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sábado, 23 de março de 2019

A MPB SOB SUSPEITA: A CENSURA MUSICAL VISTA PELA ÓTICA DOS SERVIÇOS DE VIGILÂNCIA POLÍTICA (1968-1981) - PARTE 02

Por Marcos Napolitano*




RESUMO: A partir de fontes pesquisadas junto às coleções documentais da polícia política ligadas ao regime militar brasileiro, podemos vislumbrar não apenas o impacto do autoritarismo na cena musical brasileira, entre 1968 e 1981, mas também a lógica da repressão e do controle do Estado autoritário sobre os músicos. Nesse período, o controle da circulação das canções e da realização de shows com cantores esquerdistas (ou simpatizantes) marcou a atuação dos órgãos de censura e repressão, voltados principalmente (mas não apenas) contra o gênero MPB. Neste trabalho, analisaremos o imaginário produzido pelos agentes repressores e a “lógica da produção da suspeita” sobre a MPB. Palavras-chave: Brasil: Música e Política; Brasil: regime militar; Resistência democrática.



A VIGILÂNCIA DO REGIME MILITAR SOBRE O MEIO MUSICAL: UMA CRONOLOGIA 

O leque de atuação dos agentes dos órgãos de repressão junto ao meio musical vai de 1967 a 1982, conforme as coleções do DOPS disponíveis no Arquivo Público de São Paulo e do Rio de Janeiro. Podemos notar algumas dinâmicas diferenciadas dentro dessa cronologia mais ampla. Entre 1967 e 1968 já se configurara o campo da MPB, para o que concorreu o sucesso dos festivais da canção dos anos 60; concomitantemente, houve o recrudescimento da “questão estudantil”, o que levou a repressão a destacar o papel da música como “propaganda subversiva” e “guerra psicológica”. O principal suspeito de então, aglutinador dos opositores, era Geraldo Vandré, surgindo muitas referências a Nara Leão, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros. A partir de 1971, os shows do chamado “Circuito Universitário” 10 passam a ocupar a maior parte dos informes e relatórios. O inimigo número 1 do regime passou a ser Chico Buarque, secundado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gonzaguinha e Ivan Lins. Com o exílio de Vandré e sua desagregação enquanto persona pública do meio musical politizado, aliado às novas posturas de Chico Buarque, este passa a ser destacado como o centro aglutinador da oposição musical de esquerda, sendo freqüente nas fichas e prontuários aparecer a expressão “pessoa ligada a Chico Buarque de Hollanda”, como se essa relação, por si, aumentasse o grau de suspeição. Depois de 1978, a participação dos compositores e cantores na Campanha da Anistia11 e nos eventos do movimento operário12 se agregou ao mapa da suspeição que recaía sobre eles. Elis Regina, já citada nos primeiros relatórios e informações, começa a aparecer com mais freqüência por ter gravado o “hino da Anistia” (a canção O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc). Os documentos produzidos pela vigilância dos serviços de informação e repressão do regime nos permitem, indiretamente, mapear a circulação social da MPB, ao menos enquanto experiência sociocultural presencial e direta.13 Num primeiro momento, o foco de atenção recai sobre a platéia dos festivais da canção abrigados nas televisões. Em seguida, passa a abranger o circuito universitário da primeira metade dos anos 70, realizado nos campi e nos ginásios das médias cidades do interior. No início da década de 1970, sobretudo entre 1971 e 1974, a vigilância sobre a MPB estava ligada, intimamente, à vigilância sobre o movimento estudantil. É de supor que este determinava os termos da vigilância e da suspeita sobre aquela. Qualquer movimento de artistas ligados à MPB junto ao público jovem e estudantil deveria ser objeto de atenção redobrada e preventiva. Em 1973, o Centro de Informações do Exército em Brasília enviou uma solicitação formal ao DOPS14 do Rio de Janeiro para “acompanhar o comportamento de estudantes e artistas no show de Vinícius de Morais O POETA, A VOZ E O VIOLÃO, no Rio de Janeiro (Com Vinícius, Clara Nunes e Toquinho — além de participações especiais de Chico Buarque, Maria Bethânia e outros)”. O informante, entretanto, tranqüiliza os seus superiores quanto ao citado show afirmando que “a platéia é formada por pessoas maduras e que apenas nos fins de semana há predominância dos ‘elementos jovens’. Também não há contato entre espectadores e artistas, uma vez que no auditório não há acesso ao palco, não havendo possibilidade de diálogo”. Na segunda metade da década, os agentes da repressão destacam os espetáculos de massa ligados às campanhas políticas e às entidades de oposição, com destaque para o Comitê Brasileiro de Anistia, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e o Comitê Brasil Democrático. Finalmente, o movimento operário, na virada da década de 1970 para a de 80, passou a ser a grande preocupação da “comunidade de informações”, cuja ação se viu enfraquecida após o atentado frustrado do Riocentro, que seria perpetrado, justamente, contra um show de MPB no dia 1º de maio de 1981. A produção da suspeita se fazia pela vigilância a eventos, personalidades e espaços sociais considerados, em si e por si, “subversivos” e pela vigilância à atuação pública ou às ligações partidárias de personalidades do meio artísticomusical. Além de certos espaços sociais serem considerados suspeitos, qualquer atitude poderia ser qualificada como subversiva, fosse ela de ordem políticoideológica ou comportamental. As inferências dos agentes da repressão, porém, não eram aleatórias, na medida em que se pautavam pelo imaginário que aglutinava, muitas vezes sem a mínima plausibilidade, o medo à desordem política e social com a dissolução dos laços morais e familiares, pautados por um pensamento ultraconservador. Para a lógica da repressão as duas coisas andavam pari passu e, nesse sentido, compreendemos por que tanto Chico Buarque quanto Caetano Veloso, dois artistas com posições ideológicas e graus de engajamento político distintos, eram vistos como ameaças à ordem vigente.

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