Entre 1964 e 1968, os militares foram se ajeitando na cadeira. Caía a ficha da sociedade civil, a ditadura viera para ficar. Com os ânimos acirrados depois da implantação dos atos institucionais, parcela numerosa de estudantes, artistas e intelectuais passou a expressar seus desejos nos festivais da canção. Dos festivais sairia o conceito de MPB: música engajada, politizada, crítica, renovadora. O rótulo virou “sinônimo” de música brasileira.
Em 1965, no I Festival de Música Popular Brasileira, da extinta TV Excelsior, o compositor Edu Lobo venceu com “Arrastão”, obra-prima composta em parceria com Vinicius de Moraes:
Ê! Tem jangada no mar.
Ê! Iê! Iê! Hoje tem arrastão.
Ê! Todo mundo pescar.
Chega de sombra e João.
No mesmo ano de “Arrastão” estreou na TV Record o programa Jovem Guarda. Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa formaram a tríade básica do programa que acabou por dar nome ao novo movimento. O desafio da produção era manter elevada a audiência da emissora nas tardes de domingo, até então garantida pelas transmissões ao vivo dos jogos de futebol.
A jovem guarda, primeiro e mais coeso movimento do rock brasileiro, também era conhecida como “iê-iê-iê”, em alusão à clássica música dos Beatles.
A jovem guarda motivou comportamentos, gírias e modas juvenis. Suas letras destacavam a temática do amor e da vitalidade da juventude, tudo bem docinho para não agredir os ouvidos. Eram jovens pouco interessados em política e que tampouco tinham o objetivo de compor músicas de protesto ou canções que virassem de pernas para o ar a cultura brasileira. De pernas para o ar até que eles queriam, mas no sentido da dança, do embalo e do ritmo. “É proibido fumar”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, parecia uma composição de protesto contra a ditadura:
É proibido fumar,
Diz o aviso que eu li.
É proibido fumar,
Pois o fogo pode pegar.
O fogo que “bombeiro nenhum poderia apagar” era apenas um beijo apaixonado, saindo faísca...
A TV Record, que exibia o programa Jovem guarda, também teve o seu festival. E o compositor Geraldo Vandré, uma das grandes vítimas da violência dos militares, venceu o primeiro deles com “Disparada”, feita em parceria com Theo de Barros:
Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar,
Eu venho lá do sertão,
eu venho lá do sertão,
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar.
Nos anos de chumbo, dois “movimentos” provocadores ao status quo se destacavam. A música de protesto, ou de resistência e engajamento, que buscava a “autenticidade”, as raízes da cultura musical brasileira. Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Taiguara, entre outros, eram defensores dessa bandeira. Já o tropicalismo sintonizava em outras ondas. O aspecto político do movimento estava atrelado a uma vasta proposta cultural e estética (com interlocução nas artes plásticas, no cinema e no teatro). A canção-manifesto do movimento, “Tropicália”, feita por Caetano Veloso, representava o Brasil dos meninos bossa-novistas, do “roqueiro” Roberto Carlos, das alegorias de Carmen Miranda, da angelical “A banda” de Chico Buarque. Tudo em tom carnavalesco:
Sobre a cabeça os aviões,
Sob os meus pés os caminhões.
Aponta contra os chapadões.
Meu nariz.
Em 1968, no III Festival da TV Globo, a crítica do compositor Chico Buarque ao regime era afiada em “Sabiá”. De verniz romântico, a letra revelava a habilidade do poeta em usar metáforas para fugir da censura:
Vou voltar,
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar,
Foi lá e é ainda lá...
No mesmo festival, Geraldo Vandré resolveu ser explícito ao convocar o povo às ruas em “Pra não dizer que não falei das flores”:
Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.
A letra tem um apelo tão forte que, quando ficou em segundo lugar – perdendo para a magnífica “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque –, o público presente no Maracanãzinho cantou-a em coro, rejeitando a indicação da primeira colocada. Eis os versos de “Caminhando” – como a música ficou conhecida –, que seriam entoados durante anos, na campanha pela Anistia, ao final da década de 1970 e nas manifestações pelas Diretas Já, no começo dos anos 1980:
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais, braços dados ou não.
Nas escolas, nas ruas, campos, construções,
Caminhando e cantando e seguindo a canção.
Em 1968, os estudantes foram às ruas protestar contra a ditadura. Aquela era uma época de intensa mobilização estudantil no mundo todo. No Brasil, os confrontos entre a polícia e os manifestantes se multiplicaram. Uma passeata contra o aumento de preço da refeição, em um restaurante universitário, no Rio, gerou um conflito com a Polícia Militar, vitimando o secundarista Edson Luís de Lima Souto. Era o estopim no barril de pólvora. Milton Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram “Menino”, em homenagem ao estudante:
Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Edson Luís tornou-se um mártir do movimento. Seu corpo foi carregado pelas ruas do Centro do Rio e velado na Assembleia Legislativa por mais de 50 mil pessoas. Mobilizações e greves varreram o país. Era 26 de junho, e a Passeata dos Cem Mil levou às ruas estudantes, artistas, intelectuais, a ala progressista da Igreja católica, operários, trabalhadores em geral, mães de presos políticos, na maior demonstração pública de repúdio à ditadura. Em “Enquanto seu lobo não vem”, o compositor Caetano Veloso celebrava as passeatas da época, levando o estribilho da canção para um dos maiores palcos das manifestações populares, a avenida Presidente Vargas:
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas (Os clarins da banda militar...)
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas (Os clarins da banda militar...)
Se as manifestações deixavam os militares furiosos, a coisa ficou feia quando o jornalista Márcio Moreira Alves, na época deputado federal, resolveu fazer um discurso daqueles, dizendo que o Exército era um “valhacouto de torturadores”. Ainda empolgado com o discurso, Márcio pediu às mulheres dos militares uma greve de sexo. Dá para imaginar o efeito bombástico do pronunciamento? A seca foi geral! O discurso foi rapidamente impresso e distribuído nos quartéis. Os militares da linha dura queriam a cassação imediata do deputado. Corajosamente, o Congresso não permitiu. O presidente Costa e Silva estava numa encruzilhada. De um lado, manifestações populares, greves, passeatas estudantis, movimentos de esquerda se organizando; de outro, a linha dura do Exército querendo uma resposta à altura dos acontecimentos. Numa sexta-feira, em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva baixou o Ato Institucional n.5 (AI-5). No ato, o cantor Roberto Silva lançou a música “Tom maior”, de Martinho da Vila. A composição, feita para o filho de um amigo, logo iria se tornar sucesso, mas a letra demoraria um pouco para virar realidade:
Vai ter que amar a liberdade,
Só vai cantar em tom maior,
Vai ter a felicidade de
Ver um Brasil melhor
Registro fotográfico de Evandro Teixeira, em 26 de junho de 1968 no Rio.
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