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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A VIDA LOUCA DA MPB (ISMAEL CANAPPELE)*

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CARMEM MIRANDA

Já nos prim eiros dias de casada, o m arido a pertuba com o entra e sai de brasileiros na casa. Autoritário, tenta controlar as visitas, sem sucesso. Carmen nutre enorme carinho por seus fãs e não perm ite que sejam maltratados por ninguém . As portas devem continuar abertas, e assim permanecem . No entanto, ela passa a m aior parte do tem po fora, trabalhando sem parar. Quando está em casa, dorm e, entupida de soníferos. Logo, Sebastian e Gabriel, m arido de Aurora que também m ora na residência, enfrentam-se. O clim a pesa. Sem saber o que fazer, Carmen viaja e passa um tempo sozinha em Nova York. Sabe que errou. Não devia ter se casado. Mas, católica fervorosa, sequer cogita a separação. O que Deus uniu, somente a morte pode separar. 

Em Nova York, encara m ais um a exaustiva temporada no cinem a Roxy . Desde o começo da vida profissional, aos vinte anos, Carmen jamais teve um período de férias. Nunca recarregou as baterias. Contudo, nesta tem porada, precisa inverter completam ente o relógio biológico. O prim eiro show, logo ao m eio-dia, a obriga a acordar por volta das oito da m anhã, j ustam ente quando costum ava ir dorm ir. No Roxy, faz um a apresentação a cada intervalo entre as sessões dos film es. São quatro performances diárias, um a a cada duas horas, sem pre com exaustivas trocas de figurinos. Assim , durante o dia, os soníferos dão lugar aos excitantes. As bolinhas de benzedrina descem aos m ontes. Só assim para não sucum bir em cena. Aos poucos, o cansaço tom a conta. Dor e estafa são suas com panheiras inseparáveis. O organism o não aguenta, e ela desmaia em cena. O diagnóstico é um a infecção intestinal causada por vírus. Seu sistema imunológico está à beira de um colapso. 

O marido Sebastian voa até Nova York e leva Carm en de volta para Hollywood. Em casa, ele dem ite Frank, o produtor que livrara a estrela de Shubert no passado. Se Frank ganhava 10%, Sebastian passa a ganhar 15% de tudo que a m ulher fatura. Essa divisão é no m ínim o estranha, um a vez que os dois vivem um casam ento com regim e de com unhão total de bens. 

Agora, com o em presário, Sebastian passa a negar todos os convites que os grandes estúdios fazem para Carm en. Ganancioso, anuncia que bancará as produções da esposa. Mal sabe ele o custo de um film e. Sequer sonha com o esquem a m ilionário que envolve a produção, a finalização e a distribuição cinem atográfica. O m arido desperdiça os m elhores convites, m uitos dos quais Carm en nem chega a tom ar conhecim ento. Junto das drogas legalizadas, ele é peça fundam ental para a decadência da estrela. 

Sebastian tam bém seria o responsável pela capitulação de Carm en ao álcool. Prim eiro, ele a ensina a preparar o suave Alexander, no qual ela logo se vicia. Quando com eça a engordar, percebe a bom ba calórica que é o drinque e parte para o uísque. A força da bebida acorda um a nova m ulher. De uísque com soda, passa para o com gelo, até chegar ao cowboy, o últim o estágio. O topo etílico. Agora são rem édios para dorm ir, rem édios para acordar e álcool para viver. Ou para suportar a existência. 

Arrependida de ter entregado a vida nas m ãos de Sebastian e decidida a retom ar o controle, visita a MGM, quando aceita o convite para film ar Meu príncipe encantado (A date with Judy), ao lado de Elizabeth Tay lor. Nas telas, surge um a nova Carm en, m ais sofisticada, com penteados e figurinos elegantes. Tem 39 anos, m as a im prensa anuncia 34. 

Contratada pela prim eira vez para fazer shows na Europa, em barca num navio decidida a se livrar dos rem édios e do álcool. Em alto-m ar, tenta dorm ir, m as não consegue. Está esgotada, e o cérebro não desliga. Sucum be aos soníferos, m as m esm o assim não consegue apagar. Exausta, delira, trem e e entra em pânico. Em Londres é apresentada a um novo estágio das arm as para dorm ir: os tranquilizantes inj etáveis. Neste caso, o Dem erol, à base de m orfina – um poderoso e perigoso narcótico e analgésico. 

