Inspirada em hit do Bonde do Tigrão, ela convoca o cidadão a reagir aos absurdos cometidos no Brasil
Por Walter Felix
'Quero incitar as pessoas a não adormecerem, a não se acostumarem com o que é imposto', avisa a cantora e compositora Marina Lima. (foto: Rogério Cavalcanti/Divulgação)
“Quem vai colar os tais caquinhos do velho mundo?”, perguntam os primeiros versos de Pra começar, antigo sucesso de Marina Lima. Desde os anos 1980, ela mantém o teor contestador de suas letras. Nas nove faixas de Novas famílias, a cantora faz uma ode ao agora, ao moderno e à liberdade. O disco chega às lojas e plataformas digitais nesta sexta-feira (16).
A carreira de Marina sempre foi marcada por desvios, “num cenário artístico onde é difícil não virar gado”, como ela diz. “Desde o começo, por não fazer parte de nenhum nicho musical, trabalhei de forma muito independente, com estilo próprio e autoral, em parceria com o meu irmão”, afirma, referindo-se ao compositor e filósofo Antonio Cicero, integrante da Academia Brasileira de Letras desde o ano passado.
“Quando comecei, já era estranho mulher tocar guitarra. Tinha uma ou outra, mas havia poucas instrumentistas”, lembra Marina. “Pra você não virar gado, é necessária uma atitude proativa. Do contrário, você se deixa atingir e se enfraquece”, observa.
Em seu 21º álbum, Marina explicita o desejo de se manter atual, abordando o atual momento sociopolítico brasileiro na companhia de destaques da nova geração. A faixa-título, por exemplo, traz a participação especial de Marcelo Jeneci nos vocais e no piano. “É um dos caras mais talentosos que conheci nos últimos anos”, diz a compositora. O cantor Silva e o produtor e DJ João Brasil são outros convidados.
“O álbum mistura e conversa com vários estilos que existem no Brasil, mas sempre permeando o meu estilo. Confabulo com as coisas que me atraem – da música eletrônica de Belém do Pará às guarânias sertanejas”, conta. Exemplo disso é Novas famílias, canção de Marina inspirada no estilo do sertanejo Daniel.
INSTINTO
Aos 62 anos, a artista nega que a aliança com os mais jovens venha da ânsia de se modernizar. “Em última instância, pode ser que eles tenham contribuído nesse sentido, mas os convites não foram pensados dessa forma. Trabalho a partir do ímpeto e do instinto. São ações racionais, mas que vêm sem freio. As parcerias nasceram das minhas afinidades com os artistas”, explica Marina.
Piauiense, ela morou a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. Há oito anos, mudou-se para São Paulo. Na canção Juntas, presta uma homenagem ao novo lar. A letra de Antonio Cicero compara o entardecer das duas maiores cidades brasileiras, mas propõe o fim do “duelo” entre elas.
A vivência paulistana influenciou Marina. “São Paulo abriga tantos estilos... Passei a me interessar por coisas a que não tinha acesso ou que não me interessavam antes”, conta, dizendo que jamais se sentiu tão envolvida com o Brasil. Esse sentimento está evidenciado em Novas famílias.
“Moro no Brasil, sou daqui e quero que o país dê certo. Não aguento mais tudo o que nos envergonha. Não dá pra trabalhar com cultura popular ignorando o que está acontecendo. Tem que ser muito alienado e egoísta”, desabafa. “Esses assuntos vêm do meu ímpeto de cantar e, dessa forma, tentar traduzir o que está acontecendo para mais gente.”
Só os coxinhas, o primeiro single do disco, é a versão de Marina para Só as cachorras, do Bonde do Tigrão. A letra remete à “gente careta e chata, que só pensa em dinheiro, independentemente do partido ou da causa social”. Aliás, o ritmo carioca – tão criticado – não é novidade no repertório dela. “Fullgás é um funk, só que agora fiz algo mais radical”, comenta.
