No mês de abril, o IMMuB prestará homenagem ao centenário de Geraldo Pereira, um mineiro de Juiz de Fora criado no morro da Mangueira. Malandro, valentão, mulherengo e principalmente excelente sambista, Geraldo Pereira foi um verdadeiro cronista dos morros, dos subúrbios e da vida boêmia do Rio.
Escolhemos, como tema do mês para representá-lo, o álbum 'EVOCAÇÃO V', distribuído pela gravadora Eldorado, no ano de 1980. Este álbum foi inteiramente dedicado ao inventor de um estilo diferente de sambar, interpretado, entre outros, por Mestre Marçal, João Nogueira, Monarco, Jards Macalé e Nelson Sargento. Entre suas músicas mais famosas podemos citar "Acabou a sopa", "Acertei no milhar" (parceria com Wilson Batista, gravação histórica de Moreira da Silva), "Cabritada mal-sucedida", "Escurinha", "Escurinho" e "Falsa baiana" (duas gravações memoráveis de Cyro Monteiro), "Bolinha de papel" (ecoou na voz de João Gilberto em tempos de bossa nova), "Chegou a bonitona" e tantas outras que marcaram época.
A obra valiosíssima de Geraldo será para sempre lembrada!
Confira abaixo os textos extraídos do álbum 'EVOCAÇÃO V', assinados por Batista de Souza e Moacyr Andrade.
“... em 1944. Eu gravei a Florisbela no mesmo dia em que o Ciro gravou a Falsa Baiana, que eu nem preciso dizer nada.
O Ciro gravou de manhã na RCA, ali na Praça da República, com o regional do Benedito Lacerda, Dino, Meira e Canhoto, Popeye no pandeiro e mais o Raul de Barros. Depois, de tarde, o regional foi lá pra Continental gravar comigo. A Continental ficava ali na avenida Rio Branco, em cima do Cineac Trianon, bem defronte ao Nice. Depois da gravação nós saímos pra festejar, o Geraldo, o Ciro e eu. Meu Deus! O Ciro, meu compadre, nesse tempo era da Mayrink e já era muito popular. O Geraldo tinha gravado dois sambas no mesmo dia e eu tinha gravado meu primeiro disco. Nós saímos do Nice pra Lapa pra festejar e fomos amanhecer na Taberna da Glória.
O Geraldo estava alegre e comandou a noite toda.
'– Canta meu samba, ô Ciro.
– Agora o outro, Batista...'
Batista de Souza. (contracapa do LP)
Pixinguinha, um nome que pode resumir, simbolicamente, toda a música popular brasileira, foi talvez ao longo de quatro décadas – pelo menos do fim dos anos 20 a meados dos anos 50 – o mais ativo orquestrador e arranjador dos nossos palcos e estúdios. Isso significa que trabalhou e burilou a criação de centenas de compositores, dos mais obscuros aos mais famosos. Pixinguinha aliava a genialidade à discrição: não era qualquer coisa que provocava nele uma demonstração de arroubo, um entusiasmo que traísse a sua frieza profissional. Pois bem: uma vez, em 1939, ao fazer o arranjo para uma música de um compositor até então completamente desconhecido, o grande mestre saiu por instantes de sua sábia indiferença para pedir ao cantor Roberto Paiva, intérprete do autor estreante, que o apresentasse aquele criador tão surpreendente. E foi logo dizendo o que o comovera: o samba a que acabara de dar roupagem orquestral guardava uma melodia inteiramente original para a época. O samba era o Se Você Sair Chorando, primeira composição gravada de Geraldo Pereira.
Já estava aí nessa estreia, embora praticamente só anunciada, a fantástica divisão rítmica que consagraria Geraldo Pereira, um dos mais interessantes e mais ricos criadores de estilo, de escola, entre os compositores brasileiros. Essa marca se acentuaria logo a partir do terceiro samba que ele, no ano seguinte, e na voz de Ciro Monteiro, conseguiu pôr em disco: Acabou a Sopa, no qual as sequências de síncopes configuram uma constante. Seu domínio desse recurso foi total. Diversificando em cada nova música uma inventiva melódica de fato prodigiosa, Geraldo levou a síncope – que basicamente consiste no prolongamento do som de um tempo fraco num tempo forte – às últimas consequências, terminando por fazer-se reconhecer como o mais perfeito cultor do gênero sincopado. É ele o modelo, o paradigma, a referência: um bom samba, cheio de síncopes, hoje, soa também como uma homenagem a Geraldo Pereira, uma citação de seu papel e de sua força no desenvolvimento da nossa música popular.
Esse papel é singular também no terreno poético. Aqui, o correspondente da síncope musical é a síntese acabada e irretocável. Cada samba de Geraldo Pereira é um quadro de costumes, um comentário de um flagrante do cotidiano de um segmento social – o seu – feito sem desperdícios retóricos, sem folclorizações e sem apelos alegóricos. Seus versos tem o poder de uma boa notícia de jornal, aquela que conta tudo numas poucas linhas de uma coluna. E são mais esclarecedores, do ponto de vista de levantamento sociológico, do que a enfadonha pretensão científica de certos estudos e pesquisas acadêmicos.
É que Geraldo punha em seus sambas – com uma felicidade constatada ao se ouvir, sempre com renovado prazer, qualquer deles – o seu ambiente, o modo de vida de toda uma camada popular carioca. E como o fazia da posição de quem está de dentro, isto é, podendo ser um personagem verossímil da cena descrita (e frequentemente o era), eis-nos diante de um observador e registrador de comportamentos provavelmente inigualável entre os que, em sua época, também tentaram, como compositores populares, contribuir para a fixação de uma fase de nossa vida urbana.
Geraldo ganhou a vida como motorista dos caminhões da coleta de lixo. E gastou-a – embora seja mais correto dizer que a aproveitou – no morro (Mangueira), no subúrbio (Engenho de Dentro) e na zona boêmia (Lapa). Essas indicações sugerem tudo: trabalhou como um mouro, fez ponto nas escolas de samba e nos terreiros (os religiosos, inclusive), amanheceu nos cabarés e nas gafieiras, viveu e sofreu incontáveis ligações amorosas. Não precisou, pois – ao contrário de outros compositores que também buscaram pintar retratos sociais, mas vendo as coisas de fora, como observadores platônicos –, de imaginar ou “criar’ situações: ele viveu cercado da inspiração, que, no seu caso, eram os próprios fatos e emoções em que esteve permanentemente mergulhado.
Quando Geraldo morreu, no dia 8 de maio de 1955, aos 37 anos e de hemorragia intestinal – consequente a uma briga até hoje não suficientemente esclarecida com outra figura de escol da Lapa, o lendário Madame Satã –, fazia grande sucesso o seu samba Escurinho, gravado por Ciro Monteiro. Apesar disso, Geraldo morria pobre (Ciro teve de pagar do próprio bolso o enterro). E a impressão que se tinha era a de que estava arquivada uma página da música popular brasileira, destinada a futuras pesquisas de seus historiadores.
Seis anos mais tarde, em 1961, pleno apogeu da bossa nova, João Gilberto, o grande nome desse movimento, regravou Bolinha de Papel, um samba que 16 anos antes enriquecera o repertório dos Anjos do Inferno. Foi uma revelação: a peça, da construção rítmica à picardia da letra, era plena de atualidade.
Descobria-se aí, ou confirmava-se, outra característica da obra de Geraldo Pereira: sua perenidade, hoje inteiramente comprovada. Trata-se de um clássico, um autor de sambas à prova de todas as épocas.
Moacyr Andrade. (contracapa do LP)
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