Ele parecia a um tempo querer nos
resguardar de um certo cinismo amargo que a vida já lhe tinha ensinado, e nos
alertar contra a adesão inocente ao ideário dominante nos meios intelectuais. Tremi ao
ouvi- lo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia mesmo ter
sido queimado. O incêndio da UNE, um ato violento de grupos de direita que
se seguiu imediatamente ao golpe de abril de 64, era motivo de revolta para
toda a esquerda, para os liberais assustados e para as boas almas em geral.
Rogério expunha com veemência razões pessoais para não afinar com esse
coro: a intolerância que a complexidade de suas idéias encontrara
entre os membros da UNE fazia destes uma ameaça à sua liberdade. O estranho
júbilo de entender com clareza suas razões, e mesmo de identificar-me com
elas, foi maior em mim do que o choque inicial produzido pela afirmação herética.
Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os
reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à UNE. Isso, que para
muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de firmeza e rigor: ele
detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que
lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais
opressores destes. Esse mesmo brilho de inteligência e essa mesma inquietação de
espírito é que tinham levado alguns lideres esquerdistas da UNE - de quem, sem
embargo, ele era amigo – a apelida-o de Rogério Caos. E o valor pejorativo
atribuído a esse apelido o magoara duplamente: chamavam de caótico exatamente
o que nele era mais lógico e construtivo, e desprezavam O Caos que ele,
em outro nível, era capaz de amar.
Em 66, poucos meses antes de eu ver Terra
em transe. Rogério me apresentara ao escritor paulista José Agrippino de
Paula. A simples presença de Zé Agrippino representava como que um aprofundamento
das idéias mais audaciosas de Rogério. De fato este me contara que, ao
ver Agrippino um dia andando na rua - um total desconhecido -, e sem que lhe dirigisse
a palavra ou dele ouvisse o que quer que fosse, disse de si para si:
"Nunca vi um homem tão inteligente em toda a minha vida". Aproximou-se desse
estranho e assim nasceu a amizade entre eles. Zé Agrippino opunha os ícones da cultura
de massas americana ao intelectualismo das nossas rodas boêmias.
Mas adivinhava-se por trás de sua iconoclastia uma valorização da literatura
de língua alemã (sobretudo Kafka e Musil, mas acho que cheguei a ouvir falar
em Hölderlin e, sem dúvida, Heidegger e Nietzsche) e de língua inglesa
(Joy ce e Melville e Swift, mas também Kerouac e Ginsberg e os beats). Ele
me impressionou, por exemplo, ao alardear que preferia de longe os filmes
de 007 a Jules et Jim, o delicado filme de Truffaut que era muito amado pelas
platéias universitárias. Agrippino não era eloqüente como Rogério e jamais explicava
ou justificava suas posições: ele impunha sua presença pétrea e deixava suas
conclusões caírem como tijolos no meio de uma roda de conversa. Com um
olhar, ele desancava o nível baixo da competitividade brasileira em todas as
áreas, destruía a tradição funcionária pública, destroçava as glórias nascidas
das relações pessoais - e exemplificava a força do chamado irracionalismo perante os
espasmos do pensamento sistemático. Sendo paulista, Agrippino já
via as coisas de uma perspectiva diferente da nossa: ter nascido no Brasil,
por exemplo, era para ele um acidente nem auspicioso nem deplorável, apenas ele
lhe media as vantagens e as desvantagens práticas com lúcida
objetividade. Que as desvantagens superassem de longe as vantagens, isso nada tinha a
ver com sua disposição afetiva em relação ao país: era apenas um dado
concreto a ser computado. Ele foi para mim, por muito tempo, uma personagem de
Rogério. Sem dúvida a anedota que este contava sobre o encontro dos dois
contribuía para essa impressão. De todo modo, ele encarnava com radicalidade um
dito que Rogério repetia e eu não sei se era uma citação: "O problema, para
mim, de escrever um romance é que eu não me contentaria em ser o autor - quero
ser o personagem". Ambos estavam, não obstante, escrevendo, cada um deles um
romance. Rogério, o que teria sido sua estréia literária se ele não o tivesse
destruído antes de tentar publicá-lo; Agrippino, seu segundo livro, uma
"epopéia" que ele intitulara Panamérica e em breve se seguiria a Lugar público, lançado
um ano antes de nós nos conhecermos.
