A Polêmica ganha forma
Em 1951, o apaixonado “homem de rádio” e pesquisador Almirante produziu e apresentou uma série radiofônica de grande sucesso, No tempo de Noel Rosa, que desaguaria anos depois numa biografia do compositor. Era o início do resgate da memória de Noel, depois de uma década de relativo esquecimento.
Com sua atuação nos anos 1950 cada vez mais reduzida ao carnaval, Wilson não esperava muito dos meios de comunicação. Talvez por isso tenha lhe parecido lisonjeiro participar do programa, no episódio sobre a polêmica musical ocorrida quinze anos antes – mesmo que isso significasse compactuar com a versão “rearranjada” por Almirante para ir ao ar. Sintonizado com o gosto de seus ouvintes – em geral donas de casa com um olho no ferro de passar e o outro na leiteira quase fervendo –, Almirante jogou a morena do Dancing Apollo para baixo do tapete e dignificoua motivação de Noel ao iniciar a contenda com Wilson. Segundo o radialista, Noel respondera a “Lenço no pescoço” movido “por um louvável interesse pela regeneração dos temas poéticos da música popular”. Logo quem. Amigo de malandros perigosos como Baiaco, Meia Noite e Zé Pretinho, Noel Rosa – para desespero da mamãe D. Martha – vivia a léguas do politicamente correto (conceito que, aliás, nem existia). Seu fascínio pela malandragem está presente em sambas como “Capricho de rapaz solteiro”, gravado por Mário Reis no mesmo ano em que Sylvio Caldas gravou o “Lenço no pescoço” de Wilson: “Nunca mais essa mulher / Me vê trabalhando / Quem vive sambando / Leva a vida para o lado que quer / De fome não se morre / Nesse Rio de Janeiro / Ser malandro é um capricho / De rapaz solteiro”.
Ao criar um canto claro para Noel no ringue da Polêmica, tirando de cena a dançarina do Apollo, Almirante não se perguntou: a quem caberia o canto escuro?
Vilão da Polêmica
A participação de Wilson num dos capítulos de No tempo de Noel Rosa, com direito a apressada palinha de seus maiores sucessos, é, ironicamente, um dos poucos registros de sua voz falada. Ele vestia ali, com indevida humildade, uma carapuça aderente, vendendo-se como um anti-Noel. E o que tinha sido apenas uma chanchada entre colegas na disputa por um rabo-de-saia, restrita à galhofa das rodas de compositores, ganharia, com o passar dos anos, cores de um duelo quase épico, rendendo análises sociológicas profundas que contrapunham Vila Isabel x Estácio, Branco x Negro, Civilização x Malandragem. Num processo similar ao de Carmen Miranda (dadas as roliudianas proporções), em que a Carmen-cantora foi ofuscada pelo brilho de seus arranha-célicos turbantes, o Wilson-craque-da-composição foi sendo empurrado para a sombra pelo patético Wilson-vilão-da-Polêmica.
A Odeon sai na frente
A ideia de gravar a Polêmica na íntegra (como fora apresentada no programa de Almirante) ganhou força a partir do advento do disco de dez polegadas, em meados da década de 1950. O formato – em geral, quatro faixas de cada lado – era perfeito para abrigar a série de sambas que compunham o “duelo musical”, dos quais permaneciam inéditos em disco “Mocinho da Vila”, “Conversa fiada”, “Frankenstein da Vila”, “Terra de cego” (todos de Wilson) e “Deixa de ser convencida” (de Wilson e Noel).
Em 1953, a Revista do Rádio anunciou que Wilson Baptista planejava “regravar os desafios que fez com o saudoso Noel Rosa”. Mas só no final do ano seguinte a coisa pareceu andar: segundo um Diário Carioca de novembro de 1954, o disco se chamaria Polêmica, sairia pela Continental, e teria suas gravações iniciadas no mês seguinte – com Aracy de Almeida, e não Wilson, ao microfone. Meses depois, a imprensa ainda noticiava o disco como um projeto a ser realizado. Seria o terceiro de Aracy devotado a Noel na Continental – a cantora já lançara Aracy de Almeida apresenta sambas de Noel Rosa (1954) e Canções de Noel Rosa com Aracy de Almeida (1955). Mas a Odeon passou a frente e frustrou os planos de Aracy.
Diz a revista Radiolândia em junho de 1955: “O cronista Alberto Rego, conhecido caititu (gíria para divulgador musical), tanto fez e mexeu que conseguiu uma coisa que toda gente julgava difícil: a gravação da famosa polêmica musical entre Wilson Baptista e o falecido Noel Rosa. Esse disco, que a Continental chegou a anunciar, será feito pela Odeon, que quebrará assim um velho encanto. E viva o Borocochô (apelido de Rego)!” Nos primeiros meses de 1956, de fato, Polêmicachegou às lojas, com o selo da Odeon impresso na linda capa ilustrada por Nássara e os cantores Francisco Egydio e Roberto Paiva dando voz a Noel e Wilson, respectivamente. Em poucos anos, se tornaria um item de colecionador.
Capa do disco Polêmica (Odeon MODB 3.033), com caricaturas de Noel e Wilson assinadas por Nássara (parceiro musical de ambos).
Anúncio do disco Polêmica em jornais de 1956.
