Por Marcos Napolitano*
RESUMO: A partir de fontes pesquisadas junto às coleções
documentais da polícia política ligadas ao regime militar brasileiro, podemos
vislumbrar não apenas o impacto do autoritarismo na cena musical brasileira,
entre 1968 e 1981, mas também a lógica da repressão e do controle do Estado
autoritário sobre os músicos. Nesse período, o controle da circulação das
canções e da realização de shows com cantores esquerdistas (ou simpatizantes)
marcou a atuação dos órgãos de censura e repressão, voltados principalmente
(mas não apenas) contra o gênero MPB. Neste trabalho, analisaremos o imaginário
produzido pelos agentes repressores e a “lógica da produção da suspeita” sobre
a MPB. Palavras-chave: Brasil: Música e Política; Brasil: regime militar;
Resistência democrática.
A PRODUÇÃO DO SILÊNCIO E DA SUSPEITA
Para quem escreviam os espiões da ditadura militar? Esta é a questão que
reverbera quando são analisados os relatórios, dossiês, prontuários e outros
gêneros de escrita burocrática produzidos pelos serviços de vigilância e repressão, entre os quais destacava-se o DOPS.1 O campo social da vigilância e do controle, dentro da lógica da segurança nacional implantada pelo golpe
militar de 1964, era enorme: entidades da sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos eram virtualmente vigiados.
O regime militar brasileiro, como de resto outras ditaduras latino-americanas, concentrou-se em vigiar e controlar o espaço público, regido por uma
lógica de desmobilização política da sociedade como garantia da “paz social”.
Neste sentido, esses regimes poderiam ser caracterizados como autoritários,
pois sua atuação voltava-se para o controle e esvaziamento político do espaço
público, preservando certas formas de liberdade individual privada.
Se a violência policial, legal e ilegal, era sistemática e utilizada contra inimigos e críticos do regime em casos extremos e em situações nas quais os generais no poder sentiam-se particularmente ameaçados, a vigilância sobre a
sociedade civil era constante. A obsessão pela vigilância como forma de prevenir a atuação “subversiva”, sobretudo naquilo que os manuais da Doutrina
de Segurança Nacional chamavam de “propaganda subversiva” e “guerra psicológica contra as instituições democráticas e cristãs”, acabava por gerar uma
lógica da suspeita ou “ethos persecutório”.2 Os milhares de agentes envolvidos, funcionários públicos ou delatores cooptados, eram regidos por essa lógica e, ao incorporá-la, acabavam produzindo um fenômeno que é típico de
regimes autoritários e totalitários: mais importante do que a produção da informação em si, era a produção da suspeita.
Dentro dessa lógica de “produção da suspeita” 3 produzida pelos informantes, a “comunidade de informações” não apenas alertava o governo e os serviços de repressão direta para situações concretas de contestação ao regime, mas,
através da sua interminável escritura, elaborava perfis, potencializava situações,
criava conspirações que, independentemente de qualquer coerência ou plausibilidade, acabavam por justificar a própria existência desses serviços. Mobilizava um conjunto de estratégias discursivas e técnicas de registro (se quisermos
manter os termos foucaultianos) para criar uma representação do inimigo interno que poderia estar oculto no território da política, e, principalmente, da
cultura. Os espaços, instituições e personalidades ligados à cultura (artes, educação, jornalismo) eram particularmente vigiados pela “comunidade”. Num dos
manuais de vigilância anticomunista produzidos pelo regime militar lê-se, a título de instrução para o cidadão desprevenido:
Aprender a ler jornais, ouvir rádio e assistir TV com certa malícia. Aprender a
captar mensagens indiretas e intenções ocultas em tudo o que você vê e ouve.Não vá se divertir muito com o jogo daqueles que pensam que são mais inteligentes do que você e estão tentando fazer você de bobo com um simples jogo de
palavras.
Portanto, a esfera da cultura era vista com suspeição a priori, meio onde
os “comunistas” e “subversivos” estariam particularmente infiltrados, procurando confundir o cidadão “inocente útil”. Dentro dessa esfera, o campo musical destacava-se como alvo da vigilância, sobretudo os artistas e eventos ligados à MPB (Música Popular Brasileira), sigla que desde meados dos anos
60 congregava a música de matriz nacional-popular (ampliada a partir de
1968, na direção de outras matrizes culturais, como o pop), declaradamente
crítica ao regime militar. A capacidade de aglutinação de pessoas em torno
dos eventos musicais era uma das preocupações constantes dos agentes da repressão.
Através das fontes coletadas junto às coleções do DOPS, nos Arquivos
Públicos do Rio de Janeiro e em São Paulo é possível ter uma ideia das estratégias, do imaginário e das representações simbólicas que regiam o olhar e a
produção escrita dos agentes da repressão, dentro da estratégia da produção
da suspeita. Grosso modo, eles eram norteados por uma mistura de valores ultramoralistas, antidemocráticos e anticomunistas. Na diversidade de gêneros
de escrita da burocracia repressiva, percebe-se uma certa incoerência e descompromisso com a verdade, dada a necessidade de superdimensionar qualquer atitude que pudesse ser considerada suspeita.
