Uma homenagem aos 105 anos do poeta compositor
O romance Quo Vadis e Vinicius de Moraes foram lançados ao mundo no mesmo ano: 1913. O romance tinha um galã super-herói chamado Marcus Vinicius, nome que Seu Clodoaldo e Dona Lídia acharam perfeitamente adequado para aquela coisinha frágil que acabara de nascer. Daí, Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes.
O pai, Clodoaldo, era funcionário da Prefeitura, tendo sido secretário do Prefeito Pereira Passos, e homem de muito dinheiro. A família morava na Gávea. Mas Clodoaldo meteu-se numa série de negócios azarados, o dinheiro foi embora, a saúde de Dona Lídia abalou-se e, em consequência, mudaram-se todos para a Ilha do Governador. Para o menino Vinicius foi ótimo:
— Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como numa cama fofa e abria as pernas aos alísios e ao luar; e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Ilha, praia, pescadores. Ambiente com o qual Vinicius conviveu e que mais tarde aparecia com frequência em sua temática. Sem pertencer à comunidade humilde (pois era mais forte o seu substrato familiar), Vinicius formou dela uma visão pura, bela, romântica e, de certa maneira, ingênua.
Se na Ilha Vinicius conhecia o que falar, em casa ia aprendendo como falar: papai, amigo de Olavo Bilac, fazia poemas e arranhava o violão. Mamãe arrancava tangos do piano. Também tinha o avô pianista e um tio, Henrique de Mello Moraes, que volta e meia chegava na Ilha com o compositor Bororó, os dois trazendo os convenientes violões. Quando não havia o sarau musical, Vinicius abria o Tesouro da juventude e ia copiando ou imitando as poesias que encontrava. Depois disso, foi até uma pena deixar que ele fizesse o curso de direito. Também, tendo-se formado, “só aguentou um mês de fórum”, sucumbindo à atração do jogo de sinuca que havia por perto. Mas a faculdade foi importante pelos amigos que fez. Entre eles, o romancista Octavio de Faria (Tragédia burguesa) que, segundo Vinicius, encaminhou-lhe os primeiros passos na literatura e apresentou-o à poesia moderna.
Em 1933, quando obteve o diploma de bacharel, sem ter nada o que fazer (vivia de mesada dos pais), escreveu letra para um Fox (Dor de uma saudade, com música de J. Medina) e uma valsa (Canção para alguém, música de Haroldo Tapajós), ambos gravados na RCA Victor, e publicou um livro de poesias (O caminho para a distância). Em música já não era inédito, pois um ano antes, 1932, fizera o fox Loura ou morena, de parceria com Haroldo Tapajós. Mas se alguém pensou que começava uma carreira de compositor, enganou-se, porque após essas três canções Vinicius só voltaria à música dezenove anos mais tarde, em 1952, com Quando tu passas por mim (parceria com Antônio Maria), gravada por Dóris Monteiro. Era uma obra precoce, e Vinicius tratou de superá-la, desenvolvendo sua poesia. Seu grupo de amigos já incluía, além de Octavio de Faria, Manuel Bandeira; e, nas viagens para ver a namoradinha paulista, Oswald e Mário de Andrade. A vida intelectual e as poesias ele as ocultava de sua outra turma, a da pesada (cachaça, carnaval e pancada), que frequentava em Copacabana. Em 1935 ficou difícil esconder que era um poeta, pois de repente tornou-se um “afamado autor”: ganhou, com o livro Forma e exegese, o Prêmio Filipe de Oliveira, que era assim uma espécie de concurso nacional de literatura. Vinicius ganhou, disputando palmo a palmo com Jorge Amado, e o livro foi muito comentado. Foi aí que Vinicius “botou na cabeça que era gênio”, ideia irritante que, como ele mesmo confessa, “demorou um pouco a passar”.
PARCEIROS...E MAIS PARCEIROS
A parceria com Tom e a gravação do LP (da Odeon, em 10 polegadas) com as músicas de Orfeu da Conceição (1957) iniciaram o período mais importante da carreira musical de Vinicius de Moraes. Johnny Alf, Lúcio Alves, Dick Farney: a interpretação da música brasileira começava a parecer diferente, invadida pelo jazz. Foi quando João Gilbertodescobriu a nova batida de violão e Tom fez o resto. Vinicius também. Foi parceiro de Tom em Chega de saudade, Brigas, nunca mais, Insensatez, Só danço samba e, afinal, Garota de Ipanema. Entre 1958 e 1960 Vinicius ficou trabalhando na embaixada em Montevidéu e, talvez pela precariedade do cinema uruguaio, vivia indo e vindo ao Rio de Janeiro, mantendo a parceria com Tom. Em 1961, um rapaz magrinho tocou a campainha da casa de Vinicius e foi logo dizendo:
— Eu sou o Carlos Lyra e queria mostrar umas músicas para você.
