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sábado, 16 de março de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso



DOMINGO

Eu próprio - que a essa altura não via para mim outra vida que não fosse uma vida de artista - vira surgir a oportunidade de gravar um LP. Edu, que tinha me recebido com carinho desde o dia em que cheguei de Salvador num ônibus, falava com interesse sobre minhas canções. Dori Caymmi, que eu conhecera na Bahia num passeio seu pela terra do pai Dorival, e Francis Hime, que me fora apresentado por Edu e Dori, também demonstravam entusiasmo pelo que eu parecia prometer. Eram todos jovens da minha idade e punham a curiosidade e o desejo de enriquecer o ambiente musical brasileiro à frente das ambições egóticas. Eram naturalmente generosos e excitavam-se com a relativa novidade que esse grupo de baianos apresentava. Falava-se de nós. A afinação e a beleza de emissão de Gau (era assim que escrevíamos o apelido só usado pelos muito íntimos, até que Guilherme Araújo mudou a grafia para Gal, pois a maioria das pessoas ainda a chamava de Gracinha) eram tão cultuadas quanto a sua timidez. Suponho que foi o próprio Dori - que afinal produziu o disco - quem convenceu João Araújo, então diretor artístico da Philips (atual PolyGram) e hoje chefão da Som Livre (o selo vinculado à TV Globo), a fazer um LP reunindo Gal e eu. Nós gravávamos de manhã, horário reservado aos iniciantes e especialmente inapropriado para mim que sempre dormi tarde e demoro a me sentir inteiramente acordado. Mas, embora o sentimento dominante fosse o de frustração permanente, alguma coisa do disco me agradava desde a feitura. Mais que tudo os arranjos de Dori e seu jeito de tocar violão. A voz de Gal, naturalmente, em quase tudo. E até minha própria voz em "Um dia" e, com reservas, em "Coração vagabundo" . Enquanto eu e Gal gravávamos esse disco, que veio a se chamar Domingo, Rogério e eu projetávamos um repertório para Gal que superasse tanto a oposição MPB/Jovem Guarda quanto aquela outra oposição, mais profunda, que se dava entre bossa nova e samba tradicional, ou ainda entre música sofisticada moderna (fosse bossa nova, samba-jazz, canção neo-regional ou de protesto) e música comercial vulgar de qualquer extração (versões de tangos argentinos, boleros de prostíbulos, sambas-canções sentimentais etc.).
Guilherme Araújo, que se apaixonara pela força expressiva de Bethânia desde a primeira noite no Teatro Opinião, quis passar da condição de mero produtor de espetáculos à de verdadeiro empresário, e viu no grupo de amigos de Bethânia um possível elenco de contratados à altura de suas pretensões. Guilherme era um personagem fascinante. Prognata, de braços finos e ombros estreitos, ele, que com sua feiúra combinada a um ar imodesto tinha tudo para ser repulsivo, terminava por cativar quem quer que transpusesse a barreira do primeiro impacto e realmente dele se aproximasse. Havia uma espécie de nobreza no seu jeito franco de emitir opiniões originais sobre o mundo dos espetáculos. Ele
repetia sem cessar um elogio a Bethânia que era uma síntese do seu critério: "Internacional, meu querido. Ela é a mais internacional de todas as artistas brasileiras". Para ele, nós, os outros baianos, éramos a confirmação do que ele vira em Bethânia. Éramos "chiques" e "modernos" e poderíamos ser "internacionais". Mas, embora ele tenha vindo a trabalhar de fato com todo o grupo - e tenha permanecido ao lado de Gil, de Gal e meu por muitos anos depois que Bethânia se desligou dele -, sempre me pareceu evidente que nenhum de nós jamais chegou a impressioná-lo como Bethânia o fez.
Ele abriu um escritório em Copacabana para dali dirigir os trabalhos e começou a fazer planos para seus novos contratados. Convidou Dedé para ser sua secretária. Ela, que, depois de uns meses num banco e outros num jornal, estava precisando de emprego, aceitou. Guilherme estava seguro quanto a Bethânia e Gil, cujas vidas profissionais tinham deslanchado. Mas não via nenhuma possibilidade de eu subir num palco para cantar e viver disso. Eu respondia, com uma segurança que o fazia rir incrédulo, que eu tinha certeza de ter talento para palco ou o que fosse, mas o fato é que o que ele considerava a única saída possível para mim era o mesmo que eu me imaginava fazendo: orientar os colegas, escrever canções e roteiros para seus shows, escrever releases para seus discos. Quanto a Gal, esta sim devia viver de cantar e ele via mesmo um futuro radioso para ela na profissão, bastava que nós todos víssemos que, com sua voz lindíssima e sua figura doce, ela poderia tornar-se uma espécie de nova rainha do iê-iê-iê. Não uma cantora comercial qualquer, mas uma nova forma de cantora comercial, uma super-Wanderléa com um repertório inteligente. Isso ele dizia, e sorria de nossa reação temerosa e desconfiada. Sobretudo Dedé, para quem Gal era uma quase-irmã, temia que Guilherme viesse a atirá-la na mais degradante vulgaridade. O curioso é que os planos de Guilherme para Gal eram, afinal de contas, muito semelhantes aos que Rogério e eu estávamos a ponto de lhe propor.