Zé Agrippino parecia um homem das
cavernas, com sua barba negra e seu jeito pesado. Ele nunca correspondia aos
sorrisos convencionais que todos trocam entre si quando se olham casualmente, o
que me deixava muitas vezes constrangido. Mas ele não era descortês ou
grosseiro e quando um sorriso aflorava em seu rosto não vinha apenas
valorizado pela raridade mas sobretudo adensado pela verdade e inevitabilidade.
Sua namorada, Maria Esther Stockler, também de São Paulo, compartilhava
naturalmente com ele a decisão de não fazer concessões aos ritos convencionais
da convivência pequeno-burguesa. Ela, mais do que ele, exalava uma atmosfera
aristocrática que era uma permanente lição sobre a verdadeira elegância, sempre
provando como e por que algo vulgarmente considerado vulgar - um comprimento
de saia, um gesto, uma cor - podia ser, afinal, o melhor exemplo de
refinamento. Ela era dançarina e pertencia a uma família rica de São Paulo.
Os dois nunca se beijavam ou mesmo se tocavam em público. Apenas chegavam
juntos e saíam juntos. Rogério contava que, no entanto, quando ele os
hospedava na sua casa de Santa Teresa, eles às vezes passavam uma noite e um dia
inteiros no quarto, sem sair nem mesmo para comer, entregues sexualmente um
ao outro. Na praia, ela era olhada com assombro pelas carioquinhas
depiladas, porque seus pêlos pubianos escorriam com a água por sob o biquíni
pelas coxas abaixo, e suas axilas tampouco eram raspadas. No entanto, sua
imponência era a de uma rainha, enquanto as outras pareciam coristas.
Eles liam revistas em língua inglesa e,
diferentemente de Rogério, não usavam as gírias correntes ou palavrões. Pareciam
estrangeiros (embora Agrippino fosse fisicamente um tipo brasileiríssimo,
enquanto Maria Esther tinha aspecto de caucasiana pura) ou pessoas de outra época
(ele paleolítico, ela pré-renascentista, ambos do futuro).
Tanto Rogério quanto Zé Agrippino me
predispuseram a receber favoravelmente Terra em transe. Rogério era amigo intimo
de Glauber desde a Bahia e exercia sobre o cineasta forte influência pessoal.
Claro que não seria necessária uma indicação sua para que eu atentasse
especialmente para um filme de Glauber. Barravento - sobre o qual eu escrevera um
artigo elogioso num jornal de Salvador muito antes de conhecer Rogério -
me parecera extraordinariamente bonito, e Deus e o Diabo na Terra do Sol
era o mais exuberantemente sugestivo de todos os filmes do Cinema Novo. Glauber
ele mesmo era, como já contei, um mito para mim. O boca-a-boca prévio a
respeito de Terra em transe - esse titulo! – insinuava estarrecedoras novidades. Zé
Agrippino tinha visto uns copiões, não sei como, e fez comentários entusiásticos
- o que, vindo do lacônico e exigentíssimo Agrippino, soava já como uma
convocação de militância a favor. Contudo, mais do que qualquer referência
direta ao filme a que eu iria assistir, a atmosfera estética e crítica que a
convivência com esses dois me proporcionava foi determinante para que eu me preparasse
de maneira especial para recebê-lo. Duda, que chegara da Bahia para viver no
Rio e, até que arranjasse onde morar, iria ficar no meu quarto do Solar da
Fossa, foi comigo ver pela primeira vez o filme que eu já via pela terceira ou
quarta, e, apesar de minha propaganda prévia, não gostou - e disse que não gostou.
Seus motivos se distanciavam dos motivos dos esquerdistas convencionais.
