dimensão vocal intensa da enunciação exercesse seu ataque em uma
performance de densidade dramática própria à mulher que toma o abandono do amante não
mais como prova de sua fragilidade, mas como prenuncio de sua força e libertação. Entra em
vigência, na cena do espetáculo musical que se expande do rádio e da televisão aos palcos de
grandes teatros, o cantar novo em que a mulher não mais lamenta o poderio masculino, e sim
o derruba, mediante um modo outro de se colocar vocalmente no confronto típico do discurso
amoroso. Este é o quadro em que se pode, ainda dedilhando as cordas dos discursos que se
sucedem mutuamente, especular sobre o sujeito que vem depois do grito vocal dado na
partitura de Olhos nos olhos soando no auge do feminismo dos anos setenta.
Como afirmei ao longo deste artigo, mediante a alusão que faz Chico Buarque de
Holanda aos compositores antigos, fica claro que estava dado, em um tempo fora do que se
coloca o compositor, o esquadrinhamento discursivo a partir do qual devia prever, na partitura
de cada nova canção, as inflexões vocais possíveis para a emissão da mulher provida de um
certo estatuto em certo tempo.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. O Governo de Si e dos Outros .Curso no Collège de France (1982- 1983).Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Editor Martins Fontes, 2010
HOLANDA, C. À flor da pele. Direção: Roberto de Oliveira, Manaus, DVD, EMI Music Brasil Ltda., 2005.
MARTINS, S.. O poder do sussurro. Revista Veja, São Paulo, Edição 2128 / 2 de setembro de 2009. Música, p. 134-135.
MOREL, M. Valeur énoncitive dês variations de hauteur en français. Journal of French. Language Studies. Sept. 1995. Vol5, no. 2. Cambridge university press, pp. 189-202
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001. SOUZA, Pedro de. Sonoridades vocais: narrar a voz no campo da canção popular Revista outra travessia, Jun. 2011 [S.l.], n. 11, p. 99-114
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