Eu nada dizia a Guilherme sobre isso, pois tinha medo de enfraquecer minha resistência a suas idéias mais frívolas, ou de contaminar a nobreza de propósitos do projeto rogeriano com o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial.
Uma discussão paradigmática desses conflitos sutis foi a que envolveu o nome artístico de Gal. Seu nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos. Desde Salvador, escrevíamos Maria da Graça nos cartazes e nos programas dos shows do Vila Velha, e a chamávamos de Gracinha no dia-a-dia e, carinhosamente, de Gau. Havia e há milhares de Gaus na Bahia: é o apelido carinhoso de todas as Marias das Graças ou da Graça de lá. Na verdade, no caso da nossa Gal, Maria da Graça era apenas o nome que constava na carteira de identidade e era usado como nome artístico; para todos os efeitos, seu nome era Gracinha: assim é que nos referíamos a ela em presença de estranhos, assim é que a apresentávamos a novos amigos. Na intimidade, no entanto, nós a chamávamos de Gau. Guilherme achava Maria da Graça inviável como nome de cantora. Ele concordava que era belo e nobre, mas sugeria uma antiga intérprete de fados portugueses, não poderia servir para uma cantora moderna muito menos - e aqui ele voltava a sorrir diabolicamente - para uma nova rainha do iê-iê-iê. Ele gostava de Gau.
Nós também. Em primeiro lugar porque era seu nome real (isso era fundamental para nós), e depois porque era bonito e fácil de aprender, além de ser marcante, uma vez que no Rio (e em São Paulo pelo menos) esse não era um apelido comum como na Bahia. Mas havia dois problemas: Guilherme achava vulgar e "pobre" artista de nome único (para ele era indispensável um sobrenome se o nome não fosse composto, e mesmo os nomes compostos raramente eram aceitáveis: Maria Bethânia era, é claro, uma exceção genial); e Gau, escrito assim, com u, parecia-lhe pesado e pouco feminino. Como em quase todo o Brasil Gal e Gau têm pronúncia idêntica, achamos praticamente indiferente que a grafia fosse a escolhida por ele (que se referia a uma cantora francesa chamada Francis Gal como exemplo). Restava a questão do sobrenome. Gal Penna? Gal Burgos? Guilherme, não sem razão, preferiu Gal Costa. Este era mais eufônico do que os outros dois. Ele não ousava sair dos nomes verdadeiros por saber de nossa intransigência quanto a isso. Mas eu não gostei. Eu achava que já tinha concedido o bastante em aceitar o l, que ele aceitasse o nome único: Gal, simplesmente, era a melhor solução. Mas ele insistiu no sobrenome e eu disse que  Gal Costa parecia nome inventado, parecia nome de produto, parecia nome de pasta de dentes e, finalmente, se Gau não era suficientemente feminino, Gal era abreviatura de general. Com a subida do general Costa e Silva ao poder, em substituição ao marechal Castelo Branco, Gal Costa passava a ser homônima do segundo presidente do período militar. Mas a própria Gal, de quem afinal devia ser a última palavra, aceitou o nome e ele funcionou muito bem com a imagem pop que se criou para ela.
Até hoje me irrita ouvir alguém comentar que Gal Gosta é um nome criado e que o verdadeiro nome dela é Gracinha ou Maria da Graça. Gal ou Gau sempre foi mais seu nome do que Maria da Graça, e só quem não a conhecia de perto é que pensa que seu nome íntimo era Gracinha - e, no entanto, esse nome Gal Costa teve sabor de coisa inventada para mim mais do que para qualquer outro. Hoje, que todos a chamam simplesmente de Gal, fico inteiramente em paz com essa história: é seu nome, seu nome verdadeiro, e é um nome baiano, profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da Cidade do Salvador, além de ser bonito sonoramente e o modo mais carinhoso de se a chamar. É, como queria Guilherme, internacional e pop, mas é pessoal e regional até a ponta da raiz. É um lance de poesia profunda, feito de acaso e equívocos, que serve como síntese do drama tropicalista. Mas na altura, eu, que hoje o amo mais que ninguém, fui quem mais reagiu contra esse nome. Lembro de comentar com Rogério a discussão e ouvir dele a declaração de que sempre estaria no extremo oposto de Guilherme, de quem se sabia fatal antípoda: "É impossível que o que ele planeja seja o mesmo que eu planejo, pois ele é o empresário e eu sou o desempresário". Contudo, e apesar de falar com alguma ira na voz, ele se esforçava para me fazer entender que ele pensava mais numa dialética necessária ao processo, ou, melhor ainda, numa complementaridade, do que numa competição que implicasse inimizade reles. O mais bonito de tudo foi que Roberto Carlos e Erasmo Carlos, atendendo a um pedido de fazer uma canção para o primeiro disco tropicalista que ela gravou, apresentaram "Meu nome é Gal", em que, sem nada saberem das exigências de Guilherme, insistem no apelido monossilábico e, num texto escrito para ser declamado por ela, frisam que não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem".
