BETHÂNIA E RAY CHARLES
Pouco antes de eu completar quatro anos de idade, nasceu nossa irmã mais nova, para quem eu escolhera o nome de Maria Bethânia, por causa de uma bela valsa do compositor pernambucano Capiba, que começava com estas linhas majestosas e, à época, indecifráveis para mim: "Maria Bethânia, tu és para mim/ a senhora do engenho", e era grande sucesso na segunda metade da década de 40, na voz potente de Nelson Gonçalves. Naturalmente todos achavam graça no fato de eu saber cantar canções de gente grande, e mais ainda na minha determinação de nomear minha irmãzinha segundo uma dessas canções. Mas ninguém se sentia com coragem de realmente pôr esse nome "tão pesado" num bebê. Como havia várias outras sugestões (iam de Cristina a Gislaine), meu pai resolveu escrever todos os nomes em pedacinhos de papel que, depois de dobrados, ele jogou na copa de meu pequeno chapéu de explorador e me deu para tirar na sorte. Saiu o da minha escolha. Meu pai então pôs um ar resignado que era uma ordem para que todos também se resignassem e disse: "Pronto. Agora tem que ser Maria Bethânia". E saiu para registrar a recém- nascida com esse nome. Recentemente, ouvi de minhas irmãs mais velhas uma versão que diz que meu pai escrevera Maria Bethânia em todos os papéis. Não é de todo improvável. E, de fato, na expressão resignada de meu pai era visível - ainda hoje o é, na lembrança - um intrigante toque de humor. Mas, embora me encha de orgulho o pensamento de que meu pai possa ter trapaceado para me agradar, eu sempre preferi crer na autenticidade do sorteio: essa intervenção do acaso parece conferir mais realidade a tudo o que veio a se passar desde então, pois ela faz crescerem ao mesmo tempo as magias (que nos dão a impressão de se excluírem mutuamente) do presságio e da unicidade absolutamente gratuita de cada acontecimento.
Tenho muitos irmãos - somos oito: seis (três mulheres e três homens) nascidos de minha mãe e meu pai, e mais duas que eles tomaram para si como filhas - e acho que poderia escrever um livro grande e interessante sobre cada um deles, mas quero me concentrar aqui em Bethânia porque ela, além de, como eu, trabalhar com música popular (o tema central e a razão de ser deste escrito), foi influência determinante na formação do meu perfil profissional e mesmo do meu estilo de compor canções, cantá-las e pensar as questões relacionadas com isso.
Os três últimos anos que passamos em Santo Amaro, marcaram o estreitamento dessa união que nascera com a escolha do nome: Nicinha sendo já adulta e Irene ainda um bebê, Clara e Mabel casadas, Rodrigo e Roberto trabalhando em Salvador. Bethânia e eu nos sentimos cada vez mais cúmplices. Ela estava entrando na puberdade quando nos mudamos para Salvador. Mas mesmo antes disso, sua instabilidade emocional de pré-adolescente pedia minha solidariedade e alimentava minha mitologia rebelde: comecei a achar que um dos meus papéis era o de explicar Bethânia aos meus pais, embora essa pretensão tivesse algo de
absurdo, pois há um fato misterioso que deve ser considerado determinante da diferença de temperamento de Bethânia para o do resto da família: ela é a preferida de minha mãe. Não que ela tivesse desencadeado problemas escondidos e gerado a discórdia entre os membros da família, mas ela como que dramatizava os conteúdos apaixonados e pouco sensatos com os quais não estávamos acostumados a lidar abertamente, tematizando o ciúme, a raiva, a exigência de exclusividade, o capricho. E eu logo me senti o intérprete e comentador dessas dramatizações. E nos dois sentidos: como exegeta dos seus significados (justificando seus efeitos) e como aprendiz de sua moral (tomando-as por paradigmas de realidades mais gerais). Assim, do mesmo modo que me cabia decifrar-lhe as atitudes, cabia a ela ensinar-me o drama do mundo em lições práticas. Diante, por exemplo, de uma enigmática resolução sua de trancar-se no quarto e não falar com ninguém, eu me inclinava a tentar interpretar sua atitude pelo que eu lia nas revistas a respeito da onda de inadaptação dos jovens aos mais velhos (na verdade, não o que é geralmente tomado como uma constante psicológica da adolescência, mas o modo como esse tema se manifestou na época, tornando-se o fenômeno social que, no Brasil, foi apelidado segundo o título que se deu em português ao filme Rebel without a cause: "juventude transviada"), e, ao mesmo tempo, decifrar o sentido desse fenômeno através da observação do comportamento de Bethânia.
Evidentemente, nada disso era consciente no grau em hoje o é hoje quando o analiso de memória: como eu a amava muito e sabia que ela nos amava muito, cada explosão irracional que partia dela me surpreendia, assustava e preocupava antes que eu pudesse começar a pensar. E eu desejava fazer a mediação curiosa que descrevi acima sobretudo porque sentia a necessidade de zelar pela paz em casa, os elementos do conflito só num segundo momento se tornando matéria de relativamente fria observação intelectual. Eles se tornavam tal, sem embargo, e eu comecei aos poucos a utilizar seus ensinamentos até mesmo na formação dos meus critérios de julgamento estético.
Bethânia ia fazer catorze anos e eu, dezoito quando ns mudamos para Salvador. Eu para cursar o clássico, uma vez que o ensino em Santo Amaro só ia até o ginásio: ela para cursar o ginásio, pois meus pais tinham sempre posto as filhas mulheres para estudar em Salvador logo que saiam do primário, enquanto os homens todos fizemos o primeiro ciclo do secundário em Santo Amaro mesmo. Pode parecer curioso - e de fato alguns amigos, à época, estranhavam -, mas eu não tinha nenhum desejo de deixar Santo Amaro e ir viver em alguma cidade maior.
Lembro de Roberto, meu irmão imediatamente mais velho do que eu, vociferando contra a vida estreita que se levava ali, impaciente por ir embora para Salvador, que, pouco mais tarde, ele estaria impaciente para deixar por São Paulo. Emanuel Araújo, meu colega do ginásio que se tornaria renomado artista plástico, expressava sentimentos semelhantes aos de Roberto com ainda maior veemência - e fez o mesmo itinerário. Hercília, a menina que eu amava com o coração maior que o mundo, e que parecia uma moderna rainha do cinema europeu (ainda hoje, o chique de sua beleza e a delicada discrição de sua elegância impressionariam quem lhe visse uma fotografia de então), tinha desenvolvido uma retórica de desprezo arrogante pela nossa cidadezinha natal que chegava a ser ofensiva. Eu, no entanto, atava-me à convicção de que, se queria ver a vida mudada, era preciso vê- la mudada em Santo Amaro - na verdade, a partir de Santo Amaro. De todo modo, eu amava a cidade onde todos nascêramos e aprendêramos tudo o que sabíamos até ali - inclusive a sugestão de ousadia transformadora embutida no canto de João Gilberto. Mas o meu apego a Santo Amaro não era nada comparado à reação de Bethânia à nossa saída de lá: no extremo oposto dos nossos amigos que queriam fugir, ela simplesmente não aceitava a ideia da mudança. Eu não encarava com desagrado a possibilidade de ir viver em Salvador: a cidade de que eu mais gosto no mundo já era querida e conhecida desde a infância, e, se a questão era alargar os horizontes da vida, Santo Amaro podia parecer-me o lugar ideal para um santamarense tentar fazê-lo, mas mudar para Salvador não deveria significar um impedimento: Salvador era bem perto de Santo Amaro; tão perto que meu pai temia a anunciada construção da estrada de rodagem que, segundo ele, poderia fazer de Santo Amaro "um mero subúrbio da Bahia".
