A cultura popular pernambucana completou o quebra-cabeças
Por José Teles
Gilberto Gil em Caruaru. Nas extremidades, os compositores Carlos Fernando e Onildo
Almeida
“O tropicalismo foi um movimento muito passageiro, mas muito intenso, com discussões muito pertinentes à música, e à cultura brasileira. Deixou naturalmente rastros que estão aí até hoje. Era um movimento muito afinado com as ideias de transformação, de globalização, que estavam ainda muito embriônicas naquela época. O tropicalismo antecipava muito dessas coisas que viriam depois, internacionalismo versus nacionalismo, e outros temas que estão agora na pauta”. Gilberto faz esta síntese da Tropicália, em outubro de 2017, dias antes de uma apresentação do Trinca de Ases, grupo formado por ele, Gal Costa e Nando Reis.
Ele tem um carinho especial pela capital pernambucana. Quando voltou do exílio, em 1972, escolheu o Recife, e o Teatro do Parque, como local do seu primeiro show no país. Há meio século atrás Gilberto Gil, enquanto cantor, nome ainda muito restrito aos meios musicais cariocas, veio, pela primeira vez à capital pernambucana para uma temporada no Teatro Popular do Nordeste, o TPN, na Conde da Boa Vista. Com ele vieram o empresário Guilherme Araújo e Roberto Santana, da Phillips, gravadora pela qual o baiano estava lançando Louvação, o álbum de estreia. O espetáculo que trouxe ao Recife tinha roteiro dele e de Caetano Veloso, com músicas autorais, boa parte conhecida através de Elis Regina, de Chico Buarque (Amanhã Ninguém Sabe) e de Caetano (Um Dia).
EQUAÇÃO
Gilberto Gil veio ao Recife, no final de abril de 1967 quando se intensificavam os debates em torno do futuro da música popular brasileira. A geração que veio depois da bossa nova, num desvio de rota, politizou o discurso e, de repente, uma ala constatou que se distanciavam não apenas da bossa, mas das evoluções estéticas que se desenvolviam nos EUA e Europa, cujos músicos, por sua vez, aproximavam-se a África do Oriente. A MPB se tornara uma ilha. A música popular brasileira precisava de uma terceira via, uma equação que os debates não conseguiam solucionar.
Em Pernambuco, Gilberto Gil resolveu o x do problema: “Chorei quando eles tocaram Pipoca Moderna. Aquilo tinha uma aparência de rústico, de primário, mas era, na verdade, altamente sofisticado. Era muito moderno, como o título da canção, orgulhosamente, anunciava. E aquela composição radicalmente nordestina me fez entender de fato, e pela primeira vez, o primitivismo moderno e complexo que soava no ritmo seguro das guitarras do rock and roll. Ou seja: a cultura popular pernambucana me ensinou a amar os Beatles”. Esse é o relato de Gil de quando foi apresentado à música da Banda de Pífanos de Caruaru (a dos irmãos Biano), onde foi levado pelos novos amigos pernambucanos. Conheceu também maracatus, cavalos marinhos, a ciranda de Lia. Na cultura popular, ele encontrou as peças que faltavam para completar o quebracabeças da modernização da MPB.
Em entrevista à Rolling Stone, Guilherme Araújo contou que na volta do Recife, no avião, Gilberto Gil tentava convencê-lo de que “os Beatles, a Jovem Guarda, Dylan e a Banda de Pífanos podiam ser tudo a mesma coisa. Em São Paulo, Gilberto Gil passou a convocar reuniões para tratar da “retomada da linha evolutiva da música popular brasileira” (a célebre expressão cunhada por Caetano Veloso no seu célebre ensaio na Revista Civilização Brasileira, em 1966). Porém a proposta de juntar a Banda de Pífanos de Caruaru com os Beatles pareceu risível a Edu Lobo, Dori Caymmi ou Chico Buarque.
Até o final de 1967, os céticos da MPB se abalariam com os caminhos a que a música brasileira seria levada por uma ala comandada por Gil e Caetano, sentiriam no lombo os versos de Aroeira, de Geraldo Vandré, que seria líder da ala nacionalista radical da MPB: “Madeira de dar em doido vai bater até quebrar”.
NO TPN
Gilberto Gil abriu Viramundo com um texto: “Eu sou um compositor brasileiro, minha responsabilidade é realizá-lo bem, dentro da verdade do meu tempo. Eu disse que pretendo fazer música vinculada ao meu tempo. Pois bem. Meu tempo é um espaço definido, o Brasil. E até que soprem ventos mais mansos, o nosso tempo de Brasil se caracteriza pela carência, pela privação, coisas do não, como diz o poeta João Cabral de Melo Neto. Por isso é que o Nordeste e suas formas são uma constante em minha música. Acho que a consciência disso é o que leva tantos jovens compositores a procurarem as formas nordestinas. No meu caso, talvez isso seja mais nítido porque há um elemento básico entre mim e o Nordeste. Nasci, cresci, nesta região”.
Gil acabara de gravar um disco que já chegava às lojas datado, para as ideias que ele ruminava. Louvação, o LP, base do seu espetáculo no Recife, já não satisfazia mais o que pretendia para a música popular brasileira. O mesmo Gilberto Gil que participara da passeata contra a guitarra elétrica em junho de 1966, agora se rendia à impossibilidade de ignorar a Jovem Guarda, os Beatles, e a guitarra elétrica, ou seja, o rock and roll.
O baiano declarou que entre as influências que sofreu, depois de Luiz Gonzaga, João Gilberto, o iê-iê-iê era a mais recente: “E realmente impossível alguém viver no mundo em que vivemos, sem sofrer a influência da cultura de massa. O iê-iê-iê é, indiscutivelmente, é uma força atuante sobre todo mundo. Não fiquei imune”.