Ele se ressentia mais da irregularidade estilística do filme, de suas pretensões
aparentes e objetivos falhados, do que da "política" que porventura ali se
veiculasse. Eu não deixava de concordar com suas
restrições (na verdade, como já disse, tive que passar por reservas semelhantes
para me decidir a favor do filme), mas gostaria de poder explicar-lhe à luz de
que se dava minha necessidade de louvar Terra em transe. Sem partilhar comigo o
que já se tornara um clima de gosto e de pensamento, Duda externava uma opinião
que bem podia ter sido a minha, caso eu não tivesse encontrado Rogério e
Zé. E me pareceu, por alguns momentos que eu apenas estava me
esforçando desajeitadamente para agradar meus novos mestres, para chegar a formular
opiniões que supunha serem as deles. Esse mal -estar me ensinou muito
sobre as pressões de grupo e me fez pensar em como formamos nosso gosto. Em
nossa conversa, Duda, mais uma vez, me parecia rigoroso e, sobretudo,
autêntico, enquanto eu me debatia no vazio. O curioso é que Rogério e Agrippino
nunca comentaram comigo o filme depois que ele foi exibido. Jamais cheguei
a saber se a aprovação de Agrippino ao copião se estendeu ao filme inteiro depois
de montado. E Rogério, que eu via bem mais freqüentemente, agia como se não
tivesse sequer assistido a ele. O fato é que eu estava procurando sozinho. E essa
era a minha maneira de procurar, a única possível. Além disso, é certo que o
destino nos proporciona encontros reveladores de nossas vocações íntimas. (A
história do encontro de Agrippino com Rogério, tal como era narrada por
este, não deixa de ser uma parábola sobre isso). Rogério e Zé Agrippino (não
menos do que Duda e Alvinho Guimarães já o tinham feito) ampliavam
problemas que meu espírito já conhecia em estado embrionário, os quais
se tornavam desafios que eu aceitava com voracidade.
Eu não sabia que Gobineau tinha formulado
a sarcástica definição "Le brésilien est un homme qui désire passíonnement
habiter Paris" (O brasileiro é um homem que deseja apaixonadamente morar em Paris)
quando Zé Agrippino detectou e incentivou uma tendência antifrancesa na
formação do gosto tropicalista. De fato, devia haver, entre os estímulos
do movimento, uma reação, por assim dizer, natural ao antigo alinhamento com a
cultura francesa. E essa reação era expressão de um impulso que vem se
desenvolvendo com vagar e ansiedade no espírito dos brasileiros no sentido de
desvelar ou construir seu valor próprio. Por outro lado, ela servia também a um desejo
expresso pelos produtores eruditos - desejo que, sendo um desdobramento do
modernismo, era uma marca da época - de aproximar-se da cultura de massas,
criticando-a ou identificando- se com ela, ou ainda criticando-se através dela.