Gal tinha vindo da Bahia, como eu, na esteira de Bethânia e Gil, para tentar profissionalizar -se. Ela nunca tinha querido nada em sua vida a não ser cantar. Era-lhe inimaginável querer ser outra coisa que não cantora. Gil formara-se em administração e exercia a profissão; Bethânia sonhara em ser atriz e chegara a escrever contos e fazer esculturas de madeira e cobre; eu já fora pintor, quisera ser professor e ainda queria ser cineasta; mas ela seria cantora ou nada mais. Desde criança – Dedé contava – Gal usava as panelas da cozinha para fazer o som de sua voz voltar ampliado aos seus próprios ouvidos, e assim poder exercer melhor controle sobre a emissão, como se estivesse num estúdio de gravação.
Todos os jovens músicos encantavam-se com sua voz, e a colaboração com eles na feitura de Domingo estava sendo muito boa. Edu compôs uma canção "no estilo do grupo baiano" (isso era um grande elogio, pois o que ele compôs era enormemente mais requintado harmonicamente do que tudo o que fazíamos), uma canção chamada "Candeias", sobre lembranças de suas férias pernambucanas, para ela gravar no nosso disco, e até hoje considero essa a melhor interpretação de Gal nesse primeiro trabalho. Para mim, tudo se fazia possível no estúdio - minha timidez não era grande demais -, porque eu já estava merg ulhado nos novos projetos que me distanciavam do material que gravávamos. Conversando com Rogério e Agrippino, discutindo com Guilherme, ouvindo os conselhos de Bethânia sobre Roberto Carlos, ouvindo o próprio Roberto Carlos, vendo Terra em transe e Chacrinha, compondo "Paisagem útil" e "Alegria, alegria", eu cantava as canções de Domingo com considerável desassombro. Ainda assim, quando ouço hoje esse disco me espanto com o atraso com que ataco as notas e me irrito com a lentidão mental que isso revela. 
Quando estou de bom humor, atribuo isso ao horário matinal das sessões de gravação. Domingo já devia estar pronto quando Gil, que tinha deixado a Gessy Lever e se
mudara com mulher e filhas para o Rio, recebeu um convite de não sei quem em Pernambuco para fazer uma temporada de apresentações no Recife. Guilherme foi com ele. Quando os dois voltaram, Gil estava transformado. Talvez os muitos dias longe da família - e ele era então um estreante naquela solidão de viagem que excita a mente - o tivessem deixado mais sensível e receptivo aos estímulos do caráter cultural pernambucano, às insinuações da singularidade da nossa situação de brasileiros sob um governo militar que odiávamos, às contradições dos nossos projetos profissionais. O fato é que ele chegou no Rio querendo mudar tudo, repensar tudo - sem descanso, exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e impaciência. Ele falava da violência da miséria e da força da inventividade artística: era a dupla lição de Pernambuco, da qual ele queria extrair um roteiro de conduta para nós. A visão dos miseráveis do Nordeste, a mordaça da ditadura num estado onde a consciência política tinha chegado a um impressionante amadurecimento (o governo de Miguel Arraes tinha sido, até sua prisão e deportação em 64, o mais significativo exemplo de escuta da voz popular) e onde as experiências de arte engajada tinham ido mais longe, e as audições de mestres cirandeiros nas praias, mas sobretudo da Banda de Pífanos de Caruaru (um grupo musical de flautistas toscos do interior de Pernambuco, cuja força expressiva e funda marca regional aliavam-se a uma inventividade que não temia se auto-proclamar moderna - a peça que mais nos impressionou chamava -se justamente "Pipoca moderna") deixaram-no exigente para com a eficácia de nosso trabalho. Ele dizia que nós não podíamos seguir na defensiva, nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nos tínhamos metido. Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo só poderíamos entender se o penetrássemos. Dizia-se apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada "Strawberry fields forever", que, a seu ver, sugeria o que devíamos estar fazendo e parecia -se com a "Pipoca moderna" da Banda de Pífanos. Por fim, ele queria que fizéssemos reuniões com todos os nossos bem-intencionados colegas para engajá-los num movimento que desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira, para além dos slogans ideológicos das canções de protesto, dos encadeamentos elegantes de acordes alterados, e do nacionalismo estreito. Nada disso era propriamente novo para mim, exceto que tudo viesse assim de uma vez e tão sistematizado. Não deixava, porém, de ser surpreendente que partisse de Gil. Na verdade, não só muito do que ele falava já estava nos meus projetos nunca realizados com Rogério para Gal, na minha "Paisagem útil" e nas conversas de Guilherme, como o próprio Gil já vinha produzindo, com José Carlos Capinan, uma série de canções proto-tropicalistas para o filme Brasil, ano 2000, de Walter Lima Jr., um projeto larga e fundamente influenciado por Terra em transe. O modo como Walter encomendou as canções, a própria ideia do filme, faziam com que o que Gil e Capinan escreviam tivesse características do futuro movimento. Mas agora Gil vinha com uma clareza e uma veemência que quase assustavam, pois, apesar de ter tido sempre mais interesse em política do que eu, Gil é, de ordinário, adaptável e mesmo passivo. Guilherme Araújo - que tinha ido com ele para Recife - certamente aproveitara a oportunidade de estarem os dois a sós para espicaçar a ambição artística de Gil. Sim, porque Guilherme deve ser visto não apenas como um empresário com senso de oportunidade mas (talvez sobretudo) como um jovem de temperamento criativo, cujo sonho de mudar a face do show business brasileiro via no grupo baiano sua possibilidade de realização. Ele foi, de fato, um co- idealizador do movimento. Suas habilidades propriamente empresariais foram sempre muito discutíveis (embora aí também ele mostrasse originalidade) - e se tornaram bastante desastradas com o passar do tempo -, mas seu desejo de deixar uma marca indelével na história do entretenimento no Brasil realizou-se plenamente. Gil parecia antes ter usado esse empurrão dele como um detonador e um pretexto para extravasar seus próprios desejos. De repente, Guilherme agia como quem cumpre uma missão. Sem um segundo de hesitação - e já tendo me convencido a dar tanta atenção aos Beatles quanto a Roberto Carlos -, ele procurou todos os nossos colegas mais próximos e com os quais mais nos identificávamos, e marcou reuniões para conversas. Sérgio Ricardo, que tinha feito a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e se tornara um dos mais militantes dos compositores saídos da bossa nova (Carlos Ly ra tinha se mudado para o México), mostrou-se o mais interessado e combinou-se que a primeira reunião seria em sua casa. Suponho que só houve duas dessas reuniões.