BAIÃO COM IÊ-IÊ-IÊ
Pouco antes de encerrar a temporada no TPN, Gilberto Gil concedeu uma entrevista à repórter Penha Guimarães, do Jornal do Commercio. Na verdade, mais um depoimento, em que Gil delineia os caminhos musicais que pretendia seguir. Abaixo a transcrição da matéria, intitulada Depoimento Musical de um Viramundo:
“Eu canto com vontade porque pra mim a melhor medida ainda é o homem. Não é a morte é a vida”. Esta é a mensagem que Gilberto Gil veio trazer aos recifenses através do seu espetáculo Viramundo. Para Gil, a música é o seu gesto mais profundo, situando-se como um compositor da vanguarda, ele busca através do seu meio de expressão, um quebrar das coisas desnecessárias. Procurar virar o mundo, pois assim não o satisfaz.
“Não quero cantar o amor antes que o amor acabe, mas para que ele nunca acabe”. Quanto às possíveis influências do iê-iê-iê na música brasileira, Gil acha que ainda não está havendo, mas ela ocorrerá em virtude de uma deflagração, ou seja, de uma exigência. Segue-se uma longa explanção do baiano:
“O iê-iê-iê significa o processo de estagnação do processo cultural de uma civilização. Causando um caos que é processado pelos Beatles, e nós por uma estagnação de desenvolvimento, o caos do terceiro mundo. Se esta influência ainda não se deu foi em virtude de termos formas tão intensas quanto o iê-iê-iê, que é o nosso baião. Mas não esqueçamos que o som das guitarras estão pelas ruas, os cabeludos histéricos andam pelas ruas, e o condicionamento, seja psicológico, seja social, é uma expectativa nova que coloca os autores num impasse. Diante deste condicionamento social do público, os autores serão obrigados, forçosamente, pela expectativa, a orientarem sua atividade artística levando em conta o significado do iê-iê-iê. Tendo que deixar de lado a bandeira da purificação, porque a boa influência, ela é válida. Daí já orientar-me dentro desta nova
linha, sem colocar de lado as raízes fundamentais da nossa cultura, mas considerando o fator iê-iê-iê.
Em consequência disso é que estamos aparentemente parados, pois os compositores, sem saber o que fazer em face do problema, ficam muito no revisionismo, o que não levará a nada, por não puder retroagir, pois mesmo na época da chamada purificação da música, apareceram sambas jazzísticos e muitos deles de boa qualidade e com bons interpretes.
Isso já podemos constatar através do sucesso obtido por Disparada, quando o iê-iê-iê estava em pleno êxito nas casas de discos. Assim também foi o caso de Louvação, que competiu com Que Tudo Vá Pro Inferno, de Roberto Carlos. Mas este fenômeno é recíproco. Se eles são os donos da jogada, nós também temos as nossas cartas, e isto já faz aparecer com uma das ultimas gravações da geração jovem guarda, A Praça, que tem influência marcante de A Banda de Chico Buarque em sua letra”.
Nesta entrevista, Gilberto Gil antecipava claramente os preceitos básicos do seria rotulado de tropicalismo, que eclodiria dali a quatro meses nas eliminatórias do III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record.
KYRILLOS RELEMBRA
Em Viramundo, Gilberto Gil foi acompanhado pelo Congo Trio, formado por Sergio Kyrillos (piano) Zezinho Franco (contrabaixo), e Luciano Pimentel (bateria). Meio século depois, Kyrillos confessa que não se lembra quem deu esta denominação ao trio, mas o resto do episódio continua bem vivo na sua cabeça:
“Gil precisava de um pianista, que tivesse um bom ouvido, para assimilar 22 músicas inéditas que faziam parte do repertório do show. Fui contactado, confesso que não me lembro por quem, e apresentado como o cara de boa orelha que poderia resolver a questão. Chamei o baterista Luciano Pimentel (depois do Quinteto Violado) e o contrabaixista Zezinho Franco para a empreitada. Alguns ensaios depois, uns quatro ou cinco apenas, estávamos prontos para a estreia. Apesar das músicas inéditas, o show teve uma repercussão muito boa de público e crítica. Foram 15 dias de encantamento naquele pequeno teatro da Conde da Boa Vista. Um Dia foi uma música que marcou muito no show... “Como um dia numa festa, realçavas a manhã...” de Caetano Veloso”, recorda o pianista.
A banda viajou de ônibus para uma única apresentação no Teatro Santa Rosa de João Pessoa. !Percebi como curiosidade, que Gil dormia a viagem inteira e depois vi que não era o balanço do ônibus que o fazia dormir... ele não podia ver uma cadeira que sentava e dormia sentado. Baiano com certeza. Ao final do show chovia torrencialmente em João Pessoa e preferimos todos ficar num hotel a enfrentar a estrada com aquele temporal”, relembra Kyrillos.
“Na volta embarcamos no Aero Willis Itamaraty de meu pai rumo a TV Jornal para fazer o programa Sociedade com Alex. Atrasados, Gil me pediu tanto que acelerasse que quase bati em outro carro que vinha em sentido contrário ao fazer uma conversão”.
Ao final da temporada, o músico foi convidado a passar uns dias com Gil no Rio. “Fui ao show dele no restaurante Casa Grande e Senzala na Gávea em companhia do Guilherme Araújo empresário e da doce Gal Costa, ainda desconhecida, e de cabelo curto. Os grilhões da terra me arrastaram de volta apesar dos apelos para que ficasse trabalhando com eles.”
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