Gesto que teve sua contrapartida no surgimento de um experimentalismo de
massas - que o poeta vanguardista Décio Pignatari apelidou de
"produssumo", unindo produção e consumo numa só palavra. Ora, numa redução aceitável,
pode-se dizer que a cultura francesa confundia -se, para nós, com cultura
erudita, à qual quisemos então contrapor a cultura americana, que chegava até nós
principalmente como cultura de massas. No entanto, um autor francês tinha sido,
para mim, o primeiro a sugerir essa atitude. Foi Edgar Morin - cujos livros
Rogério comentava e às vezes me lia em voz alta - quem, ao tratar as estrelas
hollywoodianas e as personagens das revistas em quadrinhos em ternos de uma
nova mitologia, abriu o caminho em minha mente para o entendimento que eu
futuramente viria a ter da arte pop, para a absorção mais intensa da
poeticidade de Godard, para todo um redimensionamento do rock'n'roll e do
cinema americano. Não deixa de ser curioso que eu aqui incluído Godard nessa
lista. Godard também era francês (embora um tanto suíço) e, não menos do
que Morin, me induziu a atentar para a poesia da cultura de massas americana,
para Hollywood, para a publicidade. Seus filmes eram - são ainda hoje - meus
preferidos entre toda a produção daquela época. Desde o momento em que Duda
me aconselhou a ver A bout de souffle que eu não apenas constatei que
tinha encontrado um novo favorito no cinema mas também que todo o cinema tinha
que ser revisto por causa dele. Terra em transe me dera tudo, num certo
sentido, mas o que queríamos fazer estaria muito mais próximo, se nos fosse
possível, dos filmes de Godard. Viver a vida, Pierrot le Fou e Uma mulher é uma
mulher são as obras fundamentais da fermentação inicial do tropicalismo. E
Masculino-feminino - com suas cenas no estúdio de gravação, seus "filho de
Marx e da Coca-cola", sua sexualidade adolescente - foi visto por mim em São
Paulo como um momento a mais no nosso cotidiano: era como ir a um ensaio
da peça de Zé Agripino e Maria Esther - ou de Zé Celso -, era como ir gravar o
Jovem Guarda, como encontrar os Mutantes, como simplesmente viver. Mais
tarde, A chinesa e Week-end funcionaram como comentários maduros sobre
a parte já vivida da aventura.
As leituras de Morin - ou mesmo as
conversas a seu respeito – jamais aconteciam em presença de Agrippino. Este
dava mostra de não ter paciência com intelectuais franceses, mesmo aqueles
que engatinhassem em sua direção. Ele - que tampouco se interessava por
Godard - estava como que anos-luz à frente de toda essa conversa que Rogério
entretinha comigo sobre o belo e depois da revolução industrial, o kitsch ("a
arte da felicidade"), os cartazes publicitários, os sambas-canções de mau gosto.
Na verdade, esse conjunto de temas surgiu
entre mim e Rogério casualmente. A princípio, nossas conversas - que se
estendiam até a madrugada no solar e não raro continuavam na casa dele em Santa
Teresa, onde muitas vezes eu ficava para dormir - consistiam em considerações
a respeito do que acontecia à nossa volta (teatro, cinema, canção popular -
além de comentários meio morais meio psicológicos sobre o comportamento de
conhecidos, ou a mera maledicência), quando não se resumiam a monólogos
inspirados de Rogério que podiam ter como tema Proust, Mozart, Heidegger,
Villa-Lobos ou Lota Macedo Soares (todos esses, autores e personagens cuja
intimidade eu não tinha sequer ambição de partilhar, bastando-me a felicidade de
ouvir Rogério sobre eles, pois, embora eu Lessa Sartre e Fernando Pessoa e Lorca
e Drummond, eu cria que o conhecimento daqueles outros era da
responsabilidade de gênios como Rogério ou de grandes e sisudos eruditos). Mas
Dedé, que arranjara um emprego num jornal, fora escalada para escrever uma
matéria sobre fotonovelas. Como, por um lado, ela não tivesse treinamento
redacional adequado, e, por outro, desprezasse e desconhecesse as
fotonovelas, pediu ajuda a Rogério. Os argumentos que ele usou contra os preconceitos
de Dedé em relação àquela forma de literatura levaram -no a expor
teorias diversas a respeito de manifestações culturais tidas como lixo.
Foi desse modo que Rogério me conduziu até Edgar Morin na verdade bem
antes que Zé Agrippino me aparecesse pela primeira vez. As idéias de
Morin de imediato excitaram minha imaginação. Zé Agrippino, quando
finalmente entrou em cena, só fez aumentar essa excitação e levar minha imaginação
mais longe, revelando interesse pelo rock em detrimento da MPB, afirmando que
Chacrinha – o espalhafatoso e original apresentador da TV brasileira -
era "a personalidade teatral mais importante do país", antevendo uma
liberdade selvagem em meio à sociedade tecnológica. Assim eu assisti a Terra em
transe com a mente assombrosamente aberta a grandes expectativas de mudanças.