As táticas da produção da suspeita sobre os artistas obedeciam a uma lógica perversa, apesar da aparente improvisação e falta de critérios. As principais peças acusatórias notadas nos documentos foram as seguintes, em grau
de suspeição decrescente: a) participação em eventos patrocinados pelo movimento estudantil; b) participação em eventos ligados a campanhas ou entidades da oposição civil; c) participação no “movimento da MPB” e nos “festivais
dos anos 60”; d) conteúdo das obras e declarações dos artistas à imprensa (cujas matérias eram anexadas aos informes, relatórios e prontuários, como provas de acusação); e) ligação direta com algum “subversivo” notoriamente qualificado como tal pela “comunidade de informações”. Neste sentido, Chico
Buarque de Hollanda era dos mais citados; f) citação do nome do artista em
algum depoimento ou interrogatório de presos políticos (bastava o depoente
dizer que gostava do cantor ou que suas músicas eram ouvidas nos “aparelhos”
clandestinos). Todos esses fragmentos, espalhados em centenas ou mesmo milhares de documentos, eram eventualmente reunidos na forma de peças acusatórias, os chamados “prontuários”, sínteses de informes (anotações dos informantes e coleta de “material subversivo” feita pelos agentes), fichas pessoais e
informações reservadas (textos já processados e sintetizados).
Por exemplo, a partir de um balanço sobre a vida cultural no Brasil, publicado pela revista Visão (ano 5, n.44) no final de 1974, o relator do DOPS
procurava incriminar não apenas os artistas citados (Oduvaldo Vianna Filho
e Ferreira Gullar), mas também os jornalistas e editores da revista. A ligação
com o setor estudantil, foco de recrutamento da luta armada de esquerda recentemente derrotada, era a principal peça acusatória que recaía sobre os suspeitos:
Deixando o setor cultural [sic], voltam-se para a música, onde ainda calcados
no atos do ex-CPC da ex-UNE, desenvolveram atividades junto às universidades, buscando em universitários os porta-vozes das palavras de ordem contestatória.
O agente-relator procura enfatizar as “relações perigosas” entre os jornalistas e os artistas, no caso, dois militantes assumidos do Partido Comunista
Brasileiro e, ao mesmo tempo, denunciar as táticas de “guerra psicológica”
contra o regime:
Trata-se, realmente, de um relato apologístico dos feitos de elementos reconhecidamente comunistas e nacionalistas, contrários ao regime instaurado a
31/03/1964. Em toda a narrativa, os editores usam expressões depreciativas, com
referência ao governo revolucionário fazendo crer aos leitores encontrar-se o
país sob o regime do terror.
O dado bruto do trabalho persecutório e da produção da suspeita era o
“informe” (notícias, dados, notas de esclarecimento). A partir do “informe”
produzia-se a “informação”, documento que já continha certo nível de processamento dos dados brutos coletados, apontando para possíveis ações repressivas mais diretas.6 Se os informes e as informações tinham a função de
esquadrinhar as atividades potencialmente ou declaradamente “subversivas”
dos artistas ou do seu público, havia um conjunto de documentos voltados
para a vigilância e o controle dos indivíduos considerados “suspeitos”. Basicamente, compunham-se de quatro tipos:7 o levantamento de dados biográficos; as fichas-conceito (levantamento da atuação pública e profissional); o
prontuário (histórico das atividades registradas do “suspeito”) e o juízo-sintético (espécie de parecer do agente sobre o indivíduo). Esse conjunto de documentos tinha a clara função de peças acusatórias, em eventuais processos
ou punições mais direcionadas, prontos para serem acionados a qualquer momento. Em muitos casos, os informes e informações não eram monopolizados por um único órgão de informação, sendo freqüente o intercâmbio de
documentos entre os diversos órgãos do sistema.
Todas as ações e declarações que se chocassem contra a moral dominante, a ordem política vigente, ou que escapassem aos padrões de comportamento da moral conservadora, eram vistos como suspeitos. No caso da música, o
conteúdo das letras cantadas, a performance e as eventuais declarações que o
artista proferisse durante os seus shows, também poderiam agravar o seu “perfil suspeito”, ganhando destaque nas anotações dos agentes da repressão política. Além de registrar palavras e atitudes, os textos revelam as inferências dos
agentes, no sentido de apontar a existência de uma conspiração perpétua, orquestrada por grupos políticos “subversivos” que se serviam do campo da cultura para iniciar a “guerra psicológica”. Uma simples observação, contida num
registro sobre as atividades do suspeito, poderia tornar-se mais destacada em
futuros relatórios produzidos pelos organismos, numa técnica de reiteração
crescente que agravava o grau de suspeição sobre os vigiados.8
Curiosamente, os agentes politizavam muito mais o campo da MPB, aumentando o grau de suas efetivas e orgânicas articulações político-partidárias. Por exemplo, lê-se num informe produzido em 1968 que o campo da
música popular
vem se constituindo num dos principais meios de cisão psicológica sobre o público, desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de orientação filo-comunista, atuando em franca atividade nos meios culturais. Dentre os principais agentes desse grupo se destacam: FRANCISCO BUARQUE DE HOLANDA,
EDU LOBO, NARA LEÃO, GERALDO VANDRÉ, GILBERTO GIL, CAETANO VELOSO, MARILIA MEDALHA, VINÍCIUS DE MORAES, SIDNEY MULLER, GUTEMBERG, “MILTONS” [sic] NASCIMENTO, etc.
Afora os Festivais das canções, onde “predominam” [sic] a música denominada jovem, transformando-se em clima do não conformismo, da crítica e agressividade às instituições, para dominar o público mostrando-lhe sua coragem, sua
arte sem condicionamentos, indiferentes aos gritos dos “reacionários”.
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