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quinta-feira, 18 de abril de 2019

A MÍNIMA VOZ: MODOS DE SUBJETIVAÇÃO DO FEMININO NA CANÇÃO - PARTE 02

Por Pedro de Souza/UFSC-CNPq RESUMO


RESUMO

O objetivo deste artigo é saber de que maneira as cantoras contemporâneas, historicamente localizáveis a partir da década de 1980, podem buscar na voz o ponto enunciativo de subjetivação. Trata-se de focalizar o momento em que, na história da música popular brasileira, as maneiras de colocar a voz no canto feminino não mais obedecem ao regime de discurso que, na época de ouro do rádio, determinava a colocação de um drama na voz como parte das condições de produção do sujeito que canta. No campo da escola francesa de Análise de discurso, o presente trabalho insere-se em uma pesquisa mais ampla que investiga processos de constituição do sujeito mediante enunciações cantadas. O ponto de referência do processo discursivo a ser rastreado na análise é a história das cantoras do rádio em relação às cantoras contemporâneas. Nesta relação, focalizo certo modo de subjetivação do feminino operado na relação entre voz cantada e ato enunciativo.

PALAVRAS-CHAVE: voz, enunciação, MPB, discurso.



A PRESENÇA FEMININA COMO VOZ NA CANÇÃO 

Começo, portanto, elegendo um depoimento que se refere à presença da mulher na música, sem nunca mencionar como tal presença está estreitamente ligada ao regime de regulação da voz para cantar. Em uma entrevista incluída numa das partes do documentário A flor da pele (2005), o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda relata como criou algumas de suas composições sobre e no feminino.

Não fui eu que comecei a fazer música no feminino.
Na música brasileira há essa tradição [...].
Na verdade, a primeira música que eu fiz na primeira
pessoa foi por encomenda da Nara. A Nara Leão me pediu uma música.
Ela falou: quero uma música daquelas, das mulheres que esperam o marido.
Foi aí que eu escrevi Com açúcar com afeto pra ela. [...].
Tanto as canções no feminino - compostas por homens, no feminino - assumem
essa personalidade da mulher caseira, boazinha e compreensiva,
quanto as masculinas louvavam essa qualidade doméstica da mulher.
A primeira canção que fiz feminina, uma mulher cantando sua liberdade
é Olhos nos olhos, que eu fiz para Bethânia gravar.
Um pouco isso: a mulher que é abandonada pelo marido, pelo amante,
que seja, e dá a volta por cima e que diz que é mais feliz assim.
Isso não digo que fosse uma novidade nos anos setenta,
mas uma canção dessa seria absurdo nos anos quarenta.  

Se tiver que elencar pelo menos um critério que me levou a esta escolha, de saída, digo que o depoimento de Chico Buarque abre para o processo discursivo que mostra o trajeto dos dizeres sobre a aparição do feminino nas canções. Refiro-me ao percurso retrospectivo de sua enunciação na memória do que se disse antes e que ressoa no presente de outras enunciações alheias e posteriores à sua na mesma rede de discurso. Quando o criador de Mulheres de Atenas alerta não ser o único a compor no feminino e aponta para a tradição na música brasileira - Não fui eu que comecei a fazer música no feminino. Na música brasileira há essa tradição -, seu proferimento não só se enuncia como parte de um discurso sobre o lugar de enunciação da mulher na canção, mas também se apresenta como a posição discursiva de onde Chico Buarque toma a mulher como tema de suas criações musicais.

Note-se, porém, que se está dito, na primeira frase deste depoimento, a ausência de mulheres compositoras no período a que se refere, por outro lado, não está dito que o mesmo vazio dá espaço à presença da mulher como voz. Muito embora os compositores, como o faz o próprio Chico Buarque, gravassem suas criações formuladas no feminino, certa postura vocal ostentada em corpo de mulher era importante para fazer ouvir a condição do feminino sendo falada em seu próprio território, ou seja, a da voz da cantora como contrapartida do sujeito preconsruido em discurso. 

Compreende-se logo como na época referida por esse compositor o tema do feminino nas canções tem ligação direta com as condições sob as quais a mulher não só é interpelada como objeto, mas é, sobretudo, feita sujeito protagonista de um gênero cancioneiro que só pela voz de uma cantora vinha existir com a mesma força de subjetivação que tornou possível sua presença na inspiração de um cancionista. Afinal de que adianta, sob a tutela do discurso que o antecede na historicidade do sentido, todo homem dizer-se o senhor incontestável da mulher, e esta não tomar seu atribuído lugar de fala para assumir em primeira pessoa este posto discursivamente constitutivo de seu ser enquanto sujeito cantante?

