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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Dois lados da canção

Exatamente por não ter a pretensão de ser plena, e por apontar algo íntimo ao gesto antropofágico (brasileiro), a definição de cultura que mais considero funcional é a de Lotman: "O conjunto de informações não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem" (In. Schnaiderman. Semiótica Russa, 1979, p.31).
Além de distinguir o acumular, o conversar e o transmitir, o semioticista russo destaca a não-hereditariedade. E é isso o que me interessa nesse conceito de cultura. Acredito que é este "sol que nasce, a cada dia / a cada aniversário / contra o que for hereditário", como cantam os Titãs, o que "sustenta" o conjunto de informações que compõem a(s) cultura(s). Este não-hereditário de Lotman me remete ao predomínio do materno, à problematização do patriarcado, à violência do instituto da herança patrilinear. Questões-base do pensamento oswaldiano.
Outro motivo da minha bem-querência em relação à definição de Lotman é a representação de cultura como uma estrutura horizontal, não-pré-hierarquizada, mas com uma hierarquia de códigos complexa, como rede sistêmica formada por definidores pontos de contato. Para o autor, "todo o material da história da cultura pode ser examinado sob o ponto de vista de uma determinada informação de conteúdo e sob o ponto de vista do sistema de códigos sociais, as quais permitem expressar esta informação por meio de determinados signos e torná-la patrimônio destas ou daquelas coletividades humanas" (p. 33). Daí que tudo é significativo: e o que é variável e o que é invariável na cultura?
Faço estas anotações para alicerçar meu comentário sobre a canção "Dois lados da canção", de José Luis Braga e Luiz Gabriel Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico, 2009). Temos aqui a explosão do protocolo da assinatura autoral comum à cultura cancional contemporânea, pois o sujeito da canção parece investido do instinto caraíba, reescrevendo versos canônicos da canção popular. Por exemplo: "Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim" transforma-se em "Quando eu ouço as canções que eu fiz pra você". Ou "Eu juro que é melhor / não ser o normal" ("Balada do louco") em "Eu juro que é melhor, enfim / eu juro vai ser melhor assim".
Seria o sujeito da canção "Dois lados da canção" o destinatário da canção "As canções que você fez pra mim", de Roberto Carlos e Erasmo Carlos? Pode ser. A mudança no tempo - "hoje" versus "quando" - é significativa. Enquanto o primeiro parece imóvel, fixo ("amanhã já é outro lugar"), o segundo sugere retorno, mobilidade e volta. É esse gesto de receber e conservar torcendo e distorcendo a informação o que parece caracterizar a "cultura brasileira".
Em tempos de inúmeras e confortáveis (econômica e esteticamente) releituras, reedições e regravações, tendo como base aquilo que Zeca Baleiro bem definiu como "É mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro", "Dois lados da canção" se impõe como ácido antropofágico necessário ao acúmulo, à conservação e à transmissão da cultura, este palimpsesto infinito (Barthes).
As citações não se limitam ao campo da letra. O andamento melódico complexo é a bricolagem das linhas melódicas tanto da versão de Roberto Carlos, quanto da versão de Maria Bethânia para "As canções que você fez pra mim", com mais aproximação desta. Além disso, há um rascunho de imitação do registro vocal de Bethânia aqui e de Belchior ali, nada caricato, mas destronizante - convivência de temporalidades históricas distintas; agravamento da "crise do museu", daquilo que está tombado, canonizado, entronizado (Bakhtin).
O sujeito da canção, aqui, é um operador de relações intertextuais: diálogo entre sujeitos cancionais e da canção. Canções iluminando canções, rompendo a noção de linha evolutiva, naquilo que isso se refere a certo "passar o bastão" (hereditariedade). Continuidade e movimento a serviço da vivência sem centro dos "tênues fios" que ligam uma canção à outra. Esta relação afetiva e não submissa com o passado é decisiva: "pra que te esquecer / se o amor é tanto? / existo em você / por louco engano", diz o sujeito da canção. "Mas louco é quem me diz / E não é feliz / Eu sou feliz", ecoam os mutantes.

***
Dois lados da canção
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)

quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar

eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim

eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver

desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano







* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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