Capinan, Torquato Neto, Sidney Miller, Edu, Chico Buarque e eu, além de Sérgio Ricardo e Gil, estávamos presentes a ambas. Talvez Francis Hime e Dori tenham ido a uma ou outra. Ou às duas. Não estou certo. O que lembro com clareza é que, se, por um lado, Chico, boêmio e desconfiado de programas, embriagava-se e ironizava o que mal ouvia, Sérgio Ricardo tomava algumas palavras de Gil pelo que este não quereria que elas fossem tomadas: por exemplo, "ser realmente popular" levava-o a sugerir que fizéssemos shows em portas de fábricas. Gil tinha enormes dificuldades de se fazer entender. Quando ele mencionava a música rural de Pernambuco, quase se ouvia alguém responder que Edu já trabalhava com isso satisfatoriamente; e quando ele falava nos Beatles, alguns olhos baixavam, outros arregalavam-se, todas as bocas silenciavam. Ele não ousava falar em Roberto Carlos. E, depois de uma pausa tensa, alguém se manifestava para tentar mostrar que entendera tratar-se de uma estratégia esperta e um tanto desonesta - mas fadada ao fracasso - , a qual consistiria em fazer uma música mais comercial para assim poder melhor veicular ideias revolucionárias. Enfim, Gil não chegou a desistir de se fazer entender, pois os outros é que desistiram de tentar segui-lo. Restava-nos seguir sozinhos.
Mas quem éramos "nós"? Gil, é claro, e eu, que, naturalmente, contaríamos com a participação de Gal para servir de intérprete e musa inspiradora, além de Guilherme comprando e vendendo nossas idéias. Bethânia? Ela havia sido uma das pioneiras dos deslocamentos das canções de "brega", do mais rasteiro sentimentalismo agressivo, e, ao mesmo tempo, recomendara Roberto Carlos: era uma companheira óbvia. Mas as coisas agora tinham mudado. Com a chegada de Gil de volta do Recife, todos os pontos dispersos e as tendências difusas se enfeixaram num projeto de movimento consciente e intencional que
requeria uma espécie de militância. E tanto Gil quanto eu conhecíamos o individualismo feroz de Bethânia e sabíamos que ela seria capaz de entender as mais densas das nossas idéias mas, ainda assim, mostrar-se mais resistente a se deixar comprometer do que nossos colegas compositores, que não tinham entendido nada. O que afinal se passou foi que Bethânia ficou sempre ao par das nossas decisões (e indecisões), deu freqüentemente sua aprovação, mas se manteve à parte, defendendo a sangue e fogo sua individualidade. Era a reafirmação de sua profunda inteligência em relação ao que costumamos chamar de "vida".
Os outros dois companheiros naturais eram os poetas Capinan e Torquato. José Carlos Capinan já era respeitado e famoso entre os universitários de Salvador antes de eu ingressar na Faculdade de Filosofia. Lembro da tarde em que ele me foi apresentado, em casa de Hélio Rocha, um professor de sociologia que fora integralista, tornara-se esquerda católica e mantinha uma revista cultural chamada Afirmação, cujos colaboradores eram jovens a quem ele gostava de receber para transmitir ensinamentos. Eu tinha publicado um artigo sobre Hiroshima, meu amor para a revista de Hélio, e Capinan já vinha publicando poemas ali, eu creio. O fato de ele ser chamado sempre de poeta criara uma expectativa em mim de natureza quase sacra (embora não fosse uma emoção intensa), e sua figura franzina de menino amarelo e sardento do sertão, tocantemente tímido (mas eu próprio me sentia mais tímido), me pareceu angelical, ou essencialmente artística, como se ele fosse a alma redimida do "soldado amarelo" do livro de Graciliano Ramos ou uma imagem de barro pintado representando um menino com uma gaiola de passarinhos, feita por um artista do Nordeste. Vi desde esse primeiro momento que eu gostaria dele sempre, e que sempre seria difícil nossa comunicação, ainda que sem conflitos. Não havia identificação fácil em áreas da personalidade que servem à comunicação - e havia demasiada identificação em regiões mais fundas e misteriosas: ele tinha a desconfiada aridez do sertanejo que apreende tudo como se fizesse esforço, e eu, a doce receptividade do habitante do recôncavo, que julga receber de graça os dons e as dores; ambos, no entanto, estávamos apaixonados pelas palavras e pelas imagens invisíveis. 