Desse primeiro encontro nasceram Coisa mais linda, A primeira namorada, Nada como ter amor, Você e eu. Mais tarde a dupla comporia mais uma dúzia de músicas, entre as quais Minha namorada, Maria moita e Marcha da quarta-feira de cinzas. O ano de 1961 ainda lhe traria outro grande parceiro, durante um show do Tom na boate Arpège:
— Uma noite eu vi entrar aquele molequinho que foi tocar com a orquestra. Tocava guitarra elétrica. Era o Baden. Aí, quando acabou, nos apresentaram e ele me disse: “Pois é, estava tocando para você. Tem umas músicas minhas aí que eu gostaria que você pusesse letra”.
Vinicius entusiasmou-se logo que ouviu os temas e, por ele, começariam a compor juntos no dia seguinte, não fosse Baden sofrer um de seus ocasionais desaparecimentos. Mas logo se reencontraram e o produto disso foi Canto de amor e paz, Samba em prelúdio, Pra que chorar. Depois, a série afro-sambas: Berimbau (1964), Canto de Ossanha, de Xangô, de Iemanjá, Bocochê e Lamento de Êxu. Isso, fora Consolação, Samba da bênção, Tempo feliz, Astronauta, Apelo, Tem dó, etc. Mas, falando dos parceiros, tem ainda J. Medina (em 1933), Gaya, Ary Barroso (no Rancho das namoradas), Vadico, Moacir Santos, Nilo Queiroz, Francis Hime, Pixinguinha (em Mundo melhor), Edino Krieger, Francisco Enoé, Dulce Nunes e Edu Lobo, para não dizer dos mais recentes.
Cada samba tem seu folclore próprio. Os primeiros da sagra de Baden, por exemplo, foram feitos num embalo só, que levou alguns dias, os dois trancados na casa de Vinicius, com muito uísque. No Pra que chorar, a história é meio tétrica. Estava Vinicius numa clínica de repouso (nessas ocasiões, quem repousa mesmo é o fígado), tentando fazer letra para a música do Baden, quando:
— Ouvi um choro que vinha do quarto ao lado; aí fui olhar e era um velhinho que estava à morte, cercado de parentes. Aquilo ia começar a me enfossar, mas eu não quis me preocupar, tinha que fazer o meu samba. Voltei para o quarto meio enfossado e continuei trabalhando a letra. Quando o dia começou a clarear e eu coloquei a última palavra no samba, o choro parou. Fui até lá e o velho tava morto e as pessoas ajoelhadas no quarto. Sempre que toco esse samba, eu me lembro desse fato.
Pior aconteceu com o Samba da bênção. Em 1964, quando de seus estertores diplomáticos em Paris, a serviço da UNESCO, Vinicius conheceu o produtor Pierre Barouh, a quem vendeu o argumento de um filme chamado Arrastão, que “no fim saiu uma porcaria”. Mais tarde, aqui no Brasil, Pierre pediu a Vinicius e Baden uma gravação do Samba da bênção, que levou com ele para a França. Pouco depois, Vinicius foi convidado a participar do júri do festival de Cannes (1966):
— Era o ano de Um homem, uma mulher, e o filme foi exibido. Quando da apresentação, eu ouvi a minha música e levei um susto. Fiquei contentíssimo, é claro. Na saída, o Pierre estava com a mulher esperando a gente. Abracei o cara, que maravilha e coisa e tal. Mas, daí, comecei a pensar: “Que negócio é esse de música de Francis Lai e palavras de Pierre Barouh?”
De fato, nem Vinicius nem Baden apareciam como autores da música. E a explicação do produtor era meio estranha:
— Ah, você sabe, na versão do disco já saiu o seu nome...
— Como? Isso na França, mas e no resto do mundo, como é que fica? Depois vão pensar que o samba é seu! E o meu parceiro, como é que fica?
Pierre quis cair fora, e Vinicius foi ver o diretor do filme, Claude Lelouch, que lhe respondeu:
— Olha, velho, se eu for fazer um corte no filme para incluir teu nome e o do teu parceiro, vai custar uns 160 000 francos.
— Azar seu. Você vai botar porque senão eu vou te processar.
Com jeitinho, tudo se resolve. Foi assim que o nome da dupla brasileira passou a figurar no filme, muito embora, ao que parece, não em todas as cópias. Esse período todo marcou a época áurea de Vinicius de Moraes na música popular brasileira. Entre 1963 e 1967, foram gravadas cerca de 62 composições suas. Em 1968, só seis, e pouco expressivas. Em 1969, duas, inclusive uma regravação. E Vinicius? Já estaria iniciando a contagem decrescente?
— Não foi um afastamento definitivo. Que eu tivesse desistido de fazer música ou qualquer coisa deste gênero. Primeiro lugar, meus parceiros começaram a viajar muito — o Tom, o Baden, o Carlinhos Lyra ausente também. Eu, nesses lapsos assim, costumo compor eu próprio. Mas confesso que, na verdade, não estava numa fase muito boa pra isso. Talvez uma fase pessoal. E então eu acabei desviando minha vida para outras atividades. Voltei a escrever, fazer crônica, trabalho para jornal. E talvez também um pouco devido à onda de música pop no Brasil. Não dava, pra nós, elementos de competição. A gente tinha mesmo que deixar passar.
*Texto extraído do LP “História da Música Popular Brasileira: Vinicius de Moraes”.
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