O cantor e compositor Tito Madi, falecido aos 89 anos, no final de setembro, ganhou como lápide da mídia o epíteto de “rei do samba canção”. O Jornal Nacional, da TV Globo, por exemplo, o rotulou assim, embora tenha exibido ao fundo da notícia da morte seu maior sucesso, “Chove lá fora”, uma valsa. O paulista de Pirajuí, Chauki Maddi (1929-2018), o Tito Madi, radicado no Rio, foi muito além desta simples etiqueta. A começar pelo intérprete de voz cálida, educado no alaúde da família de origem libanesa, cuja emissão aveludada antecipou o intimismo da bossa nova. Influenciou extremos, de Roberto Carlos (a promessa de um disco com as composições do ídolo nunca se realizou) ao bolerista brega baiano Anísio Silva (1920-1989), que até gravou sua rara parceria com o pernambucano Capiba, “Duas janelas”. Quanto a João Gilberto, que estreou imitando a impostação de Orlando Silva em “Meia luz” (1952), é difícil mensurar a influencia, embora uma inusitada rivalidade tenha se manifestado de forma bélica. O baiano quebrou o violão na cabeça do paulista nos bastidores da entrega de um premio musical, em 1961. O incidente rendeu dez pontos no crânio de Tito e um processo criminal aberto à sua revelia, que ele levou tempo para conseguir encerrar.
Quanto ao compositor, sua densa obra não se limitou ao gênero samba canção, onde cintilou, a partir de 1954, com temas como “Não diga não” (com Georges Henry), “Cansei de ilusões”, “Graças a Deus você voltou”, “Olha-me, diga-me”, “Há sempre um amanhã”, “Sonho e saudade”, “Canção dos olhos tristes”. Sua valsa “Chove lá fora” (“composta num passeio de barco, em dia de sol”) encantou Buck Ram do grupo americano de doo-wop, The Platters, que escreveu a versão “It’s raining outside”, com sucesso internacional. O mesmo ocorreu com outra incrível valsa de compositor, “Quero-te assim” (“I wish”), tal como “Rio triste” (“Sad river”). O entrevistei para meu programa de TV, “MPBambas”, no Canal Brasil, já após o AVC que deixou parte de seu corpo paralisado, em 2008, e ele me relatou seu arrependimento.
“Eles queriam me levar para os EUA e eu não topei. Foi um erro”, admitiu sem amargura.
Ele teria chegado na América antes da revolucionária bossa nova, para a qual contribuiu com sambas entonação sincopada como “Quando a esperança vai embora”, “Pensei, errei”, “Amor e paz”, “É fácil dizer adeus”, “Onde andará minha saudade”, “Carinho e amor”, “A menina sonha azul”. O diretor artístico da gravadora Odeon, onde Wilson Simonal estreou com um caribenho cha cha cha composto por seu mentor Carlos Imperial (“Terezinha”) necessitava de uma transição para a bossa e Tito forneceu “Está nascendo um samba” (com Romeo Nunes), gravado em 1963, um ano antes de outro petardo, “Balanço zona sul” (“balança toda pra andar/ balança até pra falar/ vai caminhando balan/ balançando sem parar”). Sucesso imediato de Simonal, este arrasa quarteirão - uma das três odes clássicas às beldades cariocas, ao lado de “Garota de Ipanema” e “Samba de verão” – foi gravado tanto por cantores quanto instrumentistas da bossa. Leny Andrade difundiu ainda sua sinuosa “Esqueça não”. E também o protesto contra o protesto “Deixa o morro cantar” (“só o morro entende o que é sofrer demais/ conheço gente que no bem bom lá da cidade/ canta o morro/ mas conhece o morro só por jornais”), que Tito registrou em seu clássico LP “Balanço zona sul e outros sucessos”, de 1966, com afiados arranjos de Eumir Deodato, onde também desponta a dissonante “Só fiz sofrer”.
Além de ter feito enorme sucesso com “Menina moça”, do craque do sambalanço Luis Antonio, o paulista de Pirajuí também embrenhou-se pelo batuque. Como em “Fale de samba que eu vou”, “Minha Mangueira”, “Minha filosofia” e “Roda de samba”, que concorreu ao Festival da Canção, de 1968, e foi registrada por outro ás do sambalanço, Miltinho. De longa atuação na noite, Tito ficou marcado por outro rótulo, cantor de fossa, a chamada dor de cotovelo amorosa, hoje popularmente intitulada sofrência. Mas ele aproveitou o mote para gravar uma série de quatro álbuns “A fossa”, entre 1971 e 1974, onde exibia-se mais como intérprete de temas alheios. Rebelde aos limites da etiqueta promocional, ele viajou nos repertórios de Caetano Veloso (“Coração vagabundo”) e João Donato (“Até quem sabe”, com Lysias Ênio) a Edu Lobo (“Canto triste”(com Vinicius de Moraes), Francis Hime (“Minha”, com Ruy Guerra) e até mesmo o êxito dos Secos & Molhados “Sangue latino” (João Ricardo/ Paulo Mendonça) e o samba redentor (e nada deprimido), “Pede passagem”, de Sidney Miller. Tito também não se confinou aos limites estabelecidos pelo problema de saúde e ainda gravou “Quero dizer que te amo”, ao lado do pianista Gilson Peranzzetta em 2015, após o belíssimo “Ilhas cristais”, de 2001, onde assinava “Dançador”, com Paulo Cesar Pinheiro.
Sua amplitude autoral o permitiu compor um aclamado hino sulista, a toada “Gauchinha bem querer” (“Rio Grande do Sul/ eu um dia voltarei/ pra rever meu rio Guaíba/ pra rever meu bem querer”). Ele foi gravado tanto por um Sérgio Ricardo iniciante, em 1959, quanto pelo característico Conjunto Farroupilha e o recém falecido folclorista local Paixão Cortes. Um reconhecimento de que o eclético autor de sambas canções, bossas, sambas, valsas, também era capaz de envergar musicalmente a bota e a bombacha de um gaúcho pilchado.
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