Capinan sempre estivera á minha esquerda, digamos assim. Atuante no CPC da UNE, ele era o poeta revolucionário - o poeta engajado - da Bahia do inicio dos anos 60. Eu, que olhava com certo descrédito tanto as certezas políticas que alimentavam seus poemas quanto a prática de fazer poemas nascerem de certezas políticas, quaisquer que fossem, entrevia em sua atmosfera pessoal - e no que conhecia de seu trabalho - alguma coisa que estava muito além disso. Em suma, ele me parecia um poeta de verdade - e eu o considerava naturalmente
superior a mim por isso, a despeito de minhas reservas para com a poesia participante. No momento de preparação do tropicalismo, ele, também já morando no Rio, depois de algum tempo escondido para escapar à prisão em 64, estava amadurecendo os poemas que comporiam seu livro Inquisitorial, em que o amor pelas palavras e pelas imagens invisíveis predomina sobre a retórica ideológica. E quando isso acontece, naturalmente a própria ideologia se complexifica e se adensa, se transfigura. Embora ele politicamente estivesse na posição de estranhar nossas novas idéias, nunca se escandalizou com o que quer que disséssemos. Perpassadas de um humor cáustico e irônico, quase sádico, suas conversas eram, no entanto, amenas e nunca desembocavam em discussão. Ele antes tendia a complementar nossos raciocínios com enriquecedores corolários que por um triz não nos levavam para longe dos nossos interesses. Ficava sempre a impressão de que ele entendera bem demais, o que é o mesmo que dizer que ele não entendera. Desse modo, as conversas com ele, ainda que pacificas, não deixavam de ser algo tensas. E tanto mais o eram quanto a cada passo ficava patente que seu inevitável distanciamento - sua involuntária independência - se devia à originalidade de seu projeto pessoal como poeta, o qual crescia paralelo à sua atividade como letrista de musica popular. Havia nele como que uma pureza que o punha acima das bossas, elas manhas, das malandragens comuns do ambiente boêmio que freqüentávamos. E que ele passava muitas horas trabalhando seus poemas, ou lendo extensivamente poetas vários (eu adorava que ele me lesse poemas escolhidos de Miguel Hernández, que antes disso eu só conhecia de nome citado num poema de João Cabral) ou estudos sobre poesia (relevantíssimo que ele me tenha querido atrair o interesse para um livro de dois irmãos paulistas, poetas que não o entusiasmavam embora instigassem, como ele me disse, cujos nomes não guardei - eram Augusto e Haroldo de Campos, os líderes do movimento de poesia concreta surgido nos anos 50 e que viriam a ter participação intensa na história futura do tropicalismo -, embora nunca tenha esquecido o nome do autor que a dupla tratava de ressuscitar criticamente: Sousândrade, o singularíssimo poeta romântico maranhense cujo "Inferno de Wall Street", com suas estrofes capsulares e multilíngües, seu tratamento dos aspectos materiais dos versos e suas imagens hermetizantes e inusitadas, que antecipavam - e até ultrapassavam – alguns procedimentos modernistas, Capinan me exibiu, conseguindo causar viva impressão em mim, sem, contudo, me fazer parar para estudar: eu estava demasiadamente envolvido nos escândalos que eu próprio queria desencadear).
Ao contrário de Capinan, Torquato Neto parecia entender imediatamente o que queríamos dizer, mas estava sempre disposto a discutir. Conversar com ele não representava para mim nenhuma tensão. Tínhamos uma identificação fácil e as discussões eram amigáveis. Ele me fora apresentado por Duda, em Salvador, aonde ele tinha vindo de sua Teresina natal para passar algum tempo antes de seguir para o Rio.
Também ele andava às voltas com um caderno cheio de poemas que um dia possivelmente seria um livro. Torquato adorava Drummond e suas poesias eram francamente drummondianas. Todas me pareciam bonitas, elegantes, soavam bem, sensíveis e sóbrias, delicadas e longas - e não tinham a ingenuidade política de Capinan. Mas a minha opinião sobre seus poemas não era diferente da sua própria: era como se ele ainda não tivesse feito o primeiro. E a ele faltava aquele comprometimento que fazia de Capinan um poeta, talvez bom poeta, talvez não tão bom, mas um poeta.
Torquato não errava, mas não estudava o bastante, não se sentia gravemente responsável pela poesia. Embora seu ouvido para os ritmos e para as rimas fosse muito mais espontaneamente sensível do que o de Capinan, e a delicadeza de sua imaginação sempre parecesse mais fluente. Vivíamos no mesmo mundo: a comunicação entre nós era rápida e divertida. Diferentemente dos baianos, que tínhamos todos desenvolvido algum tipo de critica ao Rio de Janeiro, Torquato adorava o Rio à maneira dos imigrantes tradicionais, desejoso de afastar-se rapidamente de sua província de origem e integrar-se na vida carioca. Ana, a namorada com quem em breve se casaria, uma mulher inteligente e de personalidade muito forte, embora fosse baiana de nascimento tinha crescido no Rio e dizia rindo que odiava o sotaque que nós trazíamos de Salvador. Torquato gostava de sentir-se atuando na mesma cidade em que Antônio Maria atuara, em que Otto Lara Resende atuava, em que Rubem Braga atuava. Sobretudo, parecia-lhe um perpétuo milagre que ele vivesse na mesma cidade em que viviam Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues.