Chico Buarque delineia esse processo típico da subjetivação que se opera por assujeitamento. É o que se pode interpretar na sequência de sua fala, quando o compositor relata o que o levou a escrever a sua primeira canção no feminino. “Na verdade, a primeira música que eu fiz na primeira pessoa foi por encomenda da Nara. A Nara Leão me pediu uma música. Ela falou: quero uma música daquelas, das mulheres que esperam o marido”. Por certo, neste enunciado, nem o narrador que cita em estilo direto o pedido da cantora, nem Nara Leão aparecem neste depoimento como protagonistas aderidos à posição de discurso a que se remete ao definir o tipo de música no feminino que a cantora pediu e que o compositor devia criar

De todo modo, o que assinalei como não dito explicita-se na forma enunciativa deste testemunho. A fala de Nara Leão corresponde a uma espécie de dramaturgia exemplar apontando para a posição em que a mulher aceita falar de si na maneira com que o cancionista, agente de discurso, a concebe na relação com seu homem. Com açúcar com afeto, em letra e melodia, é uma composição que contém todos os ingredientes a performatizar a cena do feminino tal como significado no contexto a que se refere. Neste sentido, é que o depoimento do compositor situa a filiação discursiva de algumas de suas músicas na rede de canções que exibem, em primeira ou terceira pessoa, a posição submissa da mulher. 

Observe-se como o encadeamento da fala de Chico Buarque exibe o percurso de uma produção musical movimentando-se na mesma rota de sentido que percorriam as composições da velha guarda, quando se tratava de falar ou de fazer falar a mulher. “Tanto as canções no feminino - compostas por homens no feminino - assumem essa personalidade da mulher caseira, boazinha e compreensiva, quanto as masculinas louvavam essa qualidade domestica da mulher”. É a ela, a mulher compassiva, a quem o compositor quer passar a palavra, assim como é dela, a respeito de quem ele quer falar em tom de louvor dirigido às emblemáticas Amélias e Emílias . Não importa tanto reiterar o sentido que se repete neste trecho da fala de Chico Buarque, mas sim ressaltar a historicidade aí tornada presente e a maneira com que a voz da mulher é chamada a incorporar o discurso que dita a subjetividade através da qual deixa-se referir em seu canto.  

A forma como Chico Buarque, no estrato da entrevista em foco, descreve a presença da mulher no cancioneiro dos anos quarenta pode bem ser a metáfora dessa espécie de vínculo contratual entre a cantora e o gênero de música popular que agencia a relação entre a voz feminina e o discurso. Não bastava apenas o compositor dizer e fazer dizer o feminino dotados dos sentidos de “mulher caseira, boazinha e compreensiva”. Obviamente, a mulher não é em si mesma a origem de qualificativos como estes. Mas sua voz constitui o lugar onde as palavras que lhe designam subjetivamente podem aparecer enquanto força discursiva. Tal é o estatuto enunciativo de existência relativamente autônoma da voz que, no contexto histórico tomado aqui como referência, faz falar o sujeito feminino na cantora enquanto canta. Em ato, o gesto da voz no canto brota já discursivamente determinado na partitura da canção, e esta funciona como o espaço onde a voz da cantora realiza seu encontro com a já proferida dimensão vocal da memória discursiva.

Levando às últimas consequências esta perspectiva, pode-se interpretar que Chico Buarque projetou a sonoridade de com açúcar com afeto a partir de uma voz feminina soando em uma intensidade bem diversa da mulher que espera pacientemente o marido figurada nas composições tradicionais. A emissão vocal que ecoa na encomenda de uma canção aludida como “aquelas das mulheres que esperam o marido” comporta um traço de ironia. A doçura da colocação vocal rivaliza com o vozeirão das grandes divas de outrora, as que detinham a força interpretativa necessária para que seu cantar configurasse a presença e a posição de sujeito correspondente a condição do feminino implícita na letra da canção. Em vez disso, a voz da musa primeira da bossa nova sugere, mas não dá lugar ao drama da mulher que sempre cede a última e decisiva palavra ao homem a quem se submete.

Interessante que o jeito próprio de Nara Leão entoar se verifica não só cantando Com açúcar com afeto , mas também na interpretação de outras melodias antigas e da mesma rede de sentido como Camisa Amarela, de Ary Barroso. Entre as duas composições, podese projetar em certo trecho entoado pelo mesmo sonido vocal auto distante de Nara, o liame temático da mulher que ironiza o incontornável domínio que o homem amado exerce sobre si mesma. Coloco aqui em paralelo os versos respectivos de 

Com açúcar com afeto
Dou um beijo em seu retrato
E abro meus braços pra você

Camisa Amarela
Gosto dele assim
Passou a brincadeira e ele é pra mim 


O certo é que o tom irônico insinuado nesse manso modo de dizer não teria sido possível senão como ironia nos anos em que os compositores começam a fazer a mulher falar nas canções. Quando se tratava de enunciar em primeira pessoa era crucial que a cantora pusesse em cena na e pela voz o sofrimento misturado à passividade de uma condição exterior ao canto. Não importa tanto o que toca à história de vida de cada mulher quando canta, mas o que tangencia a forma subjetiva da mulher na história. Ainda que falando por palavras alheias, a voz da cantora devia tornar seu o dizer no qual só lhe restava lamentar, resignar com algumas incidentes aberturas ao protesto como no trecho de Errei sim, de Ataulfo Alves, em que Dalva de Oliveira aumenta o volume e a intensidade da voz para entoar: “Mas se existe ainda/Quem queira me condenar /Que venha logo /A primeira pedra me atirar”. 

