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terça-feira, 17 de abril de 2018

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Azul vazio


"Bactérias num meio é cultura". O verso de Arnaldo Antunes ("Cultura", 1993) joga com a ideia da micro cultura assistida de bactérias como promotora da compreensão científica desses organismos, a fim de apontar através de desvios semânticos a nossa própria macro cultura: essa sistematização do conhecimento. 

Os elementos ordinários pinçados e problematizados pelo sujeito da canção questionam a aparência cultural das coisas - "o escuro é a metade da zebra / as raízes são as veias da seiva / o camelo é um cavalo sem sede / tartaruga por dentro é parede" - e ao fazer isso engendra a aparição destas coisas (notadamente) ordinárias.

A distinção entre aparência e aparição é radical e importante. Vide Adorno. Como uma obra de arte fala "apenas" que ela (obra) existe, e não do que existe fora dela, no meio (na cultura) onde existimos, o sujeito criado por Arnaldo destrava nosso olhar científico e adestrado sobre a aparência das coisas e, consequentemente, sobre nós mesmos, sugerindo uma experiência de mundo na arte, em que os objetos surgem como aparições para logo em seguinte desaparecerem. 

É deste modo que "a cegonha é a girafa do ganso / o cachorro é um lobo mais manso". Essas informações, ou melhor, este saber não é científico, mas nos permite des-conhecer coisas cientificamente já catalogadas, e, melhor, gera pensamento. Dito de outro modo, a arte restaura o desconhecimento do mundo desencantado pela ciência. Ou seja, o sujeito da canção de Arnaldo Antunes re-encanta o mundo, restaurando o desconhecimento de mundo, via objetos selecionados. Todos os objetos aparecem aqui para serem estranhados, desconhecidos e só deste modo podemos re-des-aprender a olhá-los.

Escrevo isso para comentar a canção "Azul vazio" (Disco, 2013), de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, cujos versos "serpete serpenteia o rio / percorre corre em minha veia / a correnteza o coração bombeia / o rio navega e lava / o pensamento leva / o corpo todo / como um navio" parecem se aproximar da busca pelo ordinário presente em "Cultura".
Antes, preciso dizer que interpreto a capa de Disco de Arnaldo Antunes como um "negativo" da obra Disco (1978) de Waltercio Caldas (ver livro Manual de ciência popular). E vice-versa. Ambos como proposições artísticas da dúvida em relação àquilo que ainda chamamos disco, no caso do primeiro, e daquilo que o barbante branco-feito-raio amarrado ao vinil instaura como dissonância no preto, no caso do segundo.

No Disco de Waltercio, o buraco-núcleo, por onde o objeto se encaixa na vitrola para tocar, foi ocupado pela passagem de um barbante-cordão-de-pão que se laça formando um raio. O Disco perde o seu miolo, ou seja, torna-se impossível saber aquilo que o disco guarda nas suas faixas, nos sulcos que uma agulha, interditada pelo raio-barbante, libertaria.
Se a princípio um disco é um conjunto-aparelho de guarda e reprodução de canções/músicas, nos casos mencionados vemos instaurada uma renúncia a tal percepção. Tanto Waltercio quanto Arnaldo singularizam o objeto para melhor apresentá-lo no mundo. Isso é um disco? Mas o que é um disco? É um disco disco? Esta "desorientação didática" está na base da arte. 

Por um breve instante, antes que eles desapareçam no cotidiano, ao olharmos os dois discos esquecemos aquilo que sabemos ser um disco. Afinal eles tem a aparência de um disco. No entanto, algo está deslocado, o sentido daquilo que define um disco se rebelou e percebemos isso, pois os discos não se submetem às nossas expectativas cientificamente construídas. Eis a aparição. "se a vida não faz sentido / porque é que morrer / haveria de fazer? ("Sentido", Arnaldo Antunes e Nando Reis), canta Arnaldo.

No Disco transparente-branco-de-miolo-preto de Arnaldo temos o encontro de estilos variados, canções de vários períodos. O disco acolhe canções, não é cofre, apenas guarda. Sua frente-vinil-branca indicia essa aglutinação de várias matizes sonoras - "Só eu fico dentro do meu branco pra quando Oxalá chegar". Já o verso do estojo imita o verso de um cd pirata, destes sem encartes que encontramos oferecidos por ambulantes/camelôs em várias partes da cidade.

O conjunto irregular, não linear das canções que constituem Disco reflete também a recusa em relação à obrigação de escolha. Arnaldo prefere não escolher, junta, monta, constrói: da bossa ao tecnobrega. "Página vazia, melodia / onde é que a palavra vai cair? / onde vai cair? / acho que ela vai aterrissar em território perigoso" ("Sou volúvel", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho), canta adiante. Além de: "tem muito pouca dúvida e muita razão / tem muito pouca ideia e muita opinião / muita pornografia e muito pouco tesão / muita cerimônia e muito pouca educação ("Muito muito pouco", Arnaldo Antunes).

O engenho do gesto de empreender o conjunto de objetos sonoros avulsos tão aparentemente díspares é a tônica do disco de Arnaldo. "A modernidade agora vai durar pra sempre, dizem / toda a tecnologia / só pra criar fantasia // deuses e ciência / vão se unir na consciência, dizem / vivermos em harmonia / não será só utopia" ("Dizem (Quem me dera)", Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho).

Se destaco "Azul vazio" é porque percebo na lírica de sua letra a condensação da busca pelo comum, pelo ordinário que mencionei anteriormente e que atravessa todas as canções. A imagem de um rio que só tem o olho d'água, que não tem beira, nem desagua no mar, que cresce sem se expandir é forte e rompe com a noção de perenidade que temos diante da duração das coisas. Tudo desagua no azul vazio. Vazio de que? Azul de Matisse?


***

Azul vazio
(Arnaldo Antunes / Marcia Xavier)

ouve só se ouve ouvir
o rio só se ouve quem
de longe lá de onde vem
o rio daqui se ouve bem
de dentro ecoa a água
que deságua no azul vazio

serpete serpenteia o rio
percorre corre em minha veia
a correnteza o coração bombeia
o rio navega e lava
o pensamento leva
o corpo todo
como um navio

um rio que não tem beira
por um fim abismo cachoeira
onde desaguar
se não tem mar
e não tem margem
só o olho d'água
brota espelho molha
o azul do céu





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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