Por vezes, ele seguia um desses dois personagens na rua, sem se deixar perceber (assim ele acreditava), e era como se tivesse participado clandestinamente de um ritual secreto. O fato de um fotógrafo do centro da cidade exibir em sua pequena vitrine a ampliação de uma foto de Drummond, enchia-o de emoção. Não sei bem por intermédio de quem, ele foi introduzido nas reuniões da casa de Tereza Cesário Alvim, de onde voltava com histórias sobre Paulo Francis e Flávio Rangel que lhe pareciam sempre mais saborosas do que a mim que o ouvia com agrado, mais interessado nele do que no objeto dos seus relatos. As vezes ele confessava que seu grande desejo era tornar-se jornalista no Rio, manter uma coluna. Comprazia-se em pedir a todos os motoristas de táxi que o conduziam pela Zona Sul, que tomassem a praia, pois – e aqui ele olhava sério para o motorista como se fosse a própria sensibilidade lírica desafiando o espírito prático - "é mais bonito". Os motoristas cariocas, metropolitanos práticos porém poéticos, fingiam não ouvir esse último adendo, e Torquato sorria maroto para mim, duplamente feliz: por fazer seu pequeno número de personagem folclórico da cidade, e por reassegurar-se de que essa cidade era o Rio de Janeiro. Eu o adorava. Nem com Duda, nem com Rogério, nem com Capinan, muito menos com Zé Agrippino - ou mesmo com Gil, cujo cerrado companheirismo que nos unia nunca tomou a forma de uma amizade intima e confessional - , eu me sentia tão à vontade como com Torquato. Ele bebia muito, às vezes mostrava-se depressivo, e terminou se suicidando - fim de longa série de tentativas malogradas - em 72, mas leveza é a palavra mais adequada para descrever a atmosfera que se instaurava para mim à sua aproximação.
Ele tinha feito parceria com Edu ("Pra dizer adeus", uma linda canção da dupla, tornou-se, como se diz, um clássico), e, da segunda metade de 66 até mais ou menos o meio de 67, manteve estreita amizade com Chico Buarque, que a essa altura já estava estabelecido no Rio com Marieta Severo. Chico era meu camarada de noites bêbadas em São Paulo, ao lado de Toquinho (que não bebia), antes de sua mudança para o Rio.
Eu ia a São Paulo participar de uma série de programas na TV Record, na qual caí por acaso. A canção "Boa palavra" - que eu tinha escrito no primeiro semestre de 65 e à qual não dava muita importância - terminou sendo classificada em quinto ou sexto lugar no festival da TV Excelsior, e havia um prêmio. Fiz algumas viagens a São Paulo para ir buscar esse prêmio (era alguma coisa como uma passagem de ida e volta a Roma ou o dinheiro equivalente - e eu queria o dinheiro equivalente, pois pagava o aluguel do Solar da Fossa com os incertos direitos de "De manhã"), mas nunca consegui receber nada. Bethânia, já na fase dos shows de boate, tinha sido convidada para participar de um programa na Record chamado Esta Noite se Improvisa, que consistia numa competição entre cantores e compositores a quem era dita uma palavra para que um deles - aquele que com mais rapidez apertasse um botão que acendia um painel luminoso a seus pés - cantasse uma canção que a contivesse. Bethânia estava insegura, pois, embora fosse profissionalmente bom aparecer na TV Record, ela não tinha jeito para esse tipo de brincadeiras, e temia não acertar uma musica sequer.
Tentando mostrar a ela que aquilo era fácil (na verdade, era um jogo que fazíamos nas mesas do Cervantes, muito antes da existência do programa), sugeri que treinássemos: eu dizia uma palavra e ela tentava lembrar uma música, ela então dizia uma para que eu tentasse, sempre crescendo em dificuldade (de palavras freqüentes como flor ou coração até palavras raras como lancha ou considero). Estávamos numa lanchonete próxima à TV Record, onde Bethânia tinha de se apresentar para o ensaio. Rimos muito, pois enquanto Bethânia titubeava, eu não só localizava cada palavra numa canção como quase sempre a sabia cantar inteira. Um homem bonito e grisalho, que estava sentado num banco alto junto ao balcão, acabou de tomar o seu lanche, pagou e se dirigiu a nós dizendo: Eu sou Nilton Travesso, produtor da TV Record, como vai, Bethânia?', e, fazendo uma menção com o rosto em minha direção: "Quem é ele?". Travesso já sabia de minha existência por causa de "De manhã" e, confirmado o que já suspeitava, isto é, que eu era o irmão de Bethânia que compunha canções, ele me convidou ali mesmo para participar do programa. Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários.
Chico Buarque era meu maior competidor, com uma vantagem: seu repertório era extenso como o meu e sua memória igualmente fresca, mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bem-feitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa. Ganhamos vários automóveis Gordinis – que vendíamos automaticamente sem sequer averiguar se perdíamos ou não alguma coisa nessa venda - nos meses que se seguiram à minha estréia. E eu fiquei, além de famoso, rico, para os meus padrões. Passei a ir quase semanalmente a São Paulo.