No clipe oficial de Só os coxinhas, lançado no início deste mês, Marina surge no Centro de São Paulo. Com um megafone nas mãos, põe os paulistanos para requebrar. Muita gente que passava pelas ruas se juntou a ela. Num boteco, a TV mostra cenas com o ex-governador carioca Anthony Garotinho, preso desde o ano passado.
A injustiça social dá o tom a Mãe gentil, em que a cantora convoca o cidadão a reagir. “Se a casa ainda não caiu/ Pega fogo/ Com um galão se vira o jogo”, diz a letra. Na capa do álbum, Marina usa top preto e tem o rosto coberto por uma bandana. Não deixa de ser uma alusão aos black blocs, jovens atuantes nas manifestações de rua do país.
“Quero incitar as pessoas a não adormecerem, a não se acostumarem com o que é imposto. Elas devem entender, por exemplo, que escola é escola, igreja é igreja e que o Estado é laico”, enfatiza. De acordo com a cantora, o título de seu álbum tem vários significados. “Um manifesto da Marina Abramovic (artista performativa sérvia) diz que quanto mais profunda e pessoal uma obra for, mais universal ela será. Eu me mudei para São Paulo, me casei, perdi meus pais e um de meus irmãos. Hoje constituo uma nova família”, lembra, defendendo a necessidade de o Brasil aprimorar leis para que inovações assim sejam respeitadas. “Novas famílias/ Com terras molhadas de amor/ Minando qualquer ditador”, canta Marina.
É urgente agir para que tais conquistas não sejam ofuscadas pela nova onda de conservadorismo e preconceito, diz ela, elogiando iniciativas como o filme Pantera Negra, que abre espaço para os afro-descendentes na indústria cultural, e o direito do travesti brasileiro de assinar o nome social. “Meu desejo é falar sobre esses assuntos de forma forte e atraente”, afirma.
CLÁSSICA
Uma legião de fãs acompanha Marina Lima devido aos hits dos anos 1980/1990. À francesa, Charme do mundo e Nosso estranho amor (com Caetano Veloso) são alguns deles. Do Mercosul é a aposta romântica da vez. Baseada em um rascunho de piano e cordas do capixaba Silva, a balada tem letra de Marina escrita no Uruguai e influenciada por elementos da cultura latino-americana. O guitarrista Dustan Gallas e o saxofonista Leo Gandelman participam da faixa.
Estrela do primeiro clipe transmitido pela MTV Brasil – a versão de Garota de Ipanema exibida na inauguração da emissora, em 1990 –, Marina revela sua falta de afinidade com o audiovisual. Por ora, não pretende transformar outra faixa em vídeo. “Não sou tão boa de clipe, sou boa de música. O foco agora são os shows”, adianta.
A voz de Marina mudou, afetada por problemas nas cordas vocais surgidos na segunda metade dos anos 1990. Mas ela mantém o pique, animada com a nova turnê, que começa por São Paulo em 21 de abril.
ATEMPORAL
Antigas canções, vez ou outra, caem como uma luva nesses novos tempos. É o caso de Pra começar, a faixa-bônus de Novas famílias. O hit oitentista, que estourou nas versões acústica e ao vivo, só agora foi gravado em estúdio. Essa parceria com Antonio Cícero é atemporal, acredita Marina. “Pátrias, famílias, religiões/ E preconceitos/ Quebrou não tem mais jeito/ Agora descubra de verdade o que você ama/ Que tudo pode ser seu”, diz a letra.
“Essa música dialoga com qualquer época em que as pessoas vivam um momento retrógrado. Como está ocorrendo agora, com esses papos de família tradicional e MBL”, dispara Marina, referindo-se ao Movimento Brasil Livre. A entidade, classificada como “nova direita”, surgiu depois das manifestações de 2013 e prepara o lançamento de candidatos às eleições de outubro.
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