Rua do Rezende
“Foi um disco apressado” – lembra Roberto Paiva, memória tinindo aos 91 anos de idade. “Fui convidado pelo Lentine, diretor artístico da Odeon. Me passaram as partituras, ensaiei com um pianista amigo, da Rádio Nacional, e em poucos dias estava gravando. Gravei todas as músicas de uma vez só, num estúdio provisório, bem precário, que a Odeon teve na Rua do Rezende, quase esquina com Mem de Sá, antes de se mudar pro Edifício São Borja, na (Avenida) Rio Branco.”
Não havia bairro melhor que a Lapa para eternizar as músicas de Wilson, lapeano de carteirinha. Quanto às de Noel, diz Roberto, foram gravadas por Egydio no estúdio da Odeon em São Paulo. Roberto e Egydio não estiveram juntos – somente meses depois, quando cantaram a Polêmica em um programa de TV paulista. Wilson Baptista, então com 43 anos incompletos, não foi ao estúdio assistir à gravação de suas músicas, nem se envolveu diretamente. Roberto o conhecia de vista do Nice, e só se tornaram mais chegados na década seguinte, durante uma viagem a Salvador. Mas isso é outra história.
Infelizmente, Roberto não se lembra de quem fez os arranjos musicais do disco, nem dos músicos que participaram. Nenhum deles é creditado. Pelo trabalho, ganhou um bom cachê. E não ficaria muito tempo longe do estúdio da Rua do Rezende. Meses depois, convidado por Aloysio de Oliveira, ali retornaria para gravar outro clássico: Orfeu da Conceição – simplesmente a estréia em disco da parceria musical de Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes.
Dona Vitrolina chorou!
Polêmica não foi bem recebido pela crítica. Ouvi-lo, hoje, é ouvir a um disco delicioso e histórico, apesar de serem difíceis de entender algumas de suas falhas – ainda mais em se tratando de um projeto acalentado por tanto tempo, envolvendo um dos protagonistas (Wilson) e uma testemunha direta (Nássara).
O principal erro foi a inclusão de “João Ninguém” no repertório – um samba de Noel que nada teve a ver com a disputa musical –, em detrimento de “Deixa de ser convencida”, a parceria de Wilson e Noel que coroou a série selando a amizade dos dois. “Dona Vitrolina”, crítica musical de Radiolândia, foi implacável:
“Dona Vitrolina chorou!… ouvindo a Polêmica do Noel Rosa e Wilson Baptista, lançada em LP pela Odeon. Levou-se tanto tempo para concretizar tão boa ideia e afinal fizeram um negócio sem expressão, apressado, aquém das tradições daquela discussão musical. Por que não puseram um bom narrador explicando os lances, música após música?”
R. R., colunista de O Jornal, não deixou por menos: a inclusão de “João Ninguém” no disco era uma “aberração”, os arranjos, “de gosto duvidoso”, e a interpretação de Egydio, “pouco recomendável” – faltando-lhe humor e simplicidade. Finaliza R. R.: “É também alarmante o número de erros de revisão que figuram no LP, e que parecem implicar em certo descuido por parte da gravadora, microssulco que, de qualque forma, é de grande importância.”
Mea culpa de Wilson
Wilson e o disco Polêmica em foto de divulgação, 1956.
Mesmo assim, o lançamento de Polêmica proporcionou algumas alegrias a Wilson, que voltou a figurar com mais frequência em jornais e a ser convidado para participar de programas de rádio e TV. Mas o preço era alto: com uma obra de cerca de quinhentas músicas gravadas (repleta de sucessos), cadernos transbordando de músicas inéditas e mil histórias para contar, Wilson via-se limitado a responder sempre às mesmas perguntas, em entrevistas que começavam, invariavelmente, com uma palinha dos sambas da Polêmica, passavam pela constatação de que Noel era um gênio e terminavam com Wilson se justificando por ter brincado com o defeito físico do “rival” em “Frankenstein da Vila”. Me espanta que a fixação de todos pela polêmica entre Wilson e Noel tenha varrido do mapa outras polêmicas musicais, como a que houve entre Pixinguinha e Sinhô em fins da década de 1910, e que resultou em sambas nem sempre cordiais. “Já te digo” (de Pixinguinha e seu irmão China) é um exemplo de zoação cruel com a aparência de Sinhô: “Ele é um cabra muito feio / Que fala sem receio / E sem medo do perigo / Ele é alto, magro e feio / É desdentado / Ele fala do mundo inteiro / E já está avacalhado / No Rio de Janeiro.” E não consta que seus autores tenham passado uma vida se desculpando em praça pública.
Em 1964, Wilson ainda era procurado pela imprensa para falar da Polêmica e “tirar o chapéu para Noel”.
Apenas um detalhe
Num Sexta Super da Rede Globo exibido em 1977, depois de dizer que, na sua opinião, “Wilson Baptista é o maior sambista brasileiro de todos os tempos”, Paulinho da Viola aproveitou a oportunidade para puxar a orelha dos telespectadores: “Pena que só é lembrado quando se fala da polêmica com Noel. Na verdade, a Polêmica na obra dele é apenas um detalhe.”
Um detalhe, apenas, dentro de duas obras de gênio – as de Wilson e de Noel. Mas que todos nós, amantes do samba, jamais deixaremos de cultuar e ouvir.
Playlist com as músicas do Acervo do IMS que aparecem sublinhadas no texto, aqui.
Rodrigo Alzuguir é produtor, ator, músico e pesquisador. Lançou uma biografia de Wilson Baptista.
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