Chamávamos Salvador de Bahia. Uma cantiga de roda tradicional de Santo Amaro tomou-se o tema oficial desse período de nossas vidas e, na época, compus uma canção utilizando -a como refrão; seus versos singelos ficam tocantes na melodia em tom menor sobre um ritmo de marcha lenta:
Adeus, meu Santo Amaro
Que desta terra vou me ausentar
Eu vou para a Bahia
Eu vou viver; eu vou morar
Eu vou viver; eu vou morar.
Era muito raro que alguém, em qualquer cidade do recôncavo baiano, se referisse à Cidade da Bahia como Salvador. Embora hoje isso seja a regra, eu mesmo dizer Salvador é como se fosse um aspecto a mais da natural (para mim, pois tenho morado com freqüência e demora no Rio) adesão ao sotaque carioca. Bethânia se recusava até mesmo a ver a "Bahia". Íamos para o Colégio Severino Vieira a pé ou de ônibus todos os dias e ela não atendia a nenhum dos meus estímulos de fazê-la interessar-se por uma árvore, um transeunte, um sobrado.
Calada e t riste, ela tolerava mal, em casa, as mínimas advertências de Nicinha (que tinha vindo para cuidar de nós dois, já que nossos pais tinham ficado em Santo Amaro) e só se dirigia a mim para repetir o quanto detestava a "Bahia" e o quanto ansiava pelas férias para poder voltar a Santo Amaro. No entanto, da janela do apartamento que eu, ela e Nicinha viemos dividir com Rodrigo e Roberto, via-se o Dique do Tororó com suas águas de um verde mutante e misterioso que me encantava, e Bethânia, à guisa de protesto, começou a passar as tardes sentada no parapeito da janela olhando fixamente essas águas, e terminou por apaixonar-se por elas: foram seu primeiro vínculo de amor com Salvador.
Talvez tenha sido por causa das águas do Dique do Tororó que minha campanha incansável para fazer Bethânia querer gostar de estar em Salvador atingiu seu objetivo num espaço de tempo consideravelmente curto se levarmos em conta a força da teimosia dessa minha irmã. O fato é que, um dia, ela aceitou meu convite para irmos juntos assistir a A história de Tobias e de Sara, de Paul Claudel, pelo grupo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Salvador vivia um período de intensa atividade cultural, graças à decisão do então
reitor da Universidade Federal (pública, há também a Universidade Católica, queé privada), dr. Edgar Santos, de somar às atividades acadêmicas das faculdades convencionais, escolas de música, dança e teatro, e de convidar os mais arrojados experimentalistas em todas essas áreas, oferecendo aos jovens da cidade um amplo repertorio erudito. Ao mesmo tempo, a arquiteta italiana radicada em São Paulo Lina Bo Bardi tinha sido convidada pelo governo estadual para organizar o Museu de Arte Moderna da Bahia (que a gente gostava de chamar pela sigla MAMB, que me soava como "mambo"), onde, além do acervo crescente de obras brasileiras e estrangeiras, víamos magníficas exposições didáticas que, se fosse o caso, contavam com alguns quadros e esculturas de grandes artistas (Renoir, Degas, Van Gogh) a que a senhora Bardi tinha acesso por ser mulher do diretor do Museu de Arte de São Paulo. O Museu de Arte Moderna da Bahia funcionava no foyer, todo em mármore e vidros, do imenso Teatro Castro Alves, que tinha sido quase inteiramente destruído por um incêndio apenas um dia depois de inaugurado, poucos anos antes da criação do museu. O foy er ficara intacto, mas a sala de espetáculos tinha se transformado numa enorme caverna negra de que Lina Bardi utilizou a parte correspondente do palco para criar um pequeno teatro de meia-arena onde, em sua colaboração com o diretor da Escola de Teatro, Eros Martim Gonçalves, montou-se a Opera de três tostões, de Brecht (a tradução brasileira consagrada leva no titulo "três vinténs", mas, na gíria baiana, diz-se de uma mulher que perdeu a virgindade que ela "perdeu os três vinténs", e assim esse sentido de "hímen" foi evitado optando-se por "tostões" como recentemente, numa nova montagem baiana optou-se por "minréis"), e, depois, Calígula, de Camus. Houve colaboração também com o critico de cinema Walter da Silveira na transformação da rampa que liga o foyer à sala de espetáculos num belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara. As sessões ali consistiam sobretudo em grandes filmes mudos (Greed, La petite marchande d'allumettes, Metropolis, A nous la liberte, Outubro, etc.), ou velhos filmes falados que já não se veriam nos cinemas normais (Cidadão Kane, M, Monsieur Verdoux etc,), ou ainda filmes que tinham sido vistos não fazia muito tempo (Nazarin ou On the waterfont) mas que reapareciam ali comentados pelo próprio Walrer da Silveira ou por um seu convidado. Lembro de uma noite em que o ainda muito jovem mas já com fama de gênio Glauber Rocha comentou (desfavoravelmente) Umberto D., de De Sica: sua fala que precedia a projeção, como era hábito no clube, foi brilhantemente irreverente e opôs a secura de Rossellini, seu favorito entre os diretores neo-realistas, ao sentimentalismo piegas de De Sica, mas Umberto D. me pareceu deslumbrante assim mesmo. Instrumentistas e maestros da escola de música (a cujos concertos sinfônicos ou camerísticos assistíamos no salão nobre da reitoria semanalmente) também colaboraram na montagem da Ópera de Brecht e em alguns outros espetáculos teatrais - e um ator da Escola de Teatro foi o narrador na apresentação de Pedro e o lobo. O diretor da Escola de Música, o maestro Koellreutter (que tinha ensinado a Tom Jobim), um homem brilhante e identificado com as vanguardas, imprimiu um caráter muito vivo à programação de concertos: tínhamos Beethoven, Mozart, Gershwin, Brahms – e tivemos David Tudor executando peças de John Cage para piano preparado e aparelhos de rádio (lembro da gargalhada que tomou conta da sala e do próprio diretor da escola quando se ouviu. logo que Tudor ligou o rádio, a voz familiar do locutor: "Rádio Bahia, Cidade do Salvador").
Foi para esse mundo extremamente excitante para mim que a inteligência e a sensibilidade de Maria Bethânia se abriram naquela noite de A história de Tobias e de Sara, no pequeno mas excelentemente equipado Teatro Santo Antônio, o palco oficial da escola. Depois de ver Helena Ignez e Érico de Freitas sob uma luz que os transformava em visões celestiais, dizerem o texto que nos soava cheio de misteriosa poesia (até hoje Bethânia e eu imitamos com perfeição a voz de Helena dizendo: Eu sou a romã!), Bethânia nunca mais deixou de sair comigo para concertos, peças, filmes e exposições e para todas as grandes festas populares que tomam anualmente as ruas de Salvador nos dias dos santos ou dos orixás de grande devoção. Ela se enamorou sobretudo do teatro, e em breve ambos cultuávamos os atores Helena Ignez, Geraldo del Rey e Antônio Pitanga como se fossem grandes estrelas e, de fato, quem os vir nos filmes do Cinema Novo que eles vieram a protagonizar mais tarde, poderá confirmar que todos eles tinham beleza, carisma e talento suficientes para qualquer tipo de estrelato - e Bethânia começou a desejar ser atriz.
Suas saídas noturnas não foram aceitas por meu pai sem restrições. Na verdade, ele chegou a decidir-se por proibi-las, e só não o fez porque encontrou uma solução que era mais ou menos conciliatória e resultou muito produtiva: ele me disse que, já que eu advogava com tanta ênfase a frequência de Bethânia em eventos culturais como necessária para sua formação de menina especial, ele admitia que ela saísse à noite, desde que fosse sempre comigo e que eu fechasse com ele um compromisso de responsabilidade por ela. Meus pais tinham vindo de Santo Amaro para ficar conosco no segundo ano de nossa estada em Salvador, quando o hábito de eu e Bethânia sairmos juntos estava se estabelecendo - o que me leva a crer que o interesse de Bethânia pela vida em Salvador só começou perto do fim do nosso primeiro ano ali: quase toda a primeira metade de 1960 ela passara fechada para o que quer que acontecesse na cidade além dos câmbios do verde do dique. O compromisso que meu pai exigira de mim era algo que ele levava mais a sério do que eu poderia imaginar: uma noite, quando nossas saídas já eram um velho hábito, voltei para casa deixando -a num lugar chamado Bazarte (uma mistura de bar, galeria de arte e clube de jazz) aos cuidados de Roberto, nosso irmão, que, como ela, não queria sair dali no momento em que eu, muito cansado, resolvi ir dormir. Foi uma das pouquíssimas vezes que meu pai levantou a voz para mim, a única depois que cresci. De nada adiantava eu repetir que Roberto tinha ficado com ela. Meu pai gritava com uma veemência que dava medo: "Eu não fiz nenhuma combinação com Roberto a respeito de Maria Bethânia!". Chorei muito e prometi seriamente que aquilo não se repetiria - e nunca mais cheguei em casa à noite sem ela. Foi Álvaro Guimarães, Alvinho, quem nos lançou, a mim e a Bethânia, como profissionais da música. Alvinho me tinha sido apresentado por Sônia Castro e Lena Coelho - duas pintoras que dividiam um ateliê que eu frequentava apaixonadamente - como sendo um talentoso diretor de teatro que colaborara com o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Nas nossas primeiras conversas, ele me agradou em cheio e me interessou ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC. Também me
falava muito de Glauber, com quem tinha intimidade. Ao planejar montar uma comédia brasileira do século passado, ele me encomendou a trilha musical. Recusei-me a fazê-la sob a alegação (sensata) de que não tinha competência. Ele recusou minha recusa. E me disse que só eu é que poderia fazer o que ele queria. Ele nunca tinha me ouvido cantar ou tocar qualquer instrumento. Lembrei-lhe isso. Ele respondeu que se decidira ao me ouvir falar sobre a relação da música de João Gilberto com a de Dorival Caymmi. Alvinho é assim. Terminei compondo toda a música da peça e tocando piano nos espetáculos. Menos de um ano depois, ele resolveu montar O Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, e, para abrir o espetáculo, teve uma ideia absolutamente maravilhosa: ao se apagarem todas as luzes, antes que se visse qualquer ator em cena, ouvia-se, no escuro, a voz única de Bethânia, então uma total desconhecida, cantando, sem acompanhamento e sem amplificação, "Na cadência do samba", de Ataulfo Alves. Infelizmente o resto do espetáculo não estava à altura desse início (mas quantos, neste mundo, o estariam?) e pouca gente chegou a presenciar essa estréia inusitada. O culto à voz de Bethânia, no entanto, cresceu entre os artistas e boêmios de Salvador.
Ao freqeentar exposições no MAMB, peças na Escola de Teatro, o clube de cinema e a Casa da França para ver filmes de arte, Bethânia e eu começamos a notar a presença quase certa de um rapaz moreno, magro, de óculos, a quem já nos referíamos com divertida intimidade e que estávamos curiosos para conhecer. Imaginávamos que ele gostava das coisas que nós gostávamos e achávamos sua cara muito boa. Ele estava sempre sozinho e evidentemente não fazia ideia de que o observávamos. Um dia Alvinho Guimarães me disse que queria fazer um filme para o qual, naturalmente, eu faria a trilha sonora. Queria também que eu participasse com ele da feitura do roteiro. Seria um filme sobre meninos de rua de Salvador (foi feito, chamou-se Moleques de rua e eu fiz a trilha em que usei a voz de Bethânia). Alvinho marcou um encontro à tarde na Escola de Teatro (uma emoção estar ali de dia, fora da hora de espetáculo) e lá me apresentou ao amigo com quem queria que ambos trabalhássemos: era o rapaz que Bethânia e eu víamos em todos os eventos. Eu fiquei muito feliz. Ele já era amigo de Alvinho fazia um bom tempo. E os dois se entendiam muito bem. Duda - era assim que Alvinho o chamava - sorria o tempo todo, tinha os olhos larguissimamente amendoados por trás dos óculos e dizia coisas muito sérias a respeito de qualquer assunto. Fiquei impressionado com a elevação do grau de exigência da conversa de Alvinho em sua presença. Os dois tinham muito mais cultura do que eu e seus diálogos, cheios de responsabilidade intelectual e comprometimento existencial, logo se tornaram verdadeiros ensinamentos para mim. Eu falava com humilde irresponsabilidade.
Passamos a andar juntos os três. Eu saia muito também com meu irmão Rodrigo, que estimulava meu interesse por cinema. Havia um grupo de aspirantes a cineastas ou críticos de cinema que estavam frequentando um curso ministrado não sei por quem sobre teoria e critica cinematográfica. Rodrigo nos inscreveu, a mim e a ele próprio, nesse curso, e ali encontramos alguns jovens críticos (Geraldo Portela, Carlos Alberto Silva, Alberto Silva) com quem eu gostava muito de conversar. Mas as conversas com Duda e Alvinho (sobretudo Duda) faziam todas as outras parecerem tolas. Falávamos de literatura, cinema música popular; falávamos de Salvador, da vida na província, da vida das pessoas que conhecíamos; falávamos de política.
Alvinho tinha rompantes heróicos: acho que foi ele quem me decidiu a colaborar com a campanha de alfabetização pelo método Paulo Freire. (Mais tarde, depois do golpe, ele me levou a alguns encontros secretos para a formação de um "grupo dos onze", uma idéia de Leonel Brizola para organizar uma resistência). Embora política não fosse o nosso forte, nessa época - 63 -, com os estudantes (organizados na UNE) apoiando o presidente João Goulart, ou pressionando-o para ir mais para a esquerda; com Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união com as camadas populares; com os CPCS da UNE produzindo peças e canções panfletárias mas muito vitais; éramos levados a falar freqüentemente sobre política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face profundamente injusta - e de alçar-se acima do imperialismo americano. Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi vivida com intensidade - e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe.
Duda - hoje o conhecido poeta e critico Duda Machado - me impressionou com suas opiniões meditadas e exigentes. Eu tomava a ele e a Alvinho como mestres. Eu vira L' aventura, de Antonioni, e o admirara. Agora estavam passando La notte e eu reencontrei muito do que era belo naquele primeiro filme, mas já alguns maneirismos esteticistas me agastavam e eu detestava os diálogos. Além disso, achei que Jeanne Moreau não estava á vontade. Contudo, elogiei o filme numa conversa em que frisei petulantemente que, contra toda a moda crítica da época, eu continuava preferindo Fellini a Antonioni. Duda ouviu tudo e, em vez de tomar partido, veio com algo totalmente diferente: "Você tem que ver é A bout
de souffle, Acossado, de Jean-Luc Godard. Esse cara tem uma outra coisa. O resto fica desinteressante". Eu era louco por Hiroshima, mon amour. Duda disse que mesmo Hiroshima, mon amour era muito menos interessante do que About de souffle. E eu fui ver o primeiro filme de Godard no Cine Capri, no largo Dois de Julho. Realmente fiquei maravilhado com a agilidade do ritmo e com a atmosfera poética. Os planos eram mais plásticos do que os de Antonioni, sem parecerem rigidamente controlados. Duda lia os Cahiers du Cinéma e já estava por dentro do que Godard dizia - e do que se dizia que Godard fizera depois desse primeiro filme. Mas ele só falava a partir de uma constatação sua muito verdadeira. Um dia fui elogiar Walter da Silveira, o grande formador de críticos e cineastas baianos, pelo tanto que tinha feito pela cultura cinematográfica em nossa terra, e Duda retrucou dizendo que a ele Walter não ensinava nada porque era um crítico preguiçosamente complacente com os "filmes de arte": "Basta ser autor", dizia Duda, "pra ele elogiar". Impressionava-me não só que Duda tivesse razão em todas essas ocasiões, mas sobretudo que ele estivesse sempre pensando as coisas num nível acima daquele no qual meu pensamento podia transitar. Mas eu lhe mostrei Chet Baker e acho que também Billie Holiday. Mostrei-lhe também algumas gravações de Thelonious Monk. Sentia- me à vontade para falar de bossa nova e de música popular brasileira em geral: era um assunto que eu conhecia melhor do que ele.
Mas mesmo ai, se sua opinião divergisse da minha, ou se apresentasse a menor nuance em relação à minha, eu parava para rever minha posição. Bethânia gostou de saber que eu tinha encontrado aquele de quem já éramos amigos sem que ele o soubesse. E Duda deslumbrou-se com Bethânia. Eu saia muito com Duda e Alvinho; às vezes ficávamos no Jardim de Nazaré conversando até altas horas da madrugada. Nesses encontros Bethânia não estava. Mas saiamos também os quatro. E Duda passou a vir vez por outra à minha casa. Em breve Bethânia e ele conversavam também a sós. De todo modo, Bethânia não saia à noite sem mim. Lembro do espanto e da raiva com que um colega de sala no Severino Vieira reagia a minhas referências a programas feitos em conjunto com minha irmã mais nova: era inacreditável e mais ainda inaceitável para ele que um rapaz de dezenove anos saísse freqüentemente com a irmã de quinze; ele próprio tinha uma irmã menor e, sendo um moço másculo parecido com um garoto comum da alta classe média de qualquer cidade do Ocidente na segunda metade do século XX, nada via na irmã além de um estorvo, um amontoado de incompetências femininas e infantis a atrapalhar suas pequenas (esportivas, intelectuais, amorosas) aventuras cotidianas. Eu e Bethânia, ao contrário, nos divertíamos muito na companhia um do outro e, em nossos périplos pela vida cultural de Salvador nos primeiros anos da década de 60, descobrimos que éramos uma dupla algo insólita. Ela lia Carson McCullers e Clarice Lispector, escrevia uns textos bonitos de prosa poética e fazia pequenas esculturas em cobre e madeira. Apaixonou-se pela cor roxa e passou a fazer para si mesma roupas de cetim roxo. Jamais vou esquecer uma cena que, contada hoje, pode parecer inspirada na Família Adams, de que na época não tínhamos a menor notícia. Na semana do Natal, ela e eu estávamos no ponto de ônibus do Jardim da Piedade, cercados de pessoas que voltavam das compras e entupiam as ruas. O Natal nunca fora propriamente nossa festa favorita, mas em Santo Amaro a gente gostava dos presépios (que ainda se viam em Salvador em grande número pelas janelas das casas) e, sobretudo, do hábito de cobrir o chão das casas com uma fina camada de areia branca da praia e encher os cômodos de ramos de pitangueira, a planta nativa brasileira que dá aquela fruta vermelha pequena e cheia de gomos, e cujas folhas exalam um cheiro absolutamente delicioso pelo frescor (esse hábito também ainda permanecia em Salvador e mesmo os ônibus traziam, na semana do Natal, ramos de pitanga atados à frente e ao fundo).
Talvez a areia branquíssima trazida das dunas estivesse fazendo as vezes da neve e a pitanga as vezes do azevinho, mas o resultado dava a impressão de um costume arraigadamente tropical. O Natal das árvores de Natal cobertas de algodão imitando neve, do Papai Noel em sua roupa vermelha debruada de arminho, o Natal de "Jingle bell" que tomava conta de tudo a partir das grandes lojas de departamentos, esse Natal nos parecia odiosamente vulgar e começamos a nos queixar disso em voz alta, para silencioso escândalo das pessoas que esperavam o ônibus junto conosco, carregadas de presentes. Nossas reclamações começaram num tom brando e quase analítico, mas, num crescendo, foram atingindo um gosto de humor negro deliberado e terminaram com um de nós dizendo (numa imitação de Maria Muniz, uma atriz de quem nos tornáramos amigos e que, para dizer, por exemplo, que não gostava de pepino, gritava com ênfase: "Se eu pudesse, eu MATAVA o pepino!") : "Se eu pudesse, eu MATAVA o Natal".
Bethânia não parecia a adolescente que era: com uma expressão de mulher vivida, uma testa enorme e um nariz muito adunco, metida em vestidos retos de cetim roxo, ela freqüentemente era tomada por mais velha do que eu. Sua beleza exótica era então quase indecifrável. Pode-se imaginar a estranheza que causava a pacatos cidadãos baianos um casal composto de uma figura dessas e um rapaz magérrimo dizendo alto na fila do ônibus: "Se eu pudesse, eu MATAVA o Natal". Uma vez, num bar próximo ao Teatro Castro Alves, ao ser apresentado por mim a ela, o crítico de cinema e futuro cineasta Orlando Senna perguntou coisa rara, pois ninguém naquela época nos achava parecidos - se ela era minha irmã; antes que eu respondesse, ela disse seriíssima: "Não. Somos amantes". E manteve a farsa dessa seriedade por longos minutos.
No entanto, éramos doces e alegres e, como acontece com nossos outros irmãos, sempre percebemos que em todas as rodas em que entramos tendemos a despertar muito carinho nas outras pessoas. Fizemos amigos entre atores, diretores, músicos, dançarinos e pintores, e logo já havia quem pedisse para ouvir Bethânia cantar - numa sala de apartamento ou à mesa de um bar ou barraca de festa de rua algum - samba-canção de Noel Rosa ou de Dolores Duran, só por causa do timbre único de sua voz de contralto. A princípio não havia sequer uma remota sugestão de que ela viesse a se profissionalizar como cantora e essas exibições vocais eram feitas sem acompanhamento. Mas minha mãe, a meu pedido, me dera um violão para eu tentar matar as saudades do piano que tínhamos na casa de Santo Amaro e que fora impossível trazer para Salvador.
Aos poucos, fui conseguindo aprender a armar alguns acordes que serviam para me acompanhar em versões harmonicamente muito empobrecidas de canções simples - logo Bethânia também estava cantando acompanhada por mim, e ela própria tocando um pouco de violão.
Dizer que Bethânia participou do culto a João Gilberto e à bossa nova junto conosco não é mentir - mas não dá uma idéia muito clara de como as coisas se passaram. Por certo ela estava comigo e com Chico Motta e com Dasinho em frente ao bar de Bubu para ouvir "Chega de saudade", em 59, em Santo Amaro. Ela também estava comigo e com Gal e com Gil, alguns anos depois, em Salvador, quando nos sentávamos para cantar baixinho e ouvir as harmonias que Gil tirava de ouvido das gravações de João ou de Carlos Lyra. Mas ela não se submetia às limitações nem se empenhava na disciplina que a adesão a um estilo novo exigia. De certa forma, o fato de ela ser tão mais moça do que eu contribuía para isso: a bossa nova não era uma novidade pela qual ela teria que lutar, era algo que estava começando a existir ao mesmo tempo que ela. Mas, acima de tudo, havia uma razão de temperamento. Gal Costa, que era apenas um ano mais velha do que ela, encontrara na bossa nova um estilo com que se identificar: Bethânia, em meio a tantos bossanovistas, sentia falta da dramaticidade dos sambas antigos, e, enquanto nós a levávamos a ouvir Ella e
Miles, ela se interessava mais por Judy Garland e Edith Piaf. O pessoal do grupo Teatro dos Novos, uma dissidência da Escola de Teatro liderada pelo diretor (ex-professor da escola) João Augusto Azevedo, e composta por brilhantes ex-alunos como Othon Bastos, que fez o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol, emprestava -nos discos, tanto de jazz como de canções francesas e da Broadway. E, se eu preferia Chet Baker, Bethânia preferia Judy Garland. Embora nenhum de nós dois hostilizasse ou mesmo desprezasse o gosto do outro. Com o passar do tempo, descobrimos que, de certa forma, Billie Holiday satisfazia plenamente os anseios estéticos das duas tendências - e Amália Rodrigues como que pairava
acima deles. Para mim não chegou a ser uma fonte de angústia ler em não sei que revista americana uma declaração de Ray Charles algo depreciativa da bossa nova, na mesma semana em que ouvi de Carlos Coquejo, um juiz do trabalho que era apaixonado por música e conhecia João Gilberto pessoalmente, a afirmação de que Ray Charles não despertava nenhum interesse em João. Ray dizia que a bossa nova era apenas o "velho ritmo latino" com uma sincopa mais moderna, e Coquejo contou que João considerava Ray Charles "um folclórico".
Tenho muitos irmãos - somos oito: seis (três mulheres e três homens) nascidos de minha mãe e meu pai, e mais duas que eles tomaram para si como filhas - e acho que poderia escrever um livro grande e interessante sobre cada um deles, mas quero me concentrar aqui em Bethânia porque ela, além de, como eu, trabalhar com música popular (o tema central e a razão de ser deste escrito), foi influência determinante na formação do meu perfil profissional e mesmo do meu estilo de compor canções, cantá-las e pensar as questões relacionadas com isso.
Os três últimos anos que passamos em Santo Amaro, marcaram o estreitamento dessa união que nascera com a escolha do nome: Nicinha sendo já adulta e Irene ainda um bebê, Clara e Mabel casadas, Rodrigo e Roberto trabalhando em Salvador. Bethânia e eu nos sentimos cada vez mais cúmplices. Ela estava entrando na puberdade quando nos mudamos para Salvador. Mas mesmo antes disso, sua instabilidade emocional de pré-adolescente pedia minha solidariedade e alimentava minha mitologia rebelde: comecei a achar que um dos meus papéis era o de explicar Bethânia aos meus pais, embora essa pretensão tivesse algo de
absurdo, pois há um fato misterioso que deve ser considerado determinante da diferença de temperamento de Bethânia para o do resto da família: ela é a preferida de minha mãe. Não que ela tivesse desencadeado problemas escondidos e gerado a discórdia entre os membros da família, mas ela como que dramatizava os conteúdos apaixonados e pouco sensatos com os quais não estávamos acostumados a lidar abertamente, tematizando o ciúme, a raiva, a exigência de exclusividade, o capricho. E eu logo me senti o intérprete e comentador dessas dramatizações. E nos dois sentidos: como exegeta dos seus significados (justificando seus efeitos) e como aprendiz de sua moral (tomando-as por paradigmas de realidades mais gerais). Assim, do mesmo modo que me cabia decifrar-lhe as atitudes, cabia a ela ensinar-me o drama do mundo em lições práticas. Diante, por exemplo, de uma enigmática resolução sua de trancar-se no quarto e não falar com ninguém, eu me inclinava a tentar interpretar sua atitude pelo que eu lia nas revistas a respeito da onda de inadaptação dos jovens aos mais velhos (na verdade, não o que é geralmente tomado como uma constante psicológica da adolescência, mas o modo como esse tema se manifestou na época, tornando-se o fenômeno social que, no Brasil, foi apelidado segundo o título que se deu em português ao filme Rebel without a cause: "juventude transviada"), e, ao mesmo tempo, decifrar o sentido desse fenômeno através da observação do comportamento de Bethânia.
Evidentemente, nada disso era consciente no grau em hoje o é hoje quando o analiso de memória: como eu a amava muito e sabia que ela nos amava muito, cada explosão irracional que partia dela me surpreendia, assustava e preocupava antes que eu pudesse começar a pensar. E eu desejava fazer a mediação curiosa que descrevi acima sobretudo porque sentia a necessidade de zelar pela paz em casa, os elementos do conflito só num segundo momento se tornando matéria de relativamente fria observação intelectual. Eles se tornavam tal, sem embargo, e eu comecei aos poucos a utilizar seus ensinamentos até mesmo na formação dos meus critérios de julgamento estético.
Bethânia ia fazer catorze anos e eu, dezoito quando ns mudamos para Salvador. Eu para cursar o clássico, uma vez que o ensino em Santo Amaro só ia até o ginásio: ela para cursar o ginásio, pois meus pais tinham sempre posto as filhas mulheres para estudar em Salvador logo que saiam do primário, enquanto os homens todos fizemos o primeiro ciclo do secundário em Santo Amaro mesmo. Pode parecer curioso - e de fato alguns amigos, à época, estranhavam -, mas eu não tinha nenhum desejo de deixar Santo Amaro e ir viver em alguma cidade maior.
Lembro de Roberto, meu irmão imediatamente mais velho do que eu, vociferando contra a vida estreita que se levava ali, impaciente por ir embora para Salvador, que, pouco mais tarde, ele estaria impaciente para deixar por São Paulo. Emanuel Araújo, meu colega do ginásio que se tornaria renomado artista plástico, expressava sentimentos semelhantes aos de Roberto com ainda maior veemência - e fez o mesmo itinerário. Hercília, a menina que eu amava com o coração maior que o mundo, e que parecia uma moderna rainha do cinema europeu (ainda hoje, o chique de sua beleza e a delicada discrição de sua elegância impressionariam quem lhe visse uma fotografia de então), tinha desenvolvido uma retórica de desprezo arrogante pela nossa cidadezinha natal que chegava a ser ofensiva. Eu, no entanto, atava-me à convicção de que, se queria ver a vida mudada, era preciso vê- la mudada em Santo Amaro - na verdade, a partir de Santo Amaro. De todo modo, eu amava a cidade onde todos nascêramos e aprendêramos tudo o que sabíamos até ali - inclusive a sugestão de ousadia transformadora embutida no canto de João Gilberto. Mas o meu apego a Santo Amaro não era nada comparado à reação de Bethânia à nossa saída de lá: no extremo oposto dos nossos amigos que queriam fugir, ela simplesmente não aceitava a ideia da mudança. Eu não encarava com desagrado a possibilidade de ir viver em Salvador: a cidade de que eu mais gosto no mundo já era querida e conhecida desde a infância, e, se a questão era alargar os horizontes da vida, Santo Amaro podia parecer-me o lugar ideal para um santamarense tentar fazê-lo, mas mudar para Salvador não deveria significar um impedimento: Salvador era bem perto de Santo Amaro; tão perto que meu pai temia a anunciada construção da estrada de rodagem que, segundo ele, poderia fazer de Santo Amaro "um mero subúrbio da Bahia".
Chamávamos Salvador de Bahia. Uma cantiga de roda tradicional de Santo Amaro tomou-se o tema oficial desse período de nossas vidas e, na época, compus uma canção utilizando -a como refrão; seus versos singelos ficam tocantes na melodia em tom menor sobre um ritmo de marcha lenta:
Adeus, meu Santo Amaro
Que desta terra vou me ausentar
Eu vou para a Bahia
Eu vou viver; eu vou morar
Eu vou viver; eu vou morar.
Era muito raro que alguém, em qualquer cidade do recôncavo baiano, se referisse à Cidade da Bahia como Salvador. Embora hoje isso seja a regra, eu mesmo dizer Salvador é como se fosse um aspecto a mais da natural (para mim, pois tenho morado com freqüência e demora no Rio) adesão ao sotaque carioca. Bethânia se recusava até mesmo a ver a "Bahia". Íamos para o Colégio Severino Vieira a pé ou de ônibus todos os dias e ela não atendia a nenhum dos meus estímulos de fazê-la interessar-se por uma árvore, um transeunte, um sobrado.
Calada e t riste, ela tolerava mal, em casa, as mínimas advertências de Nicinha (que tinha vindo para cuidar de nós dois, já que nossos pais tinham ficado em Santo Amaro) e só se dirigia a mim para repetir o quanto detestava a "Bahia" e o quanto ansiava pelas férias para poder voltar a Santo Amaro. No entanto, da janela do apartamento que eu, ela e Nicinha viemos dividir com Rodrigo e Roberto, via-se o Dique do Tororó com suas águas de um verde mutante e misterioso que me encantava, e Bethânia, à guisa de protesto, começou a passar as tardes sentada no parapeito da janela olhando fixamente essas águas, e terminou por apaixonar-se por elas: foram seu primeiro vínculo de amor com Salvador.
Talvez tenha sido por causa das águas do Dique do Tororó que minha campanha incansável para fazer Bethânia querer gostar de estar em Salvador atingiu seu objetivo num espaço de tempo consideravelmente curto se levarmos em conta a força da teimosia dessa minha irmã. O fato é que, um dia, ela aceitou meu convite para irmos juntos assistir a A história de Tobias e de Sara, de Paul Claudel, pelo grupo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Salvador vivia um período de intensa atividade cultural, graças à decisão do então
reitor da Universidade Federal (pública, há também a Universidade Católica, queé privada), dr. Edgar Santos, de somar às atividades acadêmicas das faculdades convencionais, escolas de música, dança e teatro, e de convidar os mais arrojados experimentalistas em todas essas áreas, oferecendo aos jovens da cidade um amplo repertorio erudito. Ao mesmo tempo, a arquiteta italiana radicada em São Paulo Lina Bo Bardi tinha sido convidada pelo governo estadual para organizar o Museu de Arte Moderna da Bahia (que a gente gostava de chamar pela sigla MAMB, que me soava como "mambo"), onde, além do acervo crescente de obras brasileiras e estrangeiras, víamos magníficas exposições didáticas que, se fosse o caso, contavam com alguns quadros e esculturas de grandes artistas (Renoir, Degas, Van Gogh) a que a senhora Bardi tinha acesso por ser mulher do diretor do Museu de Arte de São Paulo. O Museu de Arte Moderna da Bahia funcionava no foyer, todo em mármore e vidros, do imenso Teatro Castro Alves, que tinha sido quase inteiramente destruído por um incêndio apenas um dia depois de inaugurado, poucos anos antes da criação do museu. O foy er ficara intacto, mas a sala de espetáculos tinha se transformado numa enorme caverna negra de que Lina Bardi utilizou a parte correspondente do palco para criar um pequeno teatro de meia-arena onde, em sua colaboração com o diretor da Escola de Teatro, Eros Martim Gonçalves, montou-se a Opera de três tostões, de Brecht (a tradução brasileira consagrada leva no titulo "três vinténs", mas, na gíria baiana, diz-se de uma mulher que perdeu a virgindade que ela "perdeu os três vinténs", e assim esse sentido de "hímen" foi evitado optando-se por "tostões" como recentemente, numa nova montagem baiana optou-se por "minréis"), e, depois, Calígula, de Camus. Houve colaboração também com o critico de cinema Walter da Silveira na transformação da rampa que liga o foyer à sala de espetáculos num belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara. As sessões ali consistiam sobretudo em grandes filmes mudos (Greed, La petite marchande d'allumettes, Metropolis, A nous la liberte, Outubro, etc.), ou velhos filmes falados que já não se veriam nos cinemas normais (Cidadão Kane, M, Monsieur Verdoux etc,), ou ainda filmes que tinham sido vistos não fazia muito tempo (Nazarin ou On the waterfont) mas que reapareciam ali comentados pelo próprio Walrer da Silveira ou por um seu convidado. Lembro de uma noite em que o ainda muito jovem mas já com fama de gênio Glauber Rocha comentou (desfavoravelmente) Umberto D., de De Sica: sua fala que precedia a projeção, como era hábito no clube, foi brilhantemente irreverente e opôs a secura de Rossellini, seu favorito entre os diretores neo-realistas, ao sentimentalismo piegas de De Sica, mas Umberto D. me pareceu deslumbrante assim mesmo. Instrumentistas e maestros da escola de música (a cujos concertos sinfônicos ou camerísticos assistíamos no salão nobre da reitoria semanalmente) também colaboraram na montagem da Ópera de Brecht e em alguns outros espetáculos teatrais - e um ator da Escola de Teatro foi o narrador na apresentação de Pedro e o lobo. O diretor da Escola de Música, o maestro Koellreutter (que tinha ensinado a Tom Jobim), um homem brilhante e identificado com as vanguardas, imprimiu um caráter muito vivo à programação de concertos: tínhamos Beethoven, Mozart, Gershwin, Brahms – e tivemos David Tudor executando peças de John Cage para piano preparado e aparelhos de rádio (lembro da gargalhada que tomou conta da sala e do próprio diretor da escola quando se ouviu. logo que Tudor ligou o rádio, a voz familiar do locutor: "Rádio Bahia, Cidade do Salvador").
Foi para esse mundo extremamente excitante para mim que a inteligência e a sensibilidade de Maria Bethânia se abriram naquela noite de A história de Tobias e de Sara, no pequeno mas excelentemente equipado Teatro Santo Antônio, o palco oficial da escola. Depois de ver Helena Ignez e Érico de Freitas sob uma luz que os transformava em visões celestiais, dizerem o texto que nos soava cheio de misteriosa poesia (até hoje Bethânia e eu imitamos com perfeição a voz de Helena dizendo: Eu sou a romã!), Bethânia nunca mais deixou de sair comigo para concertos, peças, filmes e exposições e para todas as grandes festas populares que tomam anualmente as ruas de Salvador nos dias dos santos ou dos orixás de grande devoção. Ela se enamorou sobretudo do teatro, e em breve ambos cultuávamos os atores Helena Ignez, Geraldo del Rey e Antônio Pitanga como se fossem grandes estrelas e, de fato, quem os vir nos filmes do Cinema Novo que eles vieram a protagonizar mais tarde, poderá confirmar que todos eles tinham beleza, carisma e talento suficientes para qualquer tipo de estrelato - e Bethânia começou a desejar ser atriz.
Suas saídas noturnas não foram aceitas por meu pai sem restrições. Na verdade, ele chegou a decidir-se por proibi-las, e só não o fez porque encontrou uma solução que era mais ou menos conciliatória e resultou muito produtiva: ele me disse que, já que eu advogava com tanta ênfase a frequência de Bethânia em eventos culturais como necessária para sua formação de menina especial, ele admitia que ela saísse à noite, desde que fosse sempre comigo e que eu fechasse com ele um compromisso de responsabilidade por ela. Meus pais tinham vindo de Santo Amaro para ficar conosco no segundo ano de nossa estada em Salvador, quando o hábito de eu e Bethânia sairmos juntos estava se estabelecendo - o que me leva a crer que o interesse de Bethânia pela vida em Salvador só começou perto do fim do nosso primeiro ano ali: quase toda a primeira metade de 1960 ela passara fechada para o que quer que acontecesse na cidade além dos câmbios do verde do dique. O compromisso que meu pai exigira de mim era algo que ele levava mais a sério do que eu poderia imaginar: uma noite, quando nossas saídas já eram um velho hábito, voltei para casa deixando -a num lugar chamado Bazarte (uma mistura de bar, galeria de arte e clube de jazz) aos cuidados de Roberto, nosso irmão, que, como ela, não queria sair dali no momento em que eu, muito cansado, resolvi ir dormir. Foi uma das pouquíssimas vezes que meu pai levantou a voz para mim, a única depois que cresci. De nada adiantava eu repetir que Roberto tinha ficado com ela. Meu pai gritava com uma veemência que dava medo: "Eu não fiz nenhuma combinação com Roberto a respeito de Maria Bethânia!". Chorei muito e prometi seriamente que aquilo não se repetiria - e nunca mais cheguei em casa à noite sem ela. Foi Álvaro Guimarães, Alvinho, quem nos lançou, a mim e a Bethânia, como profissionais da música. Alvinho me tinha sido apresentado por Sônia Castro e Lena Coelho - duas pintoras que dividiam um ateliê que eu frequentava apaixonadamente - como sendo um talentoso diretor de teatro que colaborara com o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Nas nossas primeiras conversas, ele me agradou em cheio e me interessou ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC. Também me
falava muito de Glauber, com quem tinha intimidade. Ao planejar montar uma comédia brasileira do século passado, ele me encomendou a trilha musical. Recusei-me a fazê-la sob a alegação (sensata) de que não tinha competência. Ele recusou minha recusa. E me disse que só eu é que poderia fazer o que ele queria. Ele nunca tinha me ouvido cantar ou tocar qualquer instrumento. Lembrei-lhe isso. Ele respondeu que se decidira ao me ouvir falar sobre a relação da música de João Gilberto com a de Dorival Caymmi. Alvinho é assim. Terminei compondo toda a música da peça e tocando piano nos espetáculos. Menos de um ano depois, ele resolveu montar O Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, e, para abrir o espetáculo, teve uma ideia absolutamente maravilhosa: ao se apagarem todas as luzes, antes que se visse qualquer ator em cena, ouvia-se, no escuro, a voz única de Bethânia, então uma total desconhecida, cantando, sem acompanhamento e sem amplificação, "Na cadência do samba", de Ataulfo Alves. Infelizmente o resto do espetáculo não estava à altura desse início (mas quantos, neste mundo, o estariam?) e pouca gente chegou a presenciar essa estréia inusitada. O culto à voz de Bethânia, no entanto, cresceu entre os artistas e boêmios de Salvador.
Ao freqeentar exposições no MAMB, peças na Escola de Teatro, o clube de cinema e a Casa da França para ver filmes de arte, Bethânia e eu começamos a notar a presença quase certa de um rapaz moreno, magro, de óculos, a quem já nos referíamos com divertida intimidade e que estávamos curiosos para conhecer. Imaginávamos que ele gostava das coisas que nós gostávamos e achávamos sua cara muito boa. Ele estava sempre sozinho e evidentemente não fazia ideia de que o observávamos. Um dia Alvinho Guimarães me disse que queria fazer um filme para o qual, naturalmente, eu faria a trilha sonora. Queria também que eu participasse com ele da feitura do roteiro. Seria um filme sobre meninos de rua de Salvador (foi feito, chamou-se Moleques de rua e eu fiz a trilha em que usei a voz de Bethânia). Alvinho marcou um encontro à tarde na Escola de Teatro (uma emoção estar ali de dia, fora da hora de espetáculo) e lá me apresentou ao amigo com quem queria que ambos trabalhássemos: era o rapaz que Bethânia e eu víamos em todos os eventos. Eu fiquei muito feliz. Ele já era amigo de Alvinho fazia um bom tempo. E os dois se entendiam muito bem. Duda - era assim que Alvinho o chamava - sorria o tempo todo, tinha os olhos larguissimamente amendoados por trás dos óculos e dizia coisas muito sérias a respeito de qualquer assunto. Fiquei impressionado com a elevação do grau de exigência da conversa de Alvinho em sua presença. Os dois tinham muito mais cultura do que eu e seus diálogos, cheios de responsabilidade intelectual e comprometimento existencial, logo se tornaram verdadeiros ensinamentos para mim. Eu falava com humilde irresponsabilidade.
Passamos a andar juntos os três. Eu saia muito também com meu irmão Rodrigo, que estimulava meu interesse por cinema. Havia um grupo de aspirantes a cineastas ou críticos de cinema que estavam frequentando um curso ministrado não sei por quem sobre teoria e critica cinematográfica. Rodrigo nos inscreveu, a mim e a ele próprio, nesse curso, e ali encontramos alguns jovens críticos (Geraldo Portela, Carlos Alberto Silva, Alberto Silva) com quem eu gostava muito de conversar. Mas as conversas com Duda e Alvinho (sobretudo Duda) faziam todas as outras parecerem tolas. Falávamos de literatura, cinema música popular; falávamos de Salvador, da vida na província, da vida das pessoas que conhecíamos; falávamos de política.
Alvinho tinha rompantes heróicos: acho que foi ele quem me decidiu a colaborar com a campanha de alfabetização pelo método Paulo Freire. (Mais tarde, depois do golpe, ele me levou a alguns encontros secretos para a formação de um "grupo dos onze", uma idéia de Leonel Brizola para organizar uma resistência). Embora política não fosse o nosso forte, nessa época - 63 -, com os estudantes (organizados na UNE) apoiando o presidente João Goulart, ou pressionando-o para ir mais para a esquerda; com Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união com as camadas populares; com os CPCS da UNE produzindo peças e canções panfletárias mas muito vitais; éramos levados a falar freqüentemente sobre política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face profundamente injusta - e de alçar-se acima do imperialismo americano. Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi vivida com intensidade - e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe.
Duda - hoje o conhecido poeta e critico Duda Machado - me impressionou com suas opiniões meditadas e exigentes. Eu tomava a ele e a Alvinho como mestres. Eu vira L' aventura, de Antonioni, e o admirara. Agora estavam passando La notte e eu reencontrei muito do que era belo naquele primeiro filme, mas já alguns maneirismos esteticistas me agastavam e eu detestava os diálogos. Além disso, achei que Jeanne Moreau não estava á vontade. Contudo, elogiei o filme numa conversa em que frisei petulantemente que, contra toda a moda crítica da época, eu continuava preferindo Fellini a Antonioni. Duda ouviu tudo e, em vez de tomar partido, veio com algo totalmente diferente: "Você tem que ver é A bout
de souffle, Acossado, de Jean-Luc Godard. Esse cara tem uma outra coisa. O resto fica desinteressante". Eu era louco por Hiroshima, mon amour. Duda disse que mesmo Hiroshima, mon amour era muito menos interessante do que About de souffle. E eu fui ver o primeiro filme de Godard no Cine Capri, no largo Dois de Julho. Realmente fiquei maravilhado com a agilidade do ritmo e com a atmosfera poética. Os planos eram mais plásticos do que os de Antonioni, sem parecerem rigidamente controlados. Duda lia os Cahiers du Cinéma e já estava por dentro do que Godard dizia - e do que se dizia que Godard fizera depois desse primeiro filme. Mas ele só falava a partir de uma constatação sua muito verdadeira. Um dia fui elogiar Walter da Silveira, o grande formador de críticos e cineastas baianos, pelo tanto que tinha feito pela cultura cinematográfica em nossa terra, e Duda retrucou dizendo que a ele Walter não ensinava nada porque era um crítico preguiçosamente complacente com os "filmes de arte": "Basta ser autor", dizia Duda, "pra ele elogiar". Impressionava-me não só que Duda tivesse razão em todas essas ocasiões, mas sobretudo que ele estivesse sempre pensando as coisas num nível acima daquele no qual meu pensamento podia transitar. Mas eu lhe mostrei Chet Baker e acho que também Billie Holiday. Mostrei-lhe também algumas gravações de Thelonious Monk. Sentia- me à vontade para falar de bossa nova e de música popular brasileira em geral: era um assunto que eu conhecia melhor do que ele.
Mas mesmo ai, se sua opinião divergisse da minha, ou se apresentasse a menor nuance em relação à minha, eu parava para rever minha posição. Bethânia gostou de saber que eu tinha encontrado aquele de quem já éramos amigos sem que ele o soubesse. E Duda deslumbrou-se com Bethânia. Eu saia muito com Duda e Alvinho; às vezes ficávamos no Jardim de Nazaré conversando até altas horas da madrugada. Nesses encontros Bethânia não estava. Mas saiamos também os quatro. E Duda passou a vir vez por outra à minha casa. Em breve Bethânia e ele conversavam também a sós. De todo modo, Bethânia não saia à noite sem mim. Lembro do espanto e da raiva com que um colega de sala no Severino Vieira reagia a minhas referências a programas feitos em conjunto com minha irmã mais nova: era inacreditável e mais ainda inaceitável para ele que um rapaz de dezenove anos saísse freqüentemente com a irmã de quinze; ele próprio tinha uma irmã menor e, sendo um moço másculo parecido com um garoto comum da alta classe média de qualquer cidade do Ocidente na segunda metade do século XX, nada via na irmã além de um estorvo, um amontoado de incompetências femininas e infantis a atrapalhar suas pequenas (esportivas, intelectuais, amorosas) aventuras cotidianas. Eu e Bethânia, ao contrário, nos divertíamos muito na companhia um do outro e, em nossos périplos pela vida cultural de Salvador nos primeiros anos da década de 60, descobrimos que éramos uma dupla algo insólita. Ela lia Carson McCullers e Clarice Lispector, escrevia uns textos bonitos de prosa poética e fazia pequenas esculturas em cobre e madeira. Apaixonou-se pela cor roxa e passou a fazer para si mesma roupas de cetim roxo. Jamais vou esquecer uma cena que, contada hoje, pode parecer inspirada na Família Adams, de que na época não tínhamos a menor notícia. Na semana do Natal, ela e eu estávamos no ponto de ônibus do Jardim da Piedade, cercados de pessoas que voltavam das compras e entupiam as ruas. O Natal nunca fora propriamente nossa festa favorita, mas em Santo Amaro a gente gostava dos presépios (que ainda se viam em Salvador em grande número pelas janelas das casas) e, sobretudo, do hábito de cobrir o chão das casas com uma fina camada de areia branca da praia e encher os cômodos de ramos de pitangueira, a planta nativa brasileira que dá aquela fruta vermelha pequena e cheia de gomos, e cujas folhas exalam um cheiro absolutamente delicioso pelo frescor (esse hábito também ainda permanecia em Salvador e mesmo os ônibus traziam, na semana do Natal, ramos de pitanga atados à frente e ao fundo).
Talvez a areia branquíssima trazida das dunas estivesse fazendo as vezes da neve e a pitanga as vezes do azevinho, mas o resultado dava a impressão de um costume arraigadamente tropical. O Natal das árvores de Natal cobertas de algodão imitando neve, do Papai Noel em sua roupa vermelha debruada de arminho, o Natal de "Jingle bell" que tomava conta de tudo a partir das grandes lojas de departamentos, esse Natal nos parecia odiosamente vulgar e começamos a nos queixar disso em voz alta, para silencioso escândalo das pessoas que esperavam o ônibus junto conosco, carregadas de presentes. Nossas reclamações começaram num tom brando e quase analítico, mas, num crescendo, foram atingindo um gosto de humor negro deliberado e terminaram com um de nós dizendo (numa imitação de Maria Muniz, uma atriz de quem nos tornáramos amigos e que, para dizer, por exemplo, que não gostava de pepino, gritava com ênfase: "Se eu pudesse, eu MATAVA o pepino!") : "Se eu pudesse, eu MATAVA o Natal".
Bethânia não parecia a adolescente que era: com uma expressão de mulher vivida, uma testa enorme e um nariz muito adunco, metida em vestidos retos de cetim roxo, ela freqüentemente era tomada por mais velha do que eu. Sua beleza exótica era então quase indecifrável. Pode-se imaginar a estranheza que causava a pacatos cidadãos baianos um casal composto de uma figura dessas e um rapaz magérrimo dizendo alto na fila do ônibus: "Se eu pudesse, eu MATAVA o Natal". Uma vez, num bar próximo ao Teatro Castro Alves, ao ser apresentado por mim a ela, o crítico de cinema e futuro cineasta Orlando Senna perguntou coisa rara, pois ninguém naquela época nos achava parecidos - se ela era minha irmã; antes que eu respondesse, ela disse seriíssima: "Não. Somos amantes". E manteve a farsa dessa seriedade por longos minutos.
No entanto, éramos doces e alegres e, como acontece com nossos outros irmãos, sempre percebemos que em todas as rodas em que entramos tendemos a despertar muito carinho nas outras pessoas. Fizemos amigos entre atores, diretores, músicos, dançarinos e pintores, e logo já havia quem pedisse para ouvir Bethânia cantar - numa sala de apartamento ou à mesa de um bar ou barraca de festa de rua algum - samba-canção de Noel Rosa ou de Dolores Duran, só por causa do timbre único de sua voz de contralto. A princípio não havia sequer uma remota sugestão de que ela viesse a se profissionalizar como cantora e essas exibições vocais eram feitas sem acompanhamento. Mas minha mãe, a meu pedido, me dera um violão para eu tentar matar as saudades do piano que tínhamos na casa de Santo Amaro e que fora impossível trazer para Salvador.
Aos poucos, fui conseguindo aprender a armar alguns acordes que serviam para me acompanhar em versões harmonicamente muito empobrecidas de canções simples - logo Bethânia também estava cantando acompanhada por mim, e ela própria tocando um pouco de violão.
Dizer que Bethânia participou do culto a João Gilberto e à bossa nova junto conosco não é mentir - mas não dá uma idéia muito clara de como as coisas se passaram. Por certo ela estava comigo e com Chico Motta e com Dasinho em frente ao bar de Bubu para ouvir "Chega de saudade", em 59, em Santo Amaro. Ela também estava comigo e com Gal e com Gil, alguns anos depois, em Salvador, quando nos sentávamos para cantar baixinho e ouvir as harmonias que Gil tirava de ouvido das gravações de João ou de Carlos Lyra. Mas ela não se submetia às limitações nem se empenhava na disciplina que a adesão a um estilo novo exigia. De certa forma, o fato de ela ser tão mais moça do que eu contribuía para isso: a bossa nova não era uma novidade pela qual ela teria que lutar, era algo que estava começando a existir ao mesmo tempo que ela. Mas, acima de tudo, havia uma razão de temperamento. Gal Costa, que era apenas um ano mais velha do que ela, encontrara na bossa nova um estilo com que se identificar: Bethânia, em meio a tantos bossanovistas, sentia falta da dramaticidade dos sambas antigos, e, enquanto nós a levávamos a ouvir Ella e
Miles, ela se interessava mais por Judy Garland e Edith Piaf. O pessoal do grupo Teatro dos Novos, uma dissidência da Escola de Teatro liderada pelo diretor (ex-professor da escola) João Augusto Azevedo, e composta por brilhantes ex-alunos como Othon Bastos, que fez o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol, emprestava -nos discos, tanto de jazz como de canções francesas e da Broadway. E, se eu preferia Chet Baker, Bethânia preferia Judy Garland. Embora nenhum de nós dois hostilizasse ou mesmo desprezasse o gosto do outro. Com o passar do tempo, descobrimos que, de certa forma, Billie Holiday satisfazia plenamente os anseios estéticos das duas tendências - e Amália Rodrigues como que pairava
acima deles. Para mim não chegou a ser uma fonte de angústia ler em não sei que revista americana uma declaração de Ray Charles algo depreciativa da bossa nova, na mesma semana em que ouvi de Carlos Coquejo, um juiz do trabalho que era apaixonado por música e conhecia João Gilberto pessoalmente, a afirmação de que Ray Charles não despertava nenhum interesse em João. Ray dizia que a bossa nova era apenas o "velho ritmo latino" com uma sincopa mais moderna, e Coquejo contou que João considerava Ray Charles "um folclórico".
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