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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

CRESCE NA MPB O NÚMERO DE CANTORAS QUE ENTOAM COMPOSIÇÕES PRÓPRIAS

Cantautoras dizem que a tendência é condizente com um tempo de liberdade e afirmação feminina 


Maria Leite, Anaadi e Lívia Mattos são três representantes dessa nova onda. (foto: Alê Catan/Raul Krebs/Tiago Lima/Divulgação)



Cantoras de si mesmas, ou aquilo que a música popular brasileira conhece como cantautoras. Na contracorrente de um comportamento histórico – o das mulheres que defendem canções criadas sobretudo por compositores homens –, a música brasileira tem conhecido cada vez mais defensoras das próprias ideias e da própria poesia.

A liberdade, é ela quem chega e dá sinais na alma de que, para além da interpretação, compor pode ser um ato de afirmação, uma busca pela autonomia, uma declaração de resistência ou a simples vontade de voar por frases próprias. Algo está em rotação em uma cultura historicamente dominada por compositores homens e intérpretes mulheres estabilizada na MPB a partir dos anos 60, quando Elis, Gal e Bethânia, que não compunham, passaram a lançar novos autores. Uma safra de trabalhos vibrantes, criados e interpretados recentemente por mulheres de origens e cargas culturais diversas atesta o novo tempo.

Há um caminho de liberdade conquistada, como diz a sanfoneira Lívia Mattos, mas os resquícios dos anos de predominância masculina no exercício da composição, com raras exceções, ainda são grandes, como lembra a gaúcha Anaadi, ou Ana Lonardi. De voz grande e cheia de recursos, seu primeiro álbum, Noturno, vem com produção cuidadosa nos detalhes e versos como “minha beleza mora atrás do que se pode revelar no espelho / meu corpo não é fruta nem capa de revista / é toque, sentimento e surpresa”. Sua fala segue o mesmo tom. 

Apesar de mais mulheres comporem o que cantam, ela percebe um jogo ainda desigual. “Somos desumanizadas como compositoras, como se não pudéssemos errar. Um autor homem admite que errou certa composição e isso vira um charme. Mulheres, não.” Ela diz que o surgimento de mais cantautoras é um sinal dos tempos. “Um retrato do que vivemos hoje. Sempre fomos muito intérpretes, mas eu sempre senti necessidade de cantar minha própria história.” Das 11 faixas de seu álbum, ela só não assina Samba e amor (Chico Buarque) e A flor e o espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha). Por querer, uma parceria com Roberto Menescal, traz o violão do parceiro.


PERSONALIDADE

Sem o mesmo discurso afirmativo de suas colegas, a mineira Maria Leite está com um disco pronto, O bonde. Intérprete de autores clássicos por anos, ex-backing vocal de Edson Cordeiro, ela sente que compor é mais um ato de descoberta da própria identidade. “Sempre senti que produzir meu material me daria personalidade. Temos tantas canções já definitivas que preferi, para este trabalho, me investigar.” Seu disco abre com O bonde, assinada por ela e pela pianista Silvia Goes, que participa da sessão instrumental ao lado do baterista Cuca Teixeira e do baixista Thiago Espírito Santo.

Carol Andrade, de São Paulo, chegou este ano com um álbum autoral depois de outros como intérprete. Sorria, seu terceiro projeto, trouxe apenas músicas assinadas por ela e algumas interrogações. “Por que um disco autoral?” “Por que as pessoas vão querer ouvir minhas canções?” “Será que essas músicas que faço são relevantes?”

Seu caminho, como o de Maria Leite, também foi natural. “Cantei jazz, blues, música brasileira a vida toda, sempre ouvindo os grandes compositores. Mas chega um determinado momento em que você quer criar. E cantar a música que se cria é diferente.”

A baiana Lívia Mattos, conhecida até então como “a sanfoneira de Chico Cesar”, tem recebido elogios por seu álbum de estreia, Vinha da ida. Ela quebra não só o roteiro das intérpretes dos “homens clássicos”, como eleva seu instrumento a outros discursos de música popular. Chegar com um disco 100% autoral foi um risco assumido, ela sabe, mas os impulsos decidiram o caminho.

“Acredito na liberdade que se conquista, e esse é um movimento que tem a ver com o século 21. Estamos fazendo essa transição.” Olhos de Teresa, a bela canção que fez para a avó, tem se revelado um destaque natural. “Os olhos de Tereza têm mar dentro, uma represa/Os olhos de Tereza, calmos, como quem esqueceu a pressa.”

Além da liberdade, autonomia também é algo que se conquista quando se assina o que se canta. “E adoro poder ter participado de todo o processo do disco e poder resolver fazer um show de sanfona e voz se for preciso.” Ser cantora da própria obra, ela diz, é “um ato de resistência”.


ESPANHOL

Haveria mais muros a serem derrubados se Irene Atienza não tivesse a força que tem demonstrado ter desde que chegou da Espanha para cantar samba na Lapa do Rio. Mulher influenciada no berço da cidade de Santander pelo flamenco genético, seu canto equilibra a lágrima e a solidez emocional em um timbre raro, forte, grave. O álbum autoral que acaba de lançar é Salitre, com um dueto arrebatador de Grãos de sal, ao lado de Lenine. Ao todo, são sete músicas autorais, em espanhol e português, e mais quatro versões que contam dos países por onde passou. Espanha (Peces de ciudad, de Joaquín Sabina), Brasil (El bien del mar, Dorival Caymmi), Argentina (Piedra y camino, de Atahualpa Yupanqui) e Cuba (Demasiado, de Silvio Rodríguez). A origem de seu processo de composição pode ser considerada “invertida”. “Eu escrevia poesias com 8 anos. Fui buscar logo cedo na composição o que gostaria de falar.”

Um outro caminho levou a paulistana Dani Gurgel para a composição. Ela vem sobretudo do jazz, e isso explica seu pensamento instrumental, mesmo quando faz canção. Sua voz não tem a formatação das cantoras clássicas. Ela é limpa e curta na extensão, mas está ali como se fosse mais um instrumento em meio aos outros músicos. Zimbadoguê é cheia de suingue, de prosódia ligeira e improvisos estonteantes de Clube da Esquina. A outra canção do mesmo EP chamado Ruídos é Na frente.

Dani, filha da pianista Débora Gurgel, conhece bem a história. Não basta ser bom quando se é mulher na música, é preciso provar. “O mundo dos músicos ainda é muito preconceituoso”, ela diz. As máximas criadas pelos instrumentistas que se referiam às cantoras, nos anos 60, pejorativamente como “canários” não estão enterradas. “Cantar é coisa de quem não sabe música”, eles diziam. Imaginem se soubessem que as composições não parariam em Dolores Duran, Maysa, Rita Lee, Joyce, Fátima Guedes...

“As cantoras são testadas por músicos que querem saber se elas sabem o compasso de tal nota específica. Algumas podem não ter estudado, mas podem ser também as pessoas que mais sentem a música naquela sala ali. O preconceito se alimenta de coisas bestas.”


Fonte: Agência Estado 


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