Retorno ao trecho inicial da fala de Chico Buarque quando adverte que não é o inventor de composições no feminino. A ressalva liga-se à observação do compositor de que seria impossível, na era do rádio, fazer falar a mulher a não ser na posição submetida em que ganha acesso à palavra de si. Neste ponto de seu testemunho vê-se um ponto de descontinuidade discursiva marcando a relação entre o que produziam os autores antigos e o que produz Chico Buarque compondo no feminino. Não por acaso, o criador do samba Rita atenta para uma exceção na maneira de os compositores tradicionais apresentarem as mulheres que são seu objeto de desejo. Ele relembra o caso, inusitado para a época, da marcha de carnaval em que a protagonista da canção deixa um bilhete para o marido, desabafando, ao modo masculino “não posso mais eu quero é viver na orgia” . Chico Buarque não faz apenas relatar uma exceção, mas nos leva a pinçar vestígios de modalidades disparatadas de presença feminina no cancioneiro popular dos anos quarenta.

O que, nos tempos integralistas e estadonovistas da história do Brasil, impede atitudes de transgressão no modo de fazer dizer o feminino é o risco de o sujeito-mulher vir a ser outro, diverso do que estava autoritariamente rubricado em discurso. Do impossível em certo tempo, vem a originalidade do presente do criador de O dono da voz. Incidentalmente, no transcorrer da entrevista, antes de se referir pontualmente à canção em que dá voz diferente ao feminino, Chico Buarque alude à ousadia de uma fala em que a mulher que perde seu homem se diz muito feliz e até muito e melhor amada por muitos outros homens: “isso é uma paulada na cabeça do homem”, exclama ele. No acolá das cantoras tradicionais e no aqui das cantoras contemporâneas, o compositor exerce, em sua criação, a transgressão do modo de incitar a fala da mulher no canto. 

Pode se interpretar, para os termos da história que esta minha análise pressupõe, que, igual à atitude criativa que teve na voz de Nara Leão o leit-motiv inspirador que resulta em Com açúcar com afeto. Foi assim que Chico Buarque criou Olhos nos olhos para a cantora Maria Bethânia em 1975. Sob o enfoque analítico aqui assumido, digo que, independentemente da intenção de seu testemunho, o que diz Chico Buarque marca um ponto de mutação discursiva. Para criar na e pela voz o sujeito feminino de Olhos nos olhos, foi preciso que a dimensão vocal intensa da enunciação exercesse seu ataque em uma performance de densidade dramática própria à mulher que toma o abandono do amante não mais como prova de sua fragilidade, mas como prenuncio de sua força e libertação. Entra em vigência, na cena do espetáculo musical que se expande do rádio e da televisão aos palcos de grandes teatros, o cantar novo em que a mulher não mais lamenta o poderio masculino, e sim o derruba, mediante um modo outro de se colocar vocalmente no confronto típico do discurso amoroso. Este é o quadro em que se pode, ainda dedilhando as cordas dos discursos que se sucedem mutuamente, especular sobre o sujeito que vem depois do grito vocal dado na partitura de Olhos nos olhos soando no auge do feminismo dos anos setenta. 

Como afirmei ao longo deste artigo, mediante a alusão que faz Chico Buarque de Holanda aos compositores antigos, fica claro que estava dado, em um tempo fora do que se coloca o compositor, o esquadrinhamento discursivo a partir do qual devia prever, na partitura de cada nova canção, as inflexões vocais possíveis para a emissão da mulher provida de um certo estatuto em certo tempo. 



REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. O Governo de Si e dos Outros .Curso no Collège de France (1982- 1983).Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Editor Martins Fontes, 2010
HOLANDA, C. À flor da pele. Direção: Roberto de Oliveira, Manaus, DVD, EMI Music Brasil Ltda., 2005.
MARTINS, S.. O poder do sussurro. Revista Veja, São Paulo, Edição 2128 / 2 de setembro de 2009. Música, p. 134-135.
MOREL, M. Valeur énoncitive dês variations de hauteur en français. Journal of French. Language Studies. Sept. 1995. Vol5, no. 2. Cambridge university press, pp. 189-202 
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001. SOUZA, Pedro de. Sonoridades vocais: narrar a voz no campo da canção popular Revista outra travessia, Jun. 2011 [S.l.], n. 11, p. 99-114

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