Se eu me identifiquei com Rogério logo ao
conhecê-lo, foi porque minha situação entre meus colegas de esquerda na
Universidade da Bahia fora semelhante à dele entre seus amigos da UNE no Rio. Sem
que desse motivos para confrontos do tipo que ele teve que enfrentar, minha
atitude reticente em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles
uma irônica desconfiança. Eu era um desses temperamentos artísticos a que os
mais responsáveis gostam de chamar de "alienados". Minhas relações
com os colegas de esquerda eram até mesmo ternas.
Mas o primeiro artigo longo que escrevi em
minha vida - muito mais longo do que qualquer crítica de cinema que eu
tenha escrito antes - foi uma catilinária contra o livro de José Ramos Tinhorão
sobre música popular. Este era um ensaio de sabor sociológico em que a bossa nova
aparecia, por um lado, como submissão cultural ao modelo americano e,
por outro, como apropriação indébita da cultura popular pela classe média. Era
a defesa articulada do ideário nacional-popular que permeava todos os julgamentos
dos esquerdistas brasileiros. Escrevi o artigo para uma revista universitária
porque achava intolerável que aquelas idéias fossem aceitas sem discussão pelos
alunos mais inteligentes da universidade. Eu sabia que a bossa nova
era outra coisa - e uma coisa preciosa para todos nós - e produzi o texto como
uma atitude de luta: eu o queria uma intervenção eficaz na formação das mentes
das pessoas com quem convivia. A política propriamente dita - que se
manifestava na forma de campanhas para a presidência do diretório acadêmico, de
discussões em assembléias e de opiniões formadas sobre homens públicos cujos nomes
e rostos eu mal podia lembrar – e entediava. Claro que as idéias gerais a
respeito da necessidade de justiça social me interessavam e eu sentia o
entusiasmo de pertencer a uma geração que parecia ter diante de si a oportunidade de
mudar profundamente a ordem das coisas. Mas a expressão "ditadura do
proletariado" soava mal aos meus ouvidos. Quando descreviam minha reação como um
"desvio pequeno-burguês", creio que eles estavam, em certa medida, com
razão. Não era apenas a palavra ditadura que eu rejeitava; proletariado
não me parecia propriamente estimulante: eu via a pobreza miseravelmente
desorganizada à minha volta, e o "proletariado" dos artigos e dos discursos parecia
formado por operários de capacete. E operário de capacete era uma novidade que,
em Santo Amara (onde eu continuava passando as férias de verão),
aparecera recentemente com a Petrobrás, para a alegria de muitos jovens
que, em comparação com a vida que levariam não fosse por isso, sentiam-se
ricos com os salários que lhes permitiam renovar as fachadas das casas, o que
destruiu, em pouco tempo, grande parte do tesouro arquitetônico do recôncavo. Mas,
embora me sentisse dividido quanto ao que pensar ou mesmo sentir diante da
descaracterização de minha cidade - pois que, de um Lado, eu sentia saudade da
unidade visual a que me acostumara, mas, de outro, eu próprio tinha o desejo
das casas modernas taqueadas e até mesmo sonhava em morar num apartamento
novo e retilíneo que me livrasse do peso daqueles casarões cobertos de limo em
meio aos quais eu nascera e crescera (parecia-me que um apartamento de
ar impessoal traria alegria e liberdade à minha vida) -, eu me sentia,
em questões para mim fundamentais, muito mais longe do pequeno-burguês do que
os meus críticos: eles nunca discutiam temas como sexo e raça,
elegância e gosto, amor ou forma. Nesses itens o mundo era aceito tal e qual. Os
homens eram substituídos pelos assalariados - e, como já disse,
assalariado era, entre os mais pobres, raridade desejável. Eu sinceramente não achava que
os operários da construção civil em Salvador, ou os poucos operários das
fábricas reconhecíveis como tais, ou ainda os comparativamente muitos operários da
Petrobrás - tampouco as massas operárias vistas em filmes e fotografias -
pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro da minha vida. Portanto, quando
o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias
libertadoras do "povo", eu, na platéia, vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de
novas tarefas para mim.
* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário