PARTE 01
ELVIS E MARILYN
Costumo dizer que, se dependesse de mim, Elvis Presley e Marilyn Monroe nunca se teriam tornado estrelas. Fui eu, no entanto, o primeiro a mencionar - não sem que isso representasse um certo escândalo - a Coca-Cola numa letra de música no Brasil. Na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock'n'roll e tentavam imitar suas aparências. Rapazes de jeans e botas, moças de rabo-de-cavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos. Mas não apenas eles eram minoritários: eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres. Não quero dizer que se tratava de uma turma à qual eu não pertencia e com que eu mantinha uma relação de hostilidade mútua.
Não. Aquilo era mais como que uma tendência que se manifestava de forma muitas vezes acanhada em poucos dos meus conhecidos - e decididamente não entre os mais inteligentes ou os de personalidade mais interessante. Mas isso não me levava a nada além de partilhar com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico. Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes regionais ou nacionais não lidávamos com tais
noções, embora uma forma branda e ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar uni estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar. Riamos deles, como se percebêssemos que atuavam como canastrões.
Mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia. Quando eu tinha uns seis, sete anos, lá pelo fim dos anos 40, uma das nossas muitas primas mais velhas que moravam em casa conosco (essa já devia ter então mais de trinta anos) me disse, entre divertida e irritada, com aquela
sinceridade desleixada com que desabafamos perante as crianças: "Meu filhinho, eu queria morar em Paris e ser existencialista". Fiquei curioso: "Minha Daia (é assim que ainda hoje - a poucos anos do ano 2000 chamamos essa adorável criatura), o que é existencialista?". E ela, com uma raiva deliberada crescendo na voz: "Os existencialistas são filósofos que só fazem o que querem, fazem tudo o que têm vontade de fazer. Eu queria viver como eles, longe dessa vida tacanha de Santo Amaro". Numa visão retrospectiva, imagino que Minha Daia, em sua definição do existencialismo que sem dúvida era um fenômeno pop nos anos 40, poderia estar apenas repetindo os versos de uma marchinha carnavalesca de grande sucesso, chamada "Chiquita Bacana", na qual se completa o retrato da personagem que lhe dá titulo com a informação de que ela é "existencialista com toda a razão só faz o que manda o seu coração"; mas evidentemente seu conhecimento do assunto ia além dessa informação contida na marchinha, uma vez que ela se referira a "filósofos existencialistas" quando quis me contar (sem imaginar que eu nunca iria esquecer) sobre aqueles que lhe acenavam com uma vida mais livre do que aquela que lhe era possível levar em Santo Amaro. Pois bem, os nossos colegas americanizados da década seguinte não pareciam representar uma ameaça a – nem mesmo uma revolta íntima contra - essa "vida tacanha". Pelo contrario, suas atitudes, que sugeriam uma tentativa canhestra de ganhar status dentro de uma escala de valores já dados e mal interpretados, eram, a meus olhos, uma nítida marca de conformismo. Eu pessoalmente sabia que o que de fato importava para mim não os sensibilizava.
Santo Amaro era uma cidadezinha bastante homogênea do ponto de vista urbanístico e arquitetônico - mesmo) hoje, algumas edificações ainda de pé datam do século XVIII, e muitas, do século XIX - e, já na metade do século XX, não abrigava heterogeneidades sociais gritantes: a baixa classe média que povoava os sobradões e as casinhas coladas umas às outras em frente a passeios arborizados com fícus-benjamins e ruas calçadas com paralelepípedos de granito (nossa família pertencia a essa classe média: meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos), estava sempre muito perto da pobreza semi-rural que circundava a sede do município (e fornecia mão-de-obra para trabalhos domésticos), mas não tinha nenhum contato direto com a riqueza: o fausto que muitas famílias locais conheceram desde o período colonial até os fins do século XIX deixou a herança arquitetônica para funcionários públicos, padres, médicos, dentistas, juizes, advogados e pequenos comerciantes, mas a tradicional fonte de renda da região - o açúcar, com seus engenhos e usinas rodeados por vastos canaviais - passou pouco a pouco a integrar patrimônios muito maiores, centrados em outras áreas do pais, de modo que nada do que se ganhava com o que a terra do município produzia era gasto em Santo Amaro, e nenhum dos
novos grandes proprietários vivia ali ou tinha nascido ali.
Eu levava uma vida pacífica, em meio a uma família grande e amorosa, nessa cidade pequena e bonita no seu urbanismo aconchegante. No entanto, não apenas a pobreza vista sempre tão de perto me levava a querer pôr o mundo em questão: os valores e hábitos consagrados estavam longe de me parecer aceitáveis, Era impensável, por exemplo, ter sexo com as meninas que respeitávamos e de quem gostávamos; as moças pretas de famílias que beiravam a classe média tinham que ter seus cabelos espichados para que pudessem se sentir apresentáveis; as mulheres e moças "direitas" não deviam fumar; um cara com ar de cafajeste que comia os garotos (mas repetia-se sempre no ginásio que "quem começa comendo acaba dando" e esse mesmo cara já era tido como numa espécie de "fase de transição") encontrava um ambiente de cumplicidade masculina no botequim onde se insultavam os veados (ou quem quer que ao grupo de freqUentadores parecesse levemente efeminado); os homens casados eram encorajados a manter ao menos uma amante, enquanto as mulheres (amantes ou esposas) tinham que ostentar uma fidelidade inabalável etc. etc.
Claro que os princípios que estavam por trás desses hábitos não eram uma exclusividade de Santo Amaro, nem mesmo das pequenas cidades do interior: nos anos 50, com as variações de região, classe e cultura, acontecia mais ou menos o mesmo em toda parte. E, se hoje aqueles costumes parecem revolucionados a ponto de muita gente alardear a ameaça do caos, os pressupostos que os sustentavam, e que já estavam aí havia muito tempo, permanecem, ainda que muitas vezes sejam apenas matéria de discussão.
Que eu estivesse em desacordo com essas realidades era para mim muito claro.
Mas todas elas vividas em conjunto, e somadas a tantas outras de que eu não tinha consciência, produziam um mal-estar difuso que eu tentava esconjurar com pequenas excentricidades e grandes reflexões. O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por impor-se a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo. Um mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo. O fato de meu pai trabalhar em casa (a agência postal-telegráfica tinha então que ser na casa de seu chefe) contribuía muito para criar essa sensação. As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado de membros da família
também eram fatores agravantes. Muitos amigos nos freqüentavam. Todos trazíamos nossos colegas para brincar. Além das visitas que vinham ver nossos pais, companheiros de estudo e trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para conversas. Muitos eram visitantes diários indefectíveis. Assim, o casarão era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo. Nós próprios saíamos pouco, nunca nenhum de nós tendo tido o habito de ir brincar na "casa dos outros". Mas a vida alegre e sensual do recôncavo estava ali
representada pela comida (cuja famosa alta qualidade fechava ainda mais nosso mundo), pela doçura no trato, pelas rodas de samba que se refaziam a cada festa. O que não devia estar em desarmonia com os costumes sombrios e solenes que nos davam a um tempo segurança e medo. Tomávamos a benção aos nossos pais todas as manhãs ao acordar e à noite antes de ir para a cama. Ouvíamos em resposta: "Deus lhe abençoe" ou "Deus lhe faça feliz" ou "Deus lhe dê sorte".
Tratávamos nossos pais por "o senhor" e "a senhora", nunca podendo usar o "você" íntimo no Brasil, embora essa fosse uma forma abreviada de "vosmecê", um tratamento reverencial obrigatório até que, representando uma grande distensão, "o senhor" e "a senhora" vieram substituí-lo. Não podíamos dormir sem rezar. Ouvi mais de uma vez que poderíamos morrer durante o sono e ir para o inferno se fôssemos surpreendidos sem as orações. Víamos famílias inteiras vestidas de negro em luto por algum parente morto e, embora nossos mais velhos repetissem que mais importavam os verdadeiros sentimentos do que as convenções, quando morreu Mãe Mina, irmã de meu pai, nossa tia muito querida (cuja agonia eu próprio adivinhei pela respiração ofegante que ouvi de minha cama no meio da noite, no quarto onde então eu e Roberto dormíamos com ela), ficamos meses proibidos de tocar piano, ir ao cinema, dançar, usar roupas coloridas, cantar, assoviar ou rir dentro de casa (ou mesmo na rua, "na frente dos outros"). Havia o "quarto do santo", onde ficava um nicho com o Crucificado e imagens da Virgem, de santo Antônio, são José, a pomba do Espírito Santo e o
Menino Jesus. Minha Ju – a irmã de meu pai que dedicou sua vida a agudá-lo a nos criar, trabalhando com ele no telégrafo e dando-lhe a íntegra do seu salário - comandava as orações: treze noites para santo Antônio, um mês para são José, o Mês de Maria etc. Tudo isso rezado a seco, sem música, ao contrário do que se fazia em outras casas, embora na igreja Minha Ju fosse (boa) cantora do coro.
Eu me aconchegava nesses rituais, mas, a pouco e pouco, fui me rebelando contra as formalidades. Eu tinha intuições filosóficas complicadas. Senti com muita força a evidência solipsista da impossibilidade de provar para mim mesmo a existência do mundo mesmo a do meu corpo. Com angústia e orgulho, eu, aos sete ou oito anos (sei que não pode ter sido depois disso pois o pensamento ocorreu no sobrado dos Correios, antes de nos mudarmos para a casa da rua do Amparo, o que se deu quando completei oito anos), me prometia crescer para fazer um escândalo entre os homens a respeito da certeza de que, se não posso sair de mim - e não posso -, não há mundo nem coisas nem nada, só meu pensamento.
E me encolhia diante do contra-senso de querer gritar para os outros homens que sabia que eles não existiam. Eu então chegava mesmo a pensar que seria um modo de forçar algum acontecimento no mundo, denunciar a sua inexistência.
Pouco depois de nossa mudança para a rua do Amparo, eu, que fizera a primeira comunhão e tinha de assistir á missa dominical, decidi comunicar aos meus familiares que não acreditava em Deus nem nos padres. Não o fiz em tom oficial nem mesmo com tanta clareza por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha Ju. Era curioso que não fosse assim necessariamente também para meus pais. De fato, eles eram os únicos que não iam á missa aos domingos, aproveitando a saída de todos para ficarem a sós no único dia da semana em que meu pai não trabalhava. Nessa casa da rua do Amparo, onde minha mãe vive até hoje, aconteceram as coisas mais importantes de minha formação. Ali eu descobri o sexo genital, vi La strada, me apaixonei pela primeira vez (e pela segunda, que foi a mais impressionante), li Clarice Lispector e - o que é o mais importante - ouvi João Gilberto.
Eu era tímido e espalhafatoso. Introspectivo, entregava-me a muitas horas solitárias no galho do araçazeiro do quintal e ao piano da sala, no qual tirava de ouvido canções simples aprendidas no rádio e cujas harmonias eram massacradas pelas limitações de minha percepção, ou diante de telas em que pintava a óleo a princípio paisagens e casarios e, mais tarde, abstrações que eu pretendia que fossem muito expressivas. Extrovertido, falava com todo o mundo no ginásio, usava com freqüência um pé de meia de cada cor, deixava o cabelo
crescer até muito além da tolerância de minha mãe para depois raspa-lo por inteiro, não me intimidava quando tinha que cantar diante do público n) palco do auditório nos dias de festa (e eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações). Em suma, o personagem que eu via delinear -se em mim como
possível para mim, pouco ou nada tinha a ver com o do jovem concorrente em um daqueles concursos de rock'n'roll que tinham se tornado uma mania no Rio e em Salvador: seus participantes não demonstravam senão o desejo de se identificar com os estudantes de high school que eram vistos nos filmes jogando football americano e sendo encorajados por garotas que agitavam mamãe-sacode, a eventual rebeldia de alguns deles sendo apenas um adorno a mais na imagem invejada.
Mas a influência americana na cultura brasileira não começou com o rock'n'roll. Todos os mais velhos da minha família e das famílias amigas tinham tido uma educação formal e uma cultura literária afrancesada. Mas o cinema e a canção popular americanos - que nos anos 20 já marcavam forte presença na vida brasileira - a partir dos anos 40 passaram a dominar a cena. E, se a musica popular americana encontrou sempre por aqui a competição não apenas da rumba cubana, do tango argentino e do fado português, mas também, e sobretudo, da música brasileira, que nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de importação, o cinema de Hollywood não encontrou quase nenhuma resistência nacional e conviveu com as produções europeias e mexicanas sem maiores motivos para se sentir ameaçado. Eu aprendia um pouco de inglês no ginásio e o único uso desse aprendizado era cantar trechos de canções americanas. Todos sabíamos que, no mundo inteiro, Frank Sinatra tinha sido - e continuava sendo a estrela indiscutível, e Nat King Cole chegou a parecer, por algum tempo, uma estrela maior do que o próprio Sinatra. Além disso, ao lado de exitosas carreiras de artistas que apresentavam estilizações (às vezes extraordinariamente bem concebidas) de música característica das diferentes regiões do Brasil (como é o caso de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro e de Pedro Raimundo), havia lugar para o sucesso de um tipo como Bob Nelson que, vestido de caubói, cantava, ostentando grande habilidade no y odle (que aqui ficou conhecido como "tiro leite", numa engenhosa adaptação que dava conta da reprodução do efeito sonoro ao mesmo tempo que aludia à atividade tão tipicamente rural da ordenha), versões para o português de canções do Oeste americano, ou imitações destas compostas aqui mesmo. Santo Amaro não era uma exceção naquele mundo onde o caubói americano era uma espécie de herói mítico incontestável. Mas sobretudo nós ficávamos extasiados com os grandes musicais da Metro - voltávamos para casa depois do cinema imitando os passos de Gene Kelly e Cyd Charisse. De modo que os fãs de Elvis Presley, quando apareceram, deveriam ser os representantes de um mero movimento de atualização do acompanhamento que fazíamos da cultura de massas americana. Mas decididamente eles não foram inicialmente recrutados entre os que partilhavam comigo as mesmas preocupações ou o mesmo tipo de sensibilidade.
Pode ser que os grandes estúdios de Hollywood tivessem - e de fato tinham razões de sobra para não temer a concorrência dos europeus no mercado de distribuição de filmes no Brasil, mas para mim e para meus amigos essa indiscutível realidade mercadológica não era uma evidência, Certamente eu lembro uma curiosa piada muito em voga em Santo Amaro no fim dos anos 40 e que consistia em se alertar o interlocutor para um cisco (inexistente) na gola da roupa, forçando-o assim a virar o rosto algo desconfortavelmente na direção do próprio ombro e aproximar o queixo da clavícula com as pálpebras superiores abaixadas, o que levava quem iniciou a piada a mudar subitamente de tom e dizer, como que flagrando o interlocutor numa tentativa de imitação de um tique sedutor de Rita Hayworth: "Olhar de Gilda...". Se este fosse um homem, naturalmente o efeito cômico era intensificado. E Minha Daia - que nós em casa chamávamos de Bette Davis – podia ser ouvida as vezes repetindo, como se estivesse apenas pensando alto: "Nunca houve mulher como Gilda". Contudo, se hoje eu sei que, ao tempo em que Marily n Monroe crescia como figura mítica, seria quase impossível encontrar um americano que sequer soubesse quem eram Françoise Arnou ou Martine Carol, à época era-nos inimaginável que alguém, em qualquer parte do mundo, não as conhecesse. Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro. Os mexicanos também. E, se - apesar da extraordinária beleza de Maria Felix - percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex, não fazíamos - nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse - nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as europeias. No início da nossa adolescência, era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses: um seio de mulher, um casal deitado numa mesma cama de ferro, a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual - tudo o que não podia ser visto num filme americano, os filmes franceses ofereciam com naturalidade. (E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar, àquela altura, nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores, não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro.) Mas o cinema italiano, à medida que o tempo passava e nós crescíamos, nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua "seriedade": o neo-realismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção.
Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor - o único que chegou a ter cinemascope - dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar - e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina.
Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade - a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado. justificou-se. limpando o nariz na gola da camisa: Esse filme é a vida da gente! Lembro de Nicinha, minha irmã mais velha, comentando que, enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando, nos filmes italianos as pessoas comiam - e às vezes falavam enquanto comiam.
Assim, beldades que mais tarde Hollywood chegou a contratar e fazer conhecidas do público americano, como Sophia Loren e Gina Lollobrigida, chegaram até nós em primeira mão e - ao lado de outras que mal foram notadas nos Estados Unidos, como Silvana Pampanini, Silvana Mangano, Rossana Podestà foram por nós cultuadas como deusas. Na verdade, vimos antes motivos para deplorar do que festejar a ida das italianas para Hollywood: as deslumbrantes moças simples que pareciam ter sido encontradas nas ruas de Nápoles, tinham agora se tornado provincianas que, uma vez na cidade grande, tomaram um banho de loja que não lhes caiu bem (na província, quando se faz alguma, faz-se uma crítica mais severa do provincianismo do que a que se pode fazer na metrópole). De todo modo, nada nos indicava que Brigitte Bardot fosse ainda que minimamente inferior a Marilyn em número de admiradores, em valor de cachê ou em representatividade do espírito do tempo. Não só nas canções que vim a fazer já nos anos 60 - e que, bem ao gosto da estética pop, ostentavam nomes de celebridades - os nomes escolhidos foram de estrelas europeias (Claudia Cardinale, Brigitte Bardot, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo): no final da década de 50, por um instante interrompi os borrões abstracionistas e pintei um retrato de Sophia Loren a partir da fotografia de uma cena do filme A mulher do rio (La donna del Pó), um subproduto do neo-realismo.
Quanto a Marily n Monroe, sem que seu papel de deusa da beleza nos parecesse convincente, e sem que estivéssemos conscientes do fato de sua condição de americana ser necessária à produção de uma verdadeira celebridade mundial, pouco víamos nela além de uma vulgar imposição comercial, e, se quiséssemos renovar nosso elenco de divas e encontrar substitutas para Ava Gardner ou Elizabeth Tay lor, Jane Russell ou Ingrid Bergman, estávamos muito mais naturalmente inclinados a ir buscá -las entre as italianas. Quando, já nos anos 60, a imagem de Marilyn ganhou importância para mim, incluída num interesse maia abrangente pela cultura de massas, ela era antes de tudo uma estrela das telas de Andy Warhol.
Mas mesmo isso me chegou de segunda mão. Digo que foi a Marily n de Warhol - e quase poderia dizer também "o Elvis de Warhol" - que se impôs a mim como figura de algum valor estético e interesse cultural porque foi a reconsideração dos ícones de grande consumo popular, a crescente tendência a tomá-los em si como informação nova, como imagens brutas que comentavam o mundo se nós não as comentássemos, o que comecei a intuir - e a captar em conversas frívolas com amigos e em artigos frívolos de jornal na virada da década de 50 para a de 60, que coincidiu com minha mudança de Santo Amaro para Salvador. Mas eu não tinha nenhum conhecimento do que se passava no mundo das artes em Nova Iorque na aurora da década louca. Em outras palavras: quem veio a realizar o gesto que deu sentido nítido a essas tendências - quem veio a fazer a série de retratos de Marilyn (e de Elvis) - foi Andy Warhol, por isso credito a ele um tipo de percepção que desenvolvi (e desenvolvi muito pouco, pois, quando mais tarde tudo veio à tona, alguns amigos meus já tinham ido muitíssimo mais longe) antes de aprender sequer o seu nome. É como se Marilyn tivesse existido apenas para ser personagem do mundo de Warhol e como se pudéssemos dizer, parafraseando Oscar Wilde sobre Balzac, que o século XX, tal como o conhecemos, é uma criação de Andy Warhol.
Claro que, a partir de um ponto, mesmo sem conhecer-lhes os nomes, eram já influências indiretas dos artistas pop americanos que me atingiam através do que via e lia - e mesmo ouvia em conversas - de artistas e escritores brasileiros mais informados ou melhor formados do que eu. Isso, no entanto, só veio a se dar de fato na segunda metade dos anos 60. Por enquanto, basta dizer que o tipo de sensibilidade que instauraria um imaginário aparentado com o imaginário pop era ainda, nesse início de década, demasiado embrionário para determinar minhas escolhas e meus julgamentos. Seria antes o caso de enfatizar quão submetido ele estava a outros movimentos do espírito que recebiam estímulos irresistíveis. De fato havia outras razões para que em mim, como na maioria dos outros garotos brasileiros da minha idade (pois não era apenas em Santo Amaro que os fãs do rock eram minoritários), a mitologia americana dos anos 50 não causasse impacto considerável. E, na verdade, muito boas razões.
No início dos anos 80, Roberto Dávila, um jornalista de televisão que mais tarde veio a ser vice-prefeito do Rio, me pediu que fosse a Nova Iorque com ele para ajudá-lo a entrevistar Mick Jagger para uma nova série de programas de entrevistas longas chamado Conexão Internacional. Fui convidado, segundo me disse ele, porque eu sabia o que se passava no mundo do rock'n'roll e falava inglês: ele faria perguntas jornalísticas ao Mick Jagger em francês e eu entremearia uma conversa mole em inglês sobre o que quer que nos fosse (a mim e a Jagger) comum. Bem, dizer que eu entendia de rock'n'roll e falava inglês só era verdade relativa ao fato de meu amigo jornalista nada entender de rock e não falar inglês absolutamente. Mas - o que não foi dito - a minha presença no programa supostamente aumentaria a curiosidade a respeito do mesmo, uma vez que um tipo como eu é freqüentemente referido na imprensa como "o Bob Dylan brasileiro", "o John Lennon brasileiro" ou - o que no caso em pauta vinha bem a calhar - "o Mick Jagger brasileiro". De todo modo, como nunca encarei essas classificações imbecis com demasiada antipatia, aceitei o convite. Também por curiosidade e admiração por Mick Jagger. Admiração que só fez crescer com esse quase impessoal contato pessoal, embora a entrevista, como programa de televisão, não resultasse muito interessante (sobretudo porque as respostas de Mick Jagger foram cobertas por uma voz que lia em primeiro plano a tradução em português). O que é interessante contar aqui é que, ao lhe perguntar como foi que o rock o conquistou, eu lhe disse do meu inicial desprezo por Elvis e comentei que, sendo eu da mesma geração dele, Mick, e, como ele, tendo chegado à universidade, o rock primeiro me parecera primário e pouco estimulante, e que para mim e para muitos outros brasileiros a bossa nova tinha tido um apelo fortíssimo que nos orientara para outra direção. Ele me interrompeu para dizer: "Isso é bom. Seria muito chato se não houvesse estilos diferentes em lugares diferentes e a música fosse mundialmente uniformizada". Não o disse em tom de gentileza, antes quase como uma branda repreensão, pois ele aparentemente julgava que eu estava me penitenciando por não ter me interessado suficientemente cedo pelo rock'n'roll. No entanto, essa sua singela observação me soava natural e absolutamente correta. Vivi e vivo como um
acontecimento auspicioso o fato de a bossa nova ter surgido entre nós justamente quando eu e meus companheiros de geração estávamos começando a aprender a pensar e a sentir.
Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: "Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro".
Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção "Desafinado" - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é mais importante – as nossas possibilidades. João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba, a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico- poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio, catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antônio Carlos Jobim, Carlos Ly ra, Newton Mendonça, João Donato, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo - seus companheiros de geração - e abriu um caminho para os mais novos que vinham chegando - Roberto Menescal, Sérgio Mendes, Nara Leão, Baden Powell, Leny Andrade -, como deu sentido ás buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham
tentando uma modernização através da imitação da música americana - Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas -, revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos); marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva - o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba.
O fato de o impacto cultural causado pela bossa nova ter tido tal abrangência e penetração seria mais facilmente compreendido por seus observadores - sobretudo seus observadores não brasileiros - se se levasse em conta não apenas o peso histórico) e sociológico que o aparecimento de uma música ultra-sofisticada necessariamente representa num contexto como o brasileiro (no qual convivem características do primeiro e do quarto mundos), mas sobretudo alguns aspectos propriamente estéticos de grande sutileza e complexidade. É muito comum, por exemplo. ler-se em artigos estrangeiros sobre a bossa nova que o primeiro e fundamental gesto dos seus criadores foi tirar o samba das ruas, afastá-lo de suas características de música de dança e transformá-lo num gênero pop para consumo de jovens urbanos de classe média. Mas a verdade é que, com o aparecimento de João Gilberto, pode-se dizer que até o oposto aconteceu. O samba já conhecia uma longa história de estilizações sofisticadas que, desde o
inicio do século, o afastaram do batuque dos terreiros da Bahia (onde ele nasceu com esse nome de samba e onde ainda é cantado, tocado e dançado em sua forma primitiva como parte da cultura viva não apenas da população analfabeta dos bairros pobres ou das áreas rurais atrasadas, mas também da classe média das cidades do recôncavo baiano) e do partido alto das favelas cariocas (cujos blocos carnavalescos foram pouco a pouco se transformando no Folies-Bergère de rua que são as atuais "escolas de samba", as quais, não obstante, apresentam nos seus conjuntos de percussão - as chamadas "bateria" - a mais impressionante manifestação de originalidade e competência de toda a arte popular brasileira).
Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos 40 e início dos 50 - os já citados pré-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado. Primeiro o teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a forma samba-canção dominava. O que se chama samba-canção - e que já foi apelidado meio pejorativamente de "sambolero" - é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecê-lo em todas as suas variações de andamento e acentuação. Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa - inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis, um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado - e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins, além do Caymmi dos anos 40.
Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de "Maria" ou "Tu", de Ary Barroso, ou "Carinhoso" de Pixinguinha por Orlando Silva - todas dos anos 30 - para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante, sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba "de rua" ou de terreiro antes a exceção do que a regra.
Nos anos 50, cantores como Ângela Maria, Carmen Costa, Nora Ney, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Dóris Monteiro (para citar alguns poucos) tinham no samba-canção "de meio de ano" - em oposição aos sambas de dança compostos especialmente para o Carnaval - o essencial de suas carreiras. Nora Ney, em particular, com sua voz grave e sua dicção límpida, fundou um estilo urbano e noturno, marcado até mesmo por uma densidade, digamos, literária, sobre o repertório de magníficos sambas-canções de Antônio Maria, Fernando Lobo e Pernambuco. (Curiosamente foi essa mesma mulher quem primeiro cantou publicamente um rock no Brasil - "Rock around the clock" -, num programa de auditório da Rádio Nacional do Rio de janeiro que tive a sorte de ouvir -, mas isso não passou de um episódio isolado em sua carreira.) O samba-canção predominava também na produção comercial de baixa qualidade. Mas mesmo os sambas de andamento) rápido - e até os que eram gravados para ser dançados, no Carnaval - recebiam tratamentos orquestrais e interpretações vocais que os afastavam da batucada primitiva. Em suma: o samba tem sido um gênero pop para consumo de populações urbanas desde sua consolidação estilística no Rio de Janeiro, para a qual o teatro, o rádio e o disco contribuíram decisivamente. Só nestes últimos decênios do século é que começaram a se comercializar as gravações de sambas de "escola" com a exuberante percussão das baterias. Inicialmente considerado um artigo para turistas, o LP anual dos sambas-enredos das grandes escolas de samba do Rio se tornou um item obrigatório na agenda das companhias de disco do Brasil - e uma previsão também obrigatória no inimaginável orçamento de larga faixa de consumidores brasileiros.
É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado, que passou a estender seus tentáculos na direção de formas brutas de manifestação musical - não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da Bahia (que já surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa), mas toda uma variada gama de estilos abordados de modo mais documental -, se deve, em última análise à bossa nova. E menos pela ação direta de alguns dos seus participantes que foram buscar as raízes de tudo no morro e no sertão - e trouxeram de lá Cartola e João do Vale, Zé Kéti e Clementina de Jesus - do que pelo grau de elaboração da estilização conseguida: sem a segurança que a bossa nova nos deu quanto à nossa capacidade de criar produtos acabados nós continuaríamos deixando os tamborins da Mocidade Independente de Padre Miguel e os harmônicos da voz de Nelson Cavaquinho longe dos estúdios.
O aparecimento da cantora Maysa - uma bela mulher de dezoito anos e selvagens olhos verdes que, com sua voz rouca, transformou-se, da noite para o dia, de jovem senhora da alta sociedade paulista, em fetiche do mundo boêmio -, imediatamente antes da eclosão da bossa nova, representou um coroamento dessa tendência para o samba-canção interiorizado e intimista que ela própria, como compositora que também era, enriqueceu com algumas canções simples e exemplares que são pouco numerosas mas nunca foram esquecidas. Há, entre as mais belas melodias que ela gravou, uma composição do Tom Jobim da fase pré-bossa nova, um autêntico samba-canção chamado "Caminhos cruzados", que João Gilberto veio a regravar anos depois. É útil comparar essas duas gravações para entender o significado do gesto fundamental da invenção da bossa nova. A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir - com o ouvido interior - o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (E o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman.) Quanto a mim, encontro nessa gravação de "Caminhos cruzados" por João um dos melhores exemplos de música de dança – e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada: eu de fato gosto de sambar ao som dessa gravação, e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba-samba que estava escondido num samba -canção que, se não fosse por ele, ia fingir para todo o sempre que era só uma balada.
Por ocasião de um recital de João em Nova Iorque, em 1988, o jornalista Julian Dibell, que sabe muito sobre a música popular brasileira e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema -, publicou no jornal Village Voice um artigo em que ele procura dar ao leitor americano uma ideia da dimensão revolucionária da bossa nova no ambiente musical e social brasileiro, caracterizando João Gilberto como o Elvis do Brasil. Essa comparação, feita quase em tom de brincadeira, aparece como imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira. Surgida no contexto apressado do jornalismo, ela pode aparentar certa irresponsabilidade, mas revela que seu autor tocou um ponto vivo da questão.
É claro que uma renovação do samba, nascida de um requinte do gosto musical em grande parte desenvolvido no culto à qualidade da canção americana dos anos 30 e ao tratamento cool dos jazzistas dos anos 50, não pode ser identificada com o rock, que é fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação. O que pensar, no entanto, se os dois são convidados a desempenhar funções semelhantes? Com efeito, as reações contra o rock nos Estados Unidos e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional. E os que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade reuniam-se em torno daqueles movimentos.
Costumo dizer que, se dependesse de mim, Elvis Presley e Marilyn Monroe nunca se teriam tornado estrelas. Fui eu, no entanto, o primeiro a mencionar - não sem que isso representasse um certo escândalo - a Coca-Cola numa letra de música no Brasil. Na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock'n'roll e tentavam imitar suas aparências. Rapazes de jeans e botas, moças de rabo-de-cavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos. Mas não apenas eles eram minoritários: eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres. Não quero dizer que se tratava de uma turma à qual eu não pertencia e com que eu mantinha uma relação de hostilidade mútua.
Não. Aquilo era mais como que uma tendência que se manifestava de forma muitas vezes acanhada em poucos dos meus conhecidos - e decididamente não entre os mais inteligentes ou os de personalidade mais interessante. Mas isso não me levava a nada além de partilhar com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico. Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes regionais ou nacionais não lidávamos com tais
noções, embora uma forma branda e ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar uni estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar. Riamos deles, como se percebêssemos que atuavam como canastrões.
Mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia. Quando eu tinha uns seis, sete anos, lá pelo fim dos anos 40, uma das nossas muitas primas mais velhas que moravam em casa conosco (essa já devia ter então mais de trinta anos) me disse, entre divertida e irritada, com aquela
sinceridade desleixada com que desabafamos perante as crianças: "Meu filhinho, eu queria morar em Paris e ser existencialista". Fiquei curioso: "Minha Daia (é assim que ainda hoje - a poucos anos do ano 2000 chamamos essa adorável criatura), o que é existencialista?". E ela, com uma raiva deliberada crescendo na voz: "Os existencialistas são filósofos que só fazem o que querem, fazem tudo o que têm vontade de fazer. Eu queria viver como eles, longe dessa vida tacanha de Santo Amaro". Numa visão retrospectiva, imagino que Minha Daia, em sua definição do existencialismo que sem dúvida era um fenômeno pop nos anos 40, poderia estar apenas repetindo os versos de uma marchinha carnavalesca de grande sucesso, chamada "Chiquita Bacana", na qual se completa o retrato da personagem que lhe dá titulo com a informação de que ela é "existencialista com toda a razão só faz o que manda o seu coração"; mas evidentemente seu conhecimento do assunto ia além dessa informação contida na marchinha, uma vez que ela se referira a "filósofos existencialistas" quando quis me contar (sem imaginar que eu nunca iria esquecer) sobre aqueles que lhe acenavam com uma vida mais livre do que aquela que lhe era possível levar em Santo Amaro. Pois bem, os nossos colegas americanizados da década seguinte não pareciam representar uma ameaça a – nem mesmo uma revolta íntima contra - essa "vida tacanha". Pelo contrario, suas atitudes, que sugeriam uma tentativa canhestra de ganhar status dentro de uma escala de valores já dados e mal interpretados, eram, a meus olhos, uma nítida marca de conformismo. Eu pessoalmente sabia que o que de fato importava para mim não os sensibilizava.
Santo Amaro era uma cidadezinha bastante homogênea do ponto de vista urbanístico e arquitetônico - mesmo) hoje, algumas edificações ainda de pé datam do século XVIII, e muitas, do século XIX - e, já na metade do século XX, não abrigava heterogeneidades sociais gritantes: a baixa classe média que povoava os sobradões e as casinhas coladas umas às outras em frente a passeios arborizados com fícus-benjamins e ruas calçadas com paralelepípedos de granito (nossa família pertencia a essa classe média: meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos), estava sempre muito perto da pobreza semi-rural que circundava a sede do município (e fornecia mão-de-obra para trabalhos domésticos), mas não tinha nenhum contato direto com a riqueza: o fausto que muitas famílias locais conheceram desde o período colonial até os fins do século XIX deixou a herança arquitetônica para funcionários públicos, padres, médicos, dentistas, juizes, advogados e pequenos comerciantes, mas a tradicional fonte de renda da região - o açúcar, com seus engenhos e usinas rodeados por vastos canaviais - passou pouco a pouco a integrar patrimônios muito maiores, centrados em outras áreas do pais, de modo que nada do que se ganhava com o que a terra do município produzia era gasto em Santo Amaro, e nenhum dos
novos grandes proprietários vivia ali ou tinha nascido ali.
Eu levava uma vida pacífica, em meio a uma família grande e amorosa, nessa cidade pequena e bonita no seu urbanismo aconchegante. No entanto, não apenas a pobreza vista sempre tão de perto me levava a querer pôr o mundo em questão: os valores e hábitos consagrados estavam longe de me parecer aceitáveis, Era impensável, por exemplo, ter sexo com as meninas que respeitávamos e de quem gostávamos; as moças pretas de famílias que beiravam a classe média tinham que ter seus cabelos espichados para que pudessem se sentir apresentáveis; as mulheres e moças "direitas" não deviam fumar; um cara com ar de cafajeste que comia os garotos (mas repetia-se sempre no ginásio que "quem começa comendo acaba dando" e esse mesmo cara já era tido como numa espécie de "fase de transição") encontrava um ambiente de cumplicidade masculina no botequim onde se insultavam os veados (ou quem quer que ao grupo de freqUentadores parecesse levemente efeminado); os homens casados eram encorajados a manter ao menos uma amante, enquanto as mulheres (amantes ou esposas) tinham que ostentar uma fidelidade inabalável etc. etc.
Claro que os princípios que estavam por trás desses hábitos não eram uma exclusividade de Santo Amaro, nem mesmo das pequenas cidades do interior: nos anos 50, com as variações de região, classe e cultura, acontecia mais ou menos o mesmo em toda parte. E, se hoje aqueles costumes parecem revolucionados a ponto de muita gente alardear a ameaça do caos, os pressupostos que os sustentavam, e que já estavam aí havia muito tempo, permanecem, ainda que muitas vezes sejam apenas matéria de discussão.
Que eu estivesse em desacordo com essas realidades era para mim muito claro.
Mas todas elas vividas em conjunto, e somadas a tantas outras de que eu não tinha consciência, produziam um mal-estar difuso que eu tentava esconjurar com pequenas excentricidades e grandes reflexões. O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por impor-se a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo. Um mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo. O fato de meu pai trabalhar em casa (a agência postal-telegráfica tinha então que ser na casa de seu chefe) contribuía muito para criar essa sensação. As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado de membros da família
também eram fatores agravantes. Muitos amigos nos freqüentavam. Todos trazíamos nossos colegas para brincar. Além das visitas que vinham ver nossos pais, companheiros de estudo e trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para conversas. Muitos eram visitantes diários indefectíveis. Assim, o casarão era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo. Nós próprios saíamos pouco, nunca nenhum de nós tendo tido o habito de ir brincar na "casa dos outros". Mas a vida alegre e sensual do recôncavo estava ali
representada pela comida (cuja famosa alta qualidade fechava ainda mais nosso mundo), pela doçura no trato, pelas rodas de samba que se refaziam a cada festa. O que não devia estar em desarmonia com os costumes sombrios e solenes que nos davam a um tempo segurança e medo. Tomávamos a benção aos nossos pais todas as manhãs ao acordar e à noite antes de ir para a cama. Ouvíamos em resposta: "Deus lhe abençoe" ou "Deus lhe faça feliz" ou "Deus lhe dê sorte".
Tratávamos nossos pais por "o senhor" e "a senhora", nunca podendo usar o "você" íntimo no Brasil, embora essa fosse uma forma abreviada de "vosmecê", um tratamento reverencial obrigatório até que, representando uma grande distensão, "o senhor" e "a senhora" vieram substituí-lo. Não podíamos dormir sem rezar. Ouvi mais de uma vez que poderíamos morrer durante o sono e ir para o inferno se fôssemos surpreendidos sem as orações. Víamos famílias inteiras vestidas de negro em luto por algum parente morto e, embora nossos mais velhos repetissem que mais importavam os verdadeiros sentimentos do que as convenções, quando morreu Mãe Mina, irmã de meu pai, nossa tia muito querida (cuja agonia eu próprio adivinhei pela respiração ofegante que ouvi de minha cama no meio da noite, no quarto onde então eu e Roberto dormíamos com ela), ficamos meses proibidos de tocar piano, ir ao cinema, dançar, usar roupas coloridas, cantar, assoviar ou rir dentro de casa (ou mesmo na rua, "na frente dos outros"). Havia o "quarto do santo", onde ficava um nicho com o Crucificado e imagens da Virgem, de santo Antônio, são José, a pomba do Espírito Santo e o
Menino Jesus. Minha Ju – a irmã de meu pai que dedicou sua vida a agudá-lo a nos criar, trabalhando com ele no telégrafo e dando-lhe a íntegra do seu salário - comandava as orações: treze noites para santo Antônio, um mês para são José, o Mês de Maria etc. Tudo isso rezado a seco, sem música, ao contrário do que se fazia em outras casas, embora na igreja Minha Ju fosse (boa) cantora do coro.
Eu me aconchegava nesses rituais, mas, a pouco e pouco, fui me rebelando contra as formalidades. Eu tinha intuições filosóficas complicadas. Senti com muita força a evidência solipsista da impossibilidade de provar para mim mesmo a existência do mundo mesmo a do meu corpo. Com angústia e orgulho, eu, aos sete ou oito anos (sei que não pode ter sido depois disso pois o pensamento ocorreu no sobrado dos Correios, antes de nos mudarmos para a casa da rua do Amparo, o que se deu quando completei oito anos), me prometia crescer para fazer um escândalo entre os homens a respeito da certeza de que, se não posso sair de mim - e não posso -, não há mundo nem coisas nem nada, só meu pensamento.
E me encolhia diante do contra-senso de querer gritar para os outros homens que sabia que eles não existiam. Eu então chegava mesmo a pensar que seria um modo de forçar algum acontecimento no mundo, denunciar a sua inexistência.
Pouco depois de nossa mudança para a rua do Amparo, eu, que fizera a primeira comunhão e tinha de assistir á missa dominical, decidi comunicar aos meus familiares que não acreditava em Deus nem nos padres. Não o fiz em tom oficial nem mesmo com tanta clareza por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha Ju. Era curioso que não fosse assim necessariamente também para meus pais. De fato, eles eram os únicos que não iam á missa aos domingos, aproveitando a saída de todos para ficarem a sós no único dia da semana em que meu pai não trabalhava. Nessa casa da rua do Amparo, onde minha mãe vive até hoje, aconteceram as coisas mais importantes de minha formação. Ali eu descobri o sexo genital, vi La strada, me apaixonei pela primeira vez (e pela segunda, que foi a mais impressionante), li Clarice Lispector e - o que é o mais importante - ouvi João Gilberto.
Eu era tímido e espalhafatoso. Introspectivo, entregava-me a muitas horas solitárias no galho do araçazeiro do quintal e ao piano da sala, no qual tirava de ouvido canções simples aprendidas no rádio e cujas harmonias eram massacradas pelas limitações de minha percepção, ou diante de telas em que pintava a óleo a princípio paisagens e casarios e, mais tarde, abstrações que eu pretendia que fossem muito expressivas. Extrovertido, falava com todo o mundo no ginásio, usava com freqüência um pé de meia de cada cor, deixava o cabelo
crescer até muito além da tolerância de minha mãe para depois raspa-lo por inteiro, não me intimidava quando tinha que cantar diante do público n) palco do auditório nos dias de festa (e eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações). Em suma, o personagem que eu via delinear -se em mim como
possível para mim, pouco ou nada tinha a ver com o do jovem concorrente em um daqueles concursos de rock'n'roll que tinham se tornado uma mania no Rio e em Salvador: seus participantes não demonstravam senão o desejo de se identificar com os estudantes de high school que eram vistos nos filmes jogando football americano e sendo encorajados por garotas que agitavam mamãe-sacode, a eventual rebeldia de alguns deles sendo apenas um adorno a mais na imagem invejada.
Mas a influência americana na cultura brasileira não começou com o rock'n'roll. Todos os mais velhos da minha família e das famílias amigas tinham tido uma educação formal e uma cultura literária afrancesada. Mas o cinema e a canção popular americanos - que nos anos 20 já marcavam forte presença na vida brasileira - a partir dos anos 40 passaram a dominar a cena. E, se a musica popular americana encontrou sempre por aqui a competição não apenas da rumba cubana, do tango argentino e do fado português, mas também, e sobretudo, da música brasileira, que nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de importação, o cinema de Hollywood não encontrou quase nenhuma resistência nacional e conviveu com as produções europeias e mexicanas sem maiores motivos para se sentir ameaçado. Eu aprendia um pouco de inglês no ginásio e o único uso desse aprendizado era cantar trechos de canções americanas. Todos sabíamos que, no mundo inteiro, Frank Sinatra tinha sido - e continuava sendo a estrela indiscutível, e Nat King Cole chegou a parecer, por algum tempo, uma estrela maior do que o próprio Sinatra. Além disso, ao lado de exitosas carreiras de artistas que apresentavam estilizações (às vezes extraordinariamente bem concebidas) de música característica das diferentes regiões do Brasil (como é o caso de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro e de Pedro Raimundo), havia lugar para o sucesso de um tipo como Bob Nelson que, vestido de caubói, cantava, ostentando grande habilidade no y odle (que aqui ficou conhecido como "tiro leite", numa engenhosa adaptação que dava conta da reprodução do efeito sonoro ao mesmo tempo que aludia à atividade tão tipicamente rural da ordenha), versões para o português de canções do Oeste americano, ou imitações destas compostas aqui mesmo. Santo Amaro não era uma exceção naquele mundo onde o caubói americano era uma espécie de herói mítico incontestável. Mas sobretudo nós ficávamos extasiados com os grandes musicais da Metro - voltávamos para casa depois do cinema imitando os passos de Gene Kelly e Cyd Charisse. De modo que os fãs de Elvis Presley, quando apareceram, deveriam ser os representantes de um mero movimento de atualização do acompanhamento que fazíamos da cultura de massas americana. Mas decididamente eles não foram inicialmente recrutados entre os que partilhavam comigo as mesmas preocupações ou o mesmo tipo de sensibilidade.
Pode ser que os grandes estúdios de Hollywood tivessem - e de fato tinham razões de sobra para não temer a concorrência dos europeus no mercado de distribuição de filmes no Brasil, mas para mim e para meus amigos essa indiscutível realidade mercadológica não era uma evidência, Certamente eu lembro uma curiosa piada muito em voga em Santo Amaro no fim dos anos 40 e que consistia em se alertar o interlocutor para um cisco (inexistente) na gola da roupa, forçando-o assim a virar o rosto algo desconfortavelmente na direção do próprio ombro e aproximar o queixo da clavícula com as pálpebras superiores abaixadas, o que levava quem iniciou a piada a mudar subitamente de tom e dizer, como que flagrando o interlocutor numa tentativa de imitação de um tique sedutor de Rita Hayworth: "Olhar de Gilda...". Se este fosse um homem, naturalmente o efeito cômico era intensificado. E Minha Daia - que nós em casa chamávamos de Bette Davis – podia ser ouvida as vezes repetindo, como se estivesse apenas pensando alto: "Nunca houve mulher como Gilda". Contudo, se hoje eu sei que, ao tempo em que Marily n Monroe crescia como figura mítica, seria quase impossível encontrar um americano que sequer soubesse quem eram Françoise Arnou ou Martine Carol, à época era-nos inimaginável que alguém, em qualquer parte do mundo, não as conhecesse. Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro. Os mexicanos também. E, se - apesar da extraordinária beleza de Maria Felix - percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex, não fazíamos - nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse - nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as europeias. No início da nossa adolescência, era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses: um seio de mulher, um casal deitado numa mesma cama de ferro, a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual - tudo o que não podia ser visto num filme americano, os filmes franceses ofereciam com naturalidade. (E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar, àquela altura, nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores, não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro.) Mas o cinema italiano, à medida que o tempo passava e nós crescíamos, nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua "seriedade": o neo-realismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção.
Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor - o único que chegou a ter cinemascope - dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar - e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina.
Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade - a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado. justificou-se. limpando o nariz na gola da camisa: Esse filme é a vida da gente! Lembro de Nicinha, minha irmã mais velha, comentando que, enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando, nos filmes italianos as pessoas comiam - e às vezes falavam enquanto comiam.
Assim, beldades que mais tarde Hollywood chegou a contratar e fazer conhecidas do público americano, como Sophia Loren e Gina Lollobrigida, chegaram até nós em primeira mão e - ao lado de outras que mal foram notadas nos Estados Unidos, como Silvana Pampanini, Silvana Mangano, Rossana Podestà foram por nós cultuadas como deusas. Na verdade, vimos antes motivos para deplorar do que festejar a ida das italianas para Hollywood: as deslumbrantes moças simples que pareciam ter sido encontradas nas ruas de Nápoles, tinham agora se tornado provincianas que, uma vez na cidade grande, tomaram um banho de loja que não lhes caiu bem (na província, quando se faz alguma, faz-se uma crítica mais severa do provincianismo do que a que se pode fazer na metrópole). De todo modo, nada nos indicava que Brigitte Bardot fosse ainda que minimamente inferior a Marilyn em número de admiradores, em valor de cachê ou em representatividade do espírito do tempo. Não só nas canções que vim a fazer já nos anos 60 - e que, bem ao gosto da estética pop, ostentavam nomes de celebridades - os nomes escolhidos foram de estrelas europeias (Claudia Cardinale, Brigitte Bardot, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo): no final da década de 50, por um instante interrompi os borrões abstracionistas e pintei um retrato de Sophia Loren a partir da fotografia de uma cena do filme A mulher do rio (La donna del Pó), um subproduto do neo-realismo.
Quanto a Marily n Monroe, sem que seu papel de deusa da beleza nos parecesse convincente, e sem que estivéssemos conscientes do fato de sua condição de americana ser necessária à produção de uma verdadeira celebridade mundial, pouco víamos nela além de uma vulgar imposição comercial, e, se quiséssemos renovar nosso elenco de divas e encontrar substitutas para Ava Gardner ou Elizabeth Tay lor, Jane Russell ou Ingrid Bergman, estávamos muito mais naturalmente inclinados a ir buscá -las entre as italianas. Quando, já nos anos 60, a imagem de Marilyn ganhou importância para mim, incluída num interesse maia abrangente pela cultura de massas, ela era antes de tudo uma estrela das telas de Andy Warhol.
Mas mesmo isso me chegou de segunda mão. Digo que foi a Marily n de Warhol - e quase poderia dizer também "o Elvis de Warhol" - que se impôs a mim como figura de algum valor estético e interesse cultural porque foi a reconsideração dos ícones de grande consumo popular, a crescente tendência a tomá-los em si como informação nova, como imagens brutas que comentavam o mundo se nós não as comentássemos, o que comecei a intuir - e a captar em conversas frívolas com amigos e em artigos frívolos de jornal na virada da década de 50 para a de 60, que coincidiu com minha mudança de Santo Amaro para Salvador. Mas eu não tinha nenhum conhecimento do que se passava no mundo das artes em Nova Iorque na aurora da década louca. Em outras palavras: quem veio a realizar o gesto que deu sentido nítido a essas tendências - quem veio a fazer a série de retratos de Marilyn (e de Elvis) - foi Andy Warhol, por isso credito a ele um tipo de percepção que desenvolvi (e desenvolvi muito pouco, pois, quando mais tarde tudo veio à tona, alguns amigos meus já tinham ido muitíssimo mais longe) antes de aprender sequer o seu nome. É como se Marilyn tivesse existido apenas para ser personagem do mundo de Warhol e como se pudéssemos dizer, parafraseando Oscar Wilde sobre Balzac, que o século XX, tal como o conhecemos, é uma criação de Andy Warhol.
Claro que, a partir de um ponto, mesmo sem conhecer-lhes os nomes, eram já influências indiretas dos artistas pop americanos que me atingiam através do que via e lia - e mesmo ouvia em conversas - de artistas e escritores brasileiros mais informados ou melhor formados do que eu. Isso, no entanto, só veio a se dar de fato na segunda metade dos anos 60. Por enquanto, basta dizer que o tipo de sensibilidade que instauraria um imaginário aparentado com o imaginário pop era ainda, nesse início de década, demasiado embrionário para determinar minhas escolhas e meus julgamentos. Seria antes o caso de enfatizar quão submetido ele estava a outros movimentos do espírito que recebiam estímulos irresistíveis. De fato havia outras razões para que em mim, como na maioria dos outros garotos brasileiros da minha idade (pois não era apenas em Santo Amaro que os fãs do rock eram minoritários), a mitologia americana dos anos 50 não causasse impacto considerável. E, na verdade, muito boas razões.
No início dos anos 80, Roberto Dávila, um jornalista de televisão que mais tarde veio a ser vice-prefeito do Rio, me pediu que fosse a Nova Iorque com ele para ajudá-lo a entrevistar Mick Jagger para uma nova série de programas de entrevistas longas chamado Conexão Internacional. Fui convidado, segundo me disse ele, porque eu sabia o que se passava no mundo do rock'n'roll e falava inglês: ele faria perguntas jornalísticas ao Mick Jagger em francês e eu entremearia uma conversa mole em inglês sobre o que quer que nos fosse (a mim e a Jagger) comum. Bem, dizer que eu entendia de rock'n'roll e falava inglês só era verdade relativa ao fato de meu amigo jornalista nada entender de rock e não falar inglês absolutamente. Mas - o que não foi dito - a minha presença no programa supostamente aumentaria a curiosidade a respeito do mesmo, uma vez que um tipo como eu é freqüentemente referido na imprensa como "o Bob Dylan brasileiro", "o John Lennon brasileiro" ou - o que no caso em pauta vinha bem a calhar - "o Mick Jagger brasileiro". De todo modo, como nunca encarei essas classificações imbecis com demasiada antipatia, aceitei o convite. Também por curiosidade e admiração por Mick Jagger. Admiração que só fez crescer com esse quase impessoal contato pessoal, embora a entrevista, como programa de televisão, não resultasse muito interessante (sobretudo porque as respostas de Mick Jagger foram cobertas por uma voz que lia em primeiro plano a tradução em português). O que é interessante contar aqui é que, ao lhe perguntar como foi que o rock o conquistou, eu lhe disse do meu inicial desprezo por Elvis e comentei que, sendo eu da mesma geração dele, Mick, e, como ele, tendo chegado à universidade, o rock primeiro me parecera primário e pouco estimulante, e que para mim e para muitos outros brasileiros a bossa nova tinha tido um apelo fortíssimo que nos orientara para outra direção. Ele me interrompeu para dizer: "Isso é bom. Seria muito chato se não houvesse estilos diferentes em lugares diferentes e a música fosse mundialmente uniformizada". Não o disse em tom de gentileza, antes quase como uma branda repreensão, pois ele aparentemente julgava que eu estava me penitenciando por não ter me interessado suficientemente cedo pelo rock'n'roll. No entanto, essa sua singela observação me soava natural e absolutamente correta. Vivi e vivo como um
acontecimento auspicioso o fato de a bossa nova ter surgido entre nós justamente quando eu e meus companheiros de geração estávamos começando a aprender a pensar e a sentir.
Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: "Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro".
Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção "Desafinado" - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é mais importante – as nossas possibilidades. João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba, a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico- poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio, catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antônio Carlos Jobim, Carlos Ly ra, Newton Mendonça, João Donato, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo - seus companheiros de geração - e abriu um caminho para os mais novos que vinham chegando - Roberto Menescal, Sérgio Mendes, Nara Leão, Baden Powell, Leny Andrade -, como deu sentido ás buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham
tentando uma modernização através da imitação da música americana - Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas -, revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos); marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva - o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba.
O fato de o impacto cultural causado pela bossa nova ter tido tal abrangência e penetração seria mais facilmente compreendido por seus observadores - sobretudo seus observadores não brasileiros - se se levasse em conta não apenas o peso histórico) e sociológico que o aparecimento de uma música ultra-sofisticada necessariamente representa num contexto como o brasileiro (no qual convivem características do primeiro e do quarto mundos), mas sobretudo alguns aspectos propriamente estéticos de grande sutileza e complexidade. É muito comum, por exemplo. ler-se em artigos estrangeiros sobre a bossa nova que o primeiro e fundamental gesto dos seus criadores foi tirar o samba das ruas, afastá-lo de suas características de música de dança e transformá-lo num gênero pop para consumo de jovens urbanos de classe média. Mas a verdade é que, com o aparecimento de João Gilberto, pode-se dizer que até o oposto aconteceu. O samba já conhecia uma longa história de estilizações sofisticadas que, desde o
inicio do século, o afastaram do batuque dos terreiros da Bahia (onde ele nasceu com esse nome de samba e onde ainda é cantado, tocado e dançado em sua forma primitiva como parte da cultura viva não apenas da população analfabeta dos bairros pobres ou das áreas rurais atrasadas, mas também da classe média das cidades do recôncavo baiano) e do partido alto das favelas cariocas (cujos blocos carnavalescos foram pouco a pouco se transformando no Folies-Bergère de rua que são as atuais "escolas de samba", as quais, não obstante, apresentam nos seus conjuntos de percussão - as chamadas "bateria" - a mais impressionante manifestação de originalidade e competência de toda a arte popular brasileira).
Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos 40 e início dos 50 - os já citados pré-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado. Primeiro o teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a forma samba-canção dominava. O que se chama samba-canção - e que já foi apelidado meio pejorativamente de "sambolero" - é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecê-lo em todas as suas variações de andamento e acentuação. Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa - inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis, um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado - e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins, além do Caymmi dos anos 40.
Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de "Maria" ou "Tu", de Ary Barroso, ou "Carinhoso" de Pixinguinha por Orlando Silva - todas dos anos 30 - para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante, sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba "de rua" ou de terreiro antes a exceção do que a regra.
Nos anos 50, cantores como Ângela Maria, Carmen Costa, Nora Ney, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Dóris Monteiro (para citar alguns poucos) tinham no samba-canção "de meio de ano" - em oposição aos sambas de dança compostos especialmente para o Carnaval - o essencial de suas carreiras. Nora Ney, em particular, com sua voz grave e sua dicção límpida, fundou um estilo urbano e noturno, marcado até mesmo por uma densidade, digamos, literária, sobre o repertório de magníficos sambas-canções de Antônio Maria, Fernando Lobo e Pernambuco. (Curiosamente foi essa mesma mulher quem primeiro cantou publicamente um rock no Brasil - "Rock around the clock" -, num programa de auditório da Rádio Nacional do Rio de janeiro que tive a sorte de ouvir -, mas isso não passou de um episódio isolado em sua carreira.) O samba-canção predominava também na produção comercial de baixa qualidade. Mas mesmo os sambas de andamento) rápido - e até os que eram gravados para ser dançados, no Carnaval - recebiam tratamentos orquestrais e interpretações vocais que os afastavam da batucada primitiva. Em suma: o samba tem sido um gênero pop para consumo de populações urbanas desde sua consolidação estilística no Rio de Janeiro, para a qual o teatro, o rádio e o disco contribuíram decisivamente. Só nestes últimos decênios do século é que começaram a se comercializar as gravações de sambas de "escola" com a exuberante percussão das baterias. Inicialmente considerado um artigo para turistas, o LP anual dos sambas-enredos das grandes escolas de samba do Rio se tornou um item obrigatório na agenda das companhias de disco do Brasil - e uma previsão também obrigatória no inimaginável orçamento de larga faixa de consumidores brasileiros.
É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado, que passou a estender seus tentáculos na direção de formas brutas de manifestação musical - não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da Bahia (que já surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa), mas toda uma variada gama de estilos abordados de modo mais documental -, se deve, em última análise à bossa nova. E menos pela ação direta de alguns dos seus participantes que foram buscar as raízes de tudo no morro e no sertão - e trouxeram de lá Cartola e João do Vale, Zé Kéti e Clementina de Jesus - do que pelo grau de elaboração da estilização conseguida: sem a segurança que a bossa nova nos deu quanto à nossa capacidade de criar produtos acabados nós continuaríamos deixando os tamborins da Mocidade Independente de Padre Miguel e os harmônicos da voz de Nelson Cavaquinho longe dos estúdios.
O aparecimento da cantora Maysa - uma bela mulher de dezoito anos e selvagens olhos verdes que, com sua voz rouca, transformou-se, da noite para o dia, de jovem senhora da alta sociedade paulista, em fetiche do mundo boêmio -, imediatamente antes da eclosão da bossa nova, representou um coroamento dessa tendência para o samba-canção interiorizado e intimista que ela própria, como compositora que também era, enriqueceu com algumas canções simples e exemplares que são pouco numerosas mas nunca foram esquecidas. Há, entre as mais belas melodias que ela gravou, uma composição do Tom Jobim da fase pré-bossa nova, um autêntico samba-canção chamado "Caminhos cruzados", que João Gilberto veio a regravar anos depois. É útil comparar essas duas gravações para entender o significado do gesto fundamental da invenção da bossa nova. A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir - com o ouvido interior - o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (E o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman.) Quanto a mim, encontro nessa gravação de "Caminhos cruzados" por João um dos melhores exemplos de música de dança – e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada: eu de fato gosto de sambar ao som dessa gravação, e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba-samba que estava escondido num samba -canção que, se não fosse por ele, ia fingir para todo o sempre que era só uma balada.
Por ocasião de um recital de João em Nova Iorque, em 1988, o jornalista Julian Dibell, que sabe muito sobre a música popular brasileira e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema -, publicou no jornal Village Voice um artigo em que ele procura dar ao leitor americano uma ideia da dimensão revolucionária da bossa nova no ambiente musical e social brasileiro, caracterizando João Gilberto como o Elvis do Brasil. Essa comparação, feita quase em tom de brincadeira, aparece como imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira. Surgida no contexto apressado do jornalismo, ela pode aparentar certa irresponsabilidade, mas revela que seu autor tocou um ponto vivo da questão.
É claro que uma renovação do samba, nascida de um requinte do gosto musical em grande parte desenvolvido no culto à qualidade da canção americana dos anos 30 e ao tratamento cool dos jazzistas dos anos 50, não pode ser identificada com o rock, que é fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação. O que pensar, no entanto, se os dois são convidados a desempenhar funções semelhantes? Com efeito, as reações contra o rock nos Estados Unidos e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional. E os que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade reuniam-se em torno daqueles movimentos.
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