Por Ricardo Dias
Uns dias atrás entrei em estúdio para coproduzir o novo CD do João Camarero. Lá pelas tantas me dei conta que fazia exatos 30 anos que havia entrado em um pela primeira vez. E foi na gravação de um disco que foi um divisor de águas.
Se hoje não sou ninguém, há 30 anos era menos que nada. Era auxiliar do luthier Mario Jorge Passos e este estava ajudando na gravação de um CD do Rafael Rabello (que usava um de seus violões). Pois um dia ele estava indo para o estúdio em seu Fiat 147 amarelo bile e dei um jeito de ir junto.
Cheguei lá não querendo atrapalhar, na ponta dos pés. Minha memória, difusa, é dele num aquário pequeno, com fones, e perguntando “Valeu?”. Devia ter valido, com ele SEMPRE valia. Nos viu chegando, fez um aceno com a cabeça e continuou tocando.
Vocês dirão:
– Esse imbecil assiste a uma gravação histórica do Rafael Rabello (era o disco de 88, com 'Lamentos do Morro', 'Graúna'... o disco que foi a virada de sua carreira, de um violonista conhecido apenas pelos iniciados para um superstar, com algumas interpretações definitivas em nossa música) e NÃO LEMBRA?
Calma, não precisa xingar. Naquele tempo pouca gente sabia o real tamanho do Rafa. Poucos meses antes Mario Jorge me dizia:
– Saco, hoje vem aqui um daqueles violonistas cheios de dedos. Um monte de gente dizendo que ele é isso, é aquilo, deve ser uma chatice!
Pois a chatice chegou, vestindo conjunto safári (roupa antiga, camisa e calça da mesma cor e do mesmo tecido) e um sensacional relógio “de porteiro” (naqueles tempos politicamente incorretos era como chamavam relógios grandes, de metal, com mostrador degradée) e um violão BEM desregulado. Nos entreolhamos, dali não sairia nada de bom.
Mas aí ele começou a tocar, nossas bocas abriram e não fecharam até hoje.
Ah, alguns de vocês me xingaram por eu não ter prestado atenção na gravação. Gente, olha só: naquele tempo, Rafael era eterno. Ninguém podia imaginar que aquele cara não viveria 100 anos. Ele era uma coisa certa, única, porém ali, do nosso lado, aparecendo na oficina de surpresa, falando de carro, tocando qualquer violão que aparecesse enquanto jogávamos conversa fora.
Enfim, para me redimir de meu erro resolvi pedir ao próprio Mario Jorge (que aparece nos créditos do CD como Diretor de Estúdio) que nos escrevesse algumas palavras a respeito:
– Quando estudei com o Turibio Santos na Escola de Música da UFRJ um dia ele falou à turma algo sobre o Rafael, como se fala sobre alguém que todo mundo sabe quem é. E, pelo tom, como sendo alguém que todo mundo sabia que era muito bom. Só que eu não sabia quem era o Rafael, nem nunca o tinha ouvido tocar. Nem em disco nem ao vivo. Anos depois, eu já luthier, me entra pela porta da oficina de Santa Teresa o Rafael. Tirou o Ramirez do estojo (a versão do Ricardo é diferente, mas a história é minha!), tocou, e eu fiquei muitas coisas. Feliz. Boquiaberto. Deslumbrado. Besta. Me vi diante de algo que eu não imaginava que existisse. Era um violão, mas a música mandava nos dedos e não os dedos na música! E que música! Enquanto eu ainda estava boquiaberto (imagino que literalmente) me pediu que construísse um 7 cordas baseado naquele Ramirez. E, pra piorar, em 15 dias, pois ia para a Europa. Quase consegui. Quando ele voltou o violão ficou pronto. Não, não estava pronto. Ficou pronto pouco tempo depois.
Para minha sorte ficamos amigos e um dia me convidou para passar no estúdio onde estava gravando um novo disco. Não me lembro se fui chamado para opinar, mas muito metido, comecei a dar palpites. Na música. No áudio. O Rafa adorava um reverber — aquele som de piscina vazia — e eu tentava convence-lo a usar menos, sem sucesso. Fui ficando e em algumas sessões, graças à generosidade do Sergio Lima Neto, era eu quem estava sentado na cadeira ligando o gravador, dizendo “Gravando!”, e falando se tinha ficado bom ou não.
O episódio do qual me lembro mais fortemente, e que demonstra a audácia da minha presunçosa ignorância, foi quando ao final de um take de um dos movimentos da Suite Retratos, me aproximei do microfone e mandei: “Rafa, aquele sol na corda solta está chamando muita atenção. Toca na quarta corda”. E o Rafa, sem falar nada, trocou a digitação de uma música complicada durante a gravação, a quente. Não preciso dizer que saiu bom de primeira. Por isso eu tinha ficado boquiaberto lá em cima.
Ainda durante a gravação da Suíte Retratos — que só sairia completa em CD anos mais tarde, mas foi gravada nessas sessões — o Chiquinho do Acordeon saiu para fumar — no século passado se fumava, e muito — e disse que tinha visto o Radamés dentro do estúdio. Não era um fantasma, era uma agradável visita.
No mesmo estilo pé-na-porta-sem-noção eu tentava convencer o Carlão, o produtor de facto e jure do disco, dono do campo e da bola, a mudar a ordem das músicas no álbum. Produtor, engenheiro de som, coautor do hit "Menina Veneno", entre outros, ele entendia de disco, de produto, da indústria. De tudo e mais um pouco. Foi tão generoso comigo quanto Sergio, mas acho que tinha menos paciência com aquele maluco que ele não conseguia ver o que estava fazendo ali.
O disco ficou lindo. Sim, era um LP. 12 polegadas de plástico preto. É um marco na história do violão brasileiro e na carreira do Rafa, que na capa em vez da roupa da Impecável Maré Mansa — uma loja de roupas no Centro do Rio, onde o Dino se vestia — aparece com um visual moderno que sinaliza, mesmo que não fosse esse o objetivo, a sua saída do acompanhamento para o centro do palco.
PS de Ricardo Dias:
A história é do Mario, mas a coluna é minha: ele tirou do estojo primeiro um violão MUITO mal regulado! Depois é que apareceu o Ramirez...
E tenho dito!
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