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terça-feira, 26 de março de 2019

A MPB SOB SUSPEITA: A CENSURA MUSICAL VISTA PELA ÓTICA DOS SERVIÇOS DE VIGILÂNCIA POLÍTICA (1968-1981) - PARTE 05

Por Marcos Napolitano*




RESUMO: A partir de fontes pesquisadas junto às coleções documentais da polícia política ligadas ao regime militar brasileiro, podemos vislumbrar não apenas o impacto do autoritarismo na cena musical brasileira, entre 1968 e 1981, mas também a lógica da repressão e do controle do Estado autoritário sobre os músicos. Nesse período, o controle da circulação das canções e da realização de shows com cantores esquerdistas (ou simpatizantes) marcou a atuação dos órgãos de censura e repressão, voltados principalmente (mas não apenas) contra o gênero MPB. Neste trabalho, analisaremos o imaginário produzido pelos agentes repressores e a “lógica da produção da suspeita” sobre a MPB. Palavras-chave: Brasil: Música e Política; Brasil: regime militar; Resistência democrática.



A interpretação de Cálice, feita em parceria com Chico Buarque, já proibida pela censura, aliada aos fatos notórios de que participara dos festivais dos anos 60 e era ligado a Chico Buarque de Hollanda, surge como peça acusatória. A rigor, essas informações não necessitariam de nenhum serviço de espionagem, na medida em que eram públicas. Mas dentro da lógica dos textos produzidos pelos serviços de informação eram travestidas de revelação grave e solene, valorizando não apenas a suspeição sobre o vigiado, mas também a ação pretensamente perspicaz dos serviços de inteligência. Ao pesquisarmos as fichas do DOPS por nomes de compositores e cantores, percebemos que os documentos produzidos pelos agentes mapeiam as suas aparições públicas em shows e eventos ligados aos movimentos sociais, sem se preocupar com o conteúdo das obras (foco da ação da censura). Portanto, a suspeita era produzida pela circulação social do artista em si, para além do conteúdo da sua obra. Elis Regina, por exemplo, é citada pela sua participação nos shows na Campanha da Anistia (PUC, 14/8/79; Parque São Jorge, 17/8/79), em apoio ao movimento operário (ABC, 3/4/79, durante a segunda grande greve metalúrgica), e em espetáculos estudantis (show “Gente”, 12/77, shows na USP, 10/8/79 e 17/8/79). Milton Nascimento é citado por suas participações em festivais de MPB nos anos 60 (Informe de 4/77), pela sua participação na “semana de liberdades democráticas”, pela sua presença na Reunião Anual da SBPC — Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1976 e 1977. Ivan Lins é citado várias vezes, principalmente a partir de 1977, pela participação em espetáculos estudantis e pela presença nas reuniões da SBPC. Nota-se uma tática dos informantes para estabelecer relações e ligações entre os artistas e os movimentos sociais “subversivos”. A reiteração das anotações poderia induzir a futuras conclusões mais comprometedoras para os citados, de acordo com a lógica da repressão, quando seus nomes pode riam ser arrolados como organicamente ligados a grupos clandestinos. Esta, talvez, fosse a acusação mais grave, conforme a escala de suspeição, podendo conduzir à prisão. No informe produzido pelo DOPS em 1975,34 aparece uma lista de artistas que seriam da “base” do Partido Comunista Brasileiro. Mantida a ordem de citação na fonte, seriam os seguintes: Vinícius de Moraes, Toquinho, MPB4, Chico Buarque, Edu da Gaita, Mário Lago, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Jorge Goulart, Nora Ney, Nelson Cavaquinho, Alfredo Dias Gomes, Janete Clair, Ivani Ribeiro, Dionísio Azevedo, Carlos Verezza, Jararaca, Rafael Carvalho e Caetano Veloso. O informe conclui: “Todos os artistas acima participaram de shows organizados pelo PCB com a finalidade de angariar fundos para a seção de finanças, sem nada cobrar pelo seu trabalho”. A participação em “shows organizados pelo PCB”, o que em si era uma inferência, na medida em que as produções dos espetáculos de MPB jamais tinham ligação direta com algum partido ou grupo (ainda mais os clandestinos) serve de argumento para listar a pretensa “base de artistas”. Nessa lista, são mesclados nomes de comunistas históricos e assumidos (Mário Lago, Jorge Goulart, Nora Ney, Dias Gomes, Carlos Verezza), artistas engajados com algumas afinidades, mas sem ligação orgânica com o Partido (Chico Buarque, MPB-4, Vinícius de Moraes), artistas populares admirados pelos comunistas (Nelson Cavaquinho) e até críticos da cultura política e da estética do PCB (Caetano Veloso). A total falta de critérios e veracidade colocava todos no mesmo grau de ligação partidária, como se tivessem uma relação orgânica e ativista dentro do Partido. A lista assume uma gravidade ainda maior quando sabemos que, em 1975, os serviços de informação e repressão armavam um cerco ao PCB, até então relativamente poupado da repressão mais violenta por não aderir à luta armada. Ao longo daquele ano, dezenas de militantes e simpatizantes do Partido seriam levados ao DOPS e ao DOI/CODI, e muitos deles morreriam sob torturas.

Voltando à pergunta que abre este artigo: para quem escreviam os espiões do regime militar? Tendo em vista a lógica persecutória auto-referenciada, a falta de veracidade e plausibilidade de muitos informes, o excesso de inferências sem argumentação sólida e de expressões vagas (“consta que...”), poderíamos dizer que os serviços de informação e repressão, acima de tudo,escreviam para si mesmos. Entretanto, numa época de autoritarismo, o que poderia ser uma zelosa idiossincrasia policialesca transformava-se em justificativa para ações repressivas sistemáticas e violentas, devidamente acobertadas pelo Estado e pelos poderes constituídos. Os artistas da MPB, alvos da produção da suspeita, surgem nesses documentos da repressão como arautos de uma conspiração revolucionária que, na maioria das vezes, nascia e morria nas reuniões boêmias, nas conversas a portas fechadas, nos espetáculos que mantinham a “boa palavra” em circulação. O que talvez não fosse pouco em tempos de autoritarismo e silêncio.

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