Em m eio a tudo isso, Carm en descobre estar grávida. Ter filhos é seu m aior sonho. Nas nuvens, cancela os com prom issos para se dedicar integralm ente à m aternidade. Repousa, com e bem e consegue passar dias sem rem édio. Está tom ada pela vida. Mas um aborto espontâneo acaba com suas esperanças. Os m édicos são unânim es: Carm en não tem nem j am ais terá condição de ser m ãe. Seu organism o está profundam ente com prom etido em função de anos de m aus-tratos. A benzedrina age diretam ente no útero, causando danos irreparáveis. Por não conseguir se opor à m oral e à religião da época, que condenam o divórcio, ela e Sebastian seguem casados socialm ente, porém separados de fato. 

O clim a na casa se torna insuportável. Sem conseguir lidar m ais com a situação, a irm ã e o cunhado de Carm en se m udam . Algum tem po depois, Aurora e dona Maria voltam para o Brasil. Pela prim eira vez, aos 42 anos, Carm en Miranda está com pletam ente sozinha nos Estados Unidos. 

Sem entrar num set de film agens há quase dois anos, Carm en faz a prim eira tem porada em Beverly Hills, cantando no elegante Ciro’s para um a plateia lotada. Na sequência, sem descanso, parte em um a caravana por 43 cidades norte-am ericanas. Sem largar os rem édios, com eça a sofrer sequelas. Em casa, bebe uísque sem parar. O m arido é visto constantem ente com outras m ulheres, m as a crença católica fervorosa de Carm en a im pede de acabar com a farsa do casam ento. 

Em frangalhos, film a Morrendo de medo (Scared stiff). Não se trata apenas de seu pior film e, m as tam bém do últim o. A m ãe sente que a filha segue um cam inho irreversível de autodestruição e retorna aos Estados Unidos. Tudo que Carm en m ais precisa agora é de repouso, m as a Europa lhe cham a para um a longa turnê. São m uitas cidades, infinitas trocas de roupas, cerim oniais e fãs enlouquecidos dispostos a tudo para arrancar um pedaço da estrela. As doses de Seconal aum entam proporcionalm ente às doses de benzedrina. Carm en faz tudo o que os m édicos proíbem . 

No fim de 1953 os trem ores se tornam visíveis. Já não é capaz de segurar nada nas m ãos. Internada por Sebastian em Nova York, passa um a sem ana sedada na cam a de um hospital. Depois, é despachada de volta para casa em Holly wood. O repouso não surte efeito algum . Carm en segue com trem ores, crises de choro, pânico e um a necessidade absurda de estar sob o efeito de algum tóxico – j á não sabe o que é ficar lim pa. A receita dos m édicos, então, é o eletrochoque. São m uitas e intensas as sessões, que acontecem num curto intervalo de tem po, m as a depressão não m elhora. Aos poucos, lapsos de m em ória fazem Carm en esquecer até m esm o as letras de seus m aiores sucessos. Em casa, sofre constrangedoras crises de ausência diante de visitas. A confusão m ental é cada vez m aior. Sem alternativa, passa os dias deitada, abatida, sem ver ninguém . A residência agora é com andada por Sebastian, que dirige um batalhão de m édicos e enferm eiros. Dona Maria não pode fazer nada além de obedecer. 

Aurora, m esm o a distância, percebe o perigo que a irm ã está correndo e pega um voo rum o à Califórnia. Quinze dias depois, Carm en é carregada para dentro de um avião e retorna ao Brasil após catorze anos exilada. Já não fica em pé, e chora sem parar. A viagem de trinta horas é exaustiva, com direito a crises de trem ores, ausência m ental e insônia. Ao chegar ao Rio, ainda no avião, recebe um a dose cavalar de Dexedrina. A estrela desem barca radiante para enfrentar a m ultidão que a espera. 

* * * 

Os médicos brasileiros se espantam diante do estado de saúde de Carmen  Miranda. Ela é proibida de assum ir qualquer com prom isso profissional, deve repousar sem interrupção. Um a unidade de tratam ento intensivo é m ontada na sua suíte do Copacabana Palace. Visitas estão proibidas. Ninguém entende o que pode estar acontecendo com a Pequena Notável, sempre tão cheia de vida nos film es norte-am ericanos. Im ediatam ente form a-se um aglom erado de j ornalistas nas portas do hotel. O retorno de Carm en é um anticlím ax. Os brasileiros esperavam que, com ela, retornasse também o clima de festa, mas o que volta é um corpo intoxicado e doente. 