As noitadas com Chico e Toquinho eram deliciosas, e com isso São Paulo deixou de ser o lugar detestável da minha primeira experiência. Guilherme, que a essa  altura se dividia entre São Paulo e Rio (e tentava nos convencer de que o Rio tinha sido ultrapassado), alugara um apartamento na avenida Paulista, onde me hospedava. Chico tinha um carro e sabia tudo da cidade onde crescera e estudara. Muitas vezes ele bebia demais, e nós tínhamos que acordá-lo para que nos levasse de volta para casa. Não nos dava medo o fato de ele ir praticamente dormindo até o assento do carro no qual, uma vez dada a partida, ele exibia uma destreza surpreendente. Toquinho era um rapaz doce e sólido, muito brincalhão,
mas sem malandragem, o típico paulista que parece ingênuo aos olhos dos outros brasileiros. Chico, com seus lindos olhos verdes que fixavam-se em nós com uma dureza diabólica, era dono de um humor mais sádico do que o de Capinan. Nessa época, sua beleza era extraordinária, mas, entre angelical e demoníaca, quase divina em todo caso, não me parecia sexualmente atraente, ao contrário da de Toquinho, cujos braços e pernas de matéria compacta e pele morena homogênea faziam surgir de vez em quando em minha mente uma alegre e vaga promessa homoerótica, o que me levou a brincar de chamá-lo, sem que isso causasse constrangimento, "meu noivo". Na verdade, as meninas eram o tema mais freqüente das nossas conversas. Chico fazia ciúmes de suas namoradas comigo e por vezes chegava a dizer a Dedé, no Rio, que eu as assediava. Uma noite ele me pediu que o acompanhasse à porta da casa de uma antiga paixão sua, cujos pais não  queriam que ele namorasse, e que estava voltando naquele dia da Europa, onde passara longo tempo, para que lhe fizéssemos uma serenata. Estávamos todos bêbados e eu terminei subindo na árvore em frente à janela da moça, de onde cantei não sei se uma velha seresta ou uma canção do próprio Chico. Dedé ria das histórias que ele contava, mas me fazia perguntas ansiosas quando ficávamos a sós. A única vez que trai Dedé com uma dessas meninas de São Paulo, não foi com uma namorada de Chico, mas de Toquinho, e foi no Rio. E Chico nem chegou a saber. Uma vez, foi aos nossos amigos em São Paulo que Chico assustou com uma história a meu respeito. Assim como eu ia muito a São Paulo, ele vinha muito ao Rio.
Numa de suas voltas, ele contou, com grave discrição, que eu tinha enlouquecido. Manteve a mentira até que eu aparecesse por lá. A notícia se espalhou entre os conhecidos, naturalmente, e Chico chegou ao requinte de detalhar para Toquinho, que ficara consternado, uma visita que Bethânia me teria feito no sanatório: quase chorando, ele repetia o que eu teria dito ao vê-la na porta do quarto: "Sai, carcará! sai, carcará!". Quando voltei a São Paulo, encontrei diversas pessoas que se surpreendiam ao me ver, me olhavam demoradamente, prestavam demasiada atenção no que eu dizia. Muitos perguntavam: Você está bem?". É claro que eu reagia de modo estranho, o que reforçava a história inventada por
Chico. Toquinho é que, depois de observar minhas respostas - pois ele tinha ousado fazer perguntas mais diretas -, teve a iluminação:" Filho da puta!", ele disse, "Chico é um filho da puta!". E riu, ainda um pouco contrafeito. Com o passar do tempo, Chico, que a essa altura já era uma grande estrela - de certa forma, ele tinha passado a ocupar o lugar de Edu, com o estouro da singela marchinha "A banda" no festival da Record de 66 -, foi se demorando mais e mais no Rio, até que veio de vez e, paradoxalmente, por morarmos na mesma cidade passamos a nos ver menos. Ou talvez tenha sido simplesmente que eu, à medida que ele se transferia para o Rio, fui me demorando mais e mais em São Paulo. Mas cheguei a presenciar um dos primeiros encontros determinantes entre ele e Marieta, numa festa no Solar da Fossa. E depois que eles passaram a morar juntos eu os visitava de vez em quando. Mas Torquato criou o hábito de frequenta-los assiduamente.
Não foi sem desconfiança que Torquato recebeu as primeiras noticias de que nós nos empenharíamos em subverter o ambiente da MPB. A essa altura, eu já me sentia profissionalmente estável: as apresentações semanais no Esta Noite se Improvisa me asseguravam algum dinheiro e fama, e minha canção "Um dia" tinha ganho o prêmio de melhor letra no mesmo festival que consagrara Chico. Na altura das reuniões de catequese organizadas por Gil, Torquato já tinha aderido ao ideário transformador: os Beatles, Roberto Carlos, o programa do Chacrinha, o contato direto com as formas cruas da expressão rural do Nordeste - tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizado com espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão da totalidade do corpo de ideias que defendíamos. Ele superara as resistências iniciais por possuir uma inteligência desimpedida. A partir de então, sua concordância com o projeto passou a ser orgânica, e se algo podia parecer preocupante era justamente sua tendência a aferrar-se aos novos princípios como dogmas e a desprezar antigos modelos com demasiada ferocidade. Enquanto Capinan parecia ocultar no fundo da alma o que sempre restaria de resistência aos riscos antinacionalistas, antipopulistas e até vulgarizantes de nossa empreitada, Torquato, demonstrando entender de fato o sentido de se assumirem esses riscos, mostrava-se pronto para se tornar um arauto algo intransigente.