Após algum as sem anas de absoluta reclusão no m ais sofisticado hotel do país, Carm en com eça a receber a im prensa e os am igos m ais próxim os, sem reconhecer m uitos deles. Aos poucos, é autorizada a fazer pequenos passeios. Nos shows em que com parece com o espectadora, quase sem pre é convidada a subir ao palco, onde recebe um a estrondosa ovação e canta alguns de seus sucessos. Am or, respeito e consideração é o que a cidade m ais dedica à sua filha. Contudo, a intensa vida social com eça a torná-la vulnerável aos excessos. Para não com prom eter sua recuperação, Carm en é enviada para a Região Serrana, para um retiro durante o Carnaval. Após dias sob intensa vigilância, a Pequena consegue escapar do hotel em que está hospedada. Livre, sozinha e com um a garrafa de uísque debaixo do braço, Carm en carnavaliza pelas ruas da cidade. 

* * * 

No dia 1º de abril, contra a sua vontade, deve retornar aos Estados Unidos. Dave Sebastian, o estranho híbrido de m arido e em presário, a espera. Por sorte, o avião sofre um a pane e não pode decolar. O voo é cancelado. Pela prim eira vez, após catorze anos, Carm en finalm ente regressa à casa onde passou a m elhor fase da sua vida. 

Voltar à casa é voltar à prim eira m etade dos anos 1930, quando cantava no Cassino da Urca, tom ava banho de sol e descansava nas areias quentes do Rio de Janeiro. Por três dias, Carm en volta ser apenas a filha de dona Maria. Mas o idílio logo term ina, e ela em barca rum o à m orte dura e fria no Hem isfério Norte. 

Desobedecendo todas as ordens m édicas de repouso, em m enos de três sem anas Carm en retorna aos palcos. Dave Sebastian, o m arido, precisa faturar. Talvez intuindo que logo a fonte de renda sofreria um a pane, o em presário suga ao m áxim o a engrenagem da estrela. Em um a das apresentações, Carm en desaba, após um súbito apagão. Mas, apesar do susto, o show tem que continuar – e continua. Sebastian é quem escala os m édicos responsáveis por m anter o pique induzido de Carm en. Ao que tudo indica, ela j á não tinha m ais vontade própria. Sem a m ãe e a irm ã por perto, está sozinha vivendo o seu pior inferno em Beverly Hills. Poucos dias depois, sofre um a nova queda, dessa vez em casa, quebrando um dos dedos. Na m etade do ano, a depressão e as inconstâncias de hum or voltam com tudo. Carmen esquece as letras de suas músicas com cada vez mais frequência. Em meio à crise, viaj a para Cuba, mas não descansa nada. Durante quinze dias cumpre três apresentações diárias. Quarenta e cinco performances consecutivas para um corpo à beira do colapso é desumano demais. O marido suga ao máximo o que resta de forças na mulher.

A popstar já não consegue mais se concentrar em nada. Sozinha nos Estados Unidos, chora e não sai da cama. Tem dificuldades para comer. O marido, incansável, fecha mais um show na televisão norte-americana. Durante a transm issão ao vivo, os joelhos da mulher fraquejam e ela é amparada pelo colega de cena. Apesar do susto, segue cantando números que exigem extrem o fôlego. Após o show, turbinada por um coquetel de estimulantes, ainda encontra forças para receber alguns convidados em casa e realizar mais um a performance íntima, regada a fartas doses de uísque. Ninguém sabe que aquele será seu último canto. Entre os íntimos, dança, conversa e gargalha, tomada por um surto eufórico quimicamente estimulado. É seu último sopro de vida. Por volta das 2h30 da manhã, despede-se dos remanescentes e sobe as escadas para se recolher. Dia 5 de agosto de 1955. Carmen tem apenas 46 anos. Enquanto se prepara para dormir, um enfarto fulminante apaga para sempre o brilho da maior estrela que o Brasil já produziu.


Assim com o foi sua vida, tam bém sua m orte é destaque na imprensa mundial. Uma semana depois, o corpo chega ao Rio. Carm en pode finalm ente descansar na cidade quente que a viu crescer. O enterro da Pequena assum e proporções estratosféricas. O cortej o é seguido por mais de meio milhão de pessoas. Carmen não se tornou mãe, mas sua morte deixou órfã uma geração acostumada à felicidade.




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