Uma discussão que lembro ter tido com Torquato é reveladora de sua maneira de viver a passagem. Creio que, já em 67, começou-se a falar num filme B brasileiro de que Glauber tinha gostado, À meia-noite levarei tua alma, dirigido pelo paulista José Mojica Marins. Tratava- se de um filme de terror feito com a precariedade de um espetáculo de circo miserável em que Glauber dizia ter entrevisto um Nietzsche primitivo. O diretor - seu nome (real), José Mojica, tirado do de um ex-frade cubano (ou mexicano) que fez fama nos anos 50 cantando canções sentimentais com empostação lírica, era já uma obra-prima de kitsch latino- americano - circulava usando a mesma capa preta e as longas unhas exibidas pelo tipo que criara no filme (e nos filmes que fez subsequentemente), um blasfemador macabro chamado Zé do Caixão.
Era já interessante que ele fosse um estreante independente, uma figura solitária no panorama do cinema nacional. E, ao contrário de Walter Hugo Khoury, um outro franco- atirador, autor de filmes europeizados e francamente elitistas, Marins era – em todos os sentidos - popular. No filme, ele ao mesmo tempo que expunha as imagens reveladoras da nossa miséria, investia contra as convenções religiosas inimigas de uma vontade individual desassombrada. O imaginário católico aparecia mesclado à pornografia do terror. Tudo isso com truques visuais risíveis e diálogos que revelavam semi-analfabetismo. Torquato insistia em que era puro charme de Glauber (e meu) demonstrar interesse estético por tal monte de lixo. Ele não acreditava que eu visse ali uma versão radical do que Glauber tinha tentado em Terra em transe. Mas era de fato difícil, àquela altura, admitir-se uma postura crítica que, pouco mais tarde, veio a ser lugar-comum (passou-se a rever A mosca da cabeça branca, Freaks, O incrível homem que encolheu com olhos deslumbrados no Electric Cinema de Londres em 69, quando cheguei lá: e o próprio Torquato é ainda hoje lembrado por sua participação como ator em Nosferatu no Brasil, filme feito nos anos 70 por Ivan Cardoso, iniciando um culto a Mojica Marins e afins, culto esse defendido com ferocidade por Torquato na coluna que assinava então num jornal carioca, de onde dirigiu, em nome de um cinema "marginal", uma campanha contra o Cinema Novo com a qual eu nunca consegui me identificar.)
Mas Torquato estava mais próximo de mim também em compreender que, se Capinan se dispunha e preparava para ser o que antigamente se chamava de poeta, nós outros tentávamos descobrir uma nova instância para a poesia. De fato, eu acreditava estar esboçando um modo de ser poeta que não dependesse dos ritos tradicionais do ofício. Tinha a ilusão de que se podia utilizar o hábito de chamar os sambistas de morro de poetas - e a adesão total de Vinícius de Moraes, um poeta de verdade, à canção popular - para entrar em ligação direta com a grande poesia, através da combinação da feitura de canções com uma postura pública que atuasse sobre o significado das palavras. Na verdade, eu nunca tinha, até então, ousado pensar em ser poeta: minhas tentativas se deram no desenho e na pintura, na prosa crítica (cinema e música popular) e na canção; "poeta" inspirava demasiada reverência, metia medo e vergonha, eu tinha sempre me retraído ante a ideia. Mas eu imaginava para mim, desde criança, uma espécie de "grandeza", alguma forma elevada de celebridade que eu já estava acostumado a considerar uma fantasia perfeitamente dispensável mas que me dispunha a cumprir (e mesmo a desejar) se me parecesse que a oportunidade se apresentava: a palavra poeta encerrava tal grandeza como nenhuma outra poderia, e, mesmo que um tanto secretamente, eu a acolhi em meu coração e
procurei aplicá-la ao que eu fazia e faria - embora não fosse poesia. Mas o fato é que eu já considerava João Gilberto um artista maior, em todos os sentidos. Um poeta, pelas rimas de ritmo e de frase musical que ele entretecia com os sons e os sentidos das palavras cantadas. Um criador revolucionário como Glauber - sem os defeitos: sem mão pesada ou inábil. Á altura de João Cabral e de João Guimarães Rosa, mas atuando para uma larga audiência, e influenciando imediatamente a arte e a vida diária dos brasileiros. Eu podia ser um pouco Glauber, um pouco João Gilberto, com esse novo repertório de idéias que lançaríamos no seio da música popular. E a música popular é a forma de expressão brasileira por excelência.
Sentia-me assim superexcitado pelo que se delineava diante de mim. E Torquato entendia minha excitação e, desde que se converteu ao ideário, partilhava-a comigo.
Hoje considero o ridículo da pretensão de ser "meio Glauber, meio João Gilberto". Mas o ridículo não reside em a pretensão ser demasiado grande - as ideias pretensiosas, mesmo quando ridículas, são motor e sinal de energia criadora. O ridículo está em ser errada a equação. Felizmente não se faria possível ser "um pouco Glauber, um pouco João": isso era
apenas um modo tolo de eu me dizer que tinha de me tornar eu mesmo.






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