40 - Caminhos de autodestruição
Quando ainda existiam os desfiles dos ranchos no Carnaval e não apenas das escolas de samba na avenida, minha mãe foi convidada a desfilar num trono, em cima de um carro, como a grande Rainha dos Ranchos. Era uma homenagem à paixão que ela sempre teve pelas marchas. “Grão de areia”, “Más-cara negra”, “As pastorinhas”, “Bandeira branca”, “Rancho da praça Onze” são algumas que lançou com grande sucesso. Os ranchos estavam em seus estertores. Ainda tentavam, nostálgicos, tristes e terminais, participar do Carnaval no Rio. O desfile (acho que foi um dos últimos, se não o último) era na avenida Presidente Vargas e foi uma visão das mais tristes. Os participantes iam cantando uma marcha-rancho, a bateria no ritmo da marcha, lento, triste, sem a menor animação, e a formação na rua era esparsa, sem conjunto. Melancólico mesmo. Ela quis que eu fosse junto para dar apoio moral. Combinamos que eu ficaria sentado no chão do carro, para não ser visto, enquanto minha mãe ficava no alto, num trono, usando um vestido longo que cobria a cadeira onde estava sentada. Eu ia olhando para a frente do carro e vendo aquela cena com muita tristeza. De vez em quando, me virava para falar com ela e sentia que, aos poucos, ela deslizava uma palavra, como se estivesse ficando de porre. Tornava a virar para a frente, acompanhando o desfile, e, quando me voltava para minha mãe, sentia que estava falando mais pastoso ainda. Eu não entendia. Como era possível ela estar bebendo num lugar como aquele? Sem ninguém nem bar por perto? No final do desfile, fui descobrir que alguém tinha dado uma garrafa de conhaque para ela, e, é lógico, estava completamente embriagada. A razão de eu não ver é que, quando me virava para a frente, ela pegava a garrafa de baixo do trono, bebia e guardava de novo, escondida pelo vestido longo. Ela era muito danada, moleca mesmo, e era difícil segurá-la. Para atrapalhar mais ainda, pintavam esses “espíritos de porco”. Houve um tempo em que a TV Tupi colocava no ar muitos musicais. A música ainda era a porta-voz da brasilidade e a ex-pressão dos cantores e compositores tinha uma profunda representatividade e falava forte ao coração do brasileiro. Nessa época, por volta de 1970, o diretor artístico da emis-sora era o grande cantor Lúcio Alves, que organizava os shows e a programação musical. Lúcio gostava muito de conjuntos vocais e estava sempre criando arranjos para os cantores que participavam de algum programa. Uma tarde fui procurá-lo, pedindo que se lembrasse de chamar minha mãe. Ela estava bastante afastada do meio e eu sabia que ele poderia ajudar, colocando-a em alguns pro-gramas. Simpaticamente, ele me atendeu e logo minha mãe estava recebendo um tele-fonema para participar de um programa. Feliz com o convite, ela compareceu no horário combinado, ensaiou e encontrou os colegas. Depois do ensaio, o pessoal costumava fazer uma horinha no bar ao lado da TV Tupi, na Urca, e a convidaram para ir junto. Ela foi e, claro, bebeu alguma coisa por lá. Quando voltou, um pouco atrasada, já es-tava falando meio mole, embora ainda não muito tomada pela bebida. Mas foi o bastante para Lúcio perceber, ao encontrá-la no corredor, e cancelar sua participação no programa. Ela tentou falar com ele, dizer que estava sob controle, que podia cantar, Nuno também tentou ponderar, mas Lúcio ficou inflexível. E foi além: proibiu a entrada dela na emissora. A mágoa que ela sentiu foi enorme e a acompanhou para sempre. Quando Nuno me contou, em princípio também fiquei chateado. Mas, com a cabeça mais fria, vi que no seu cargo, e numa programação ao vivo, o Lúcio não podia correr nenhum risco. Lamentavelmente, minha mãe não estava mais tão segura nem forte o bastante para evitar o mal que ela mesma fazia a sua vida. Episódios como esse começaram a se tornar mais frequentes em seu dia a dia. Numa dessas vezes, eu estava junto. Com Chico Anysio e outros artistas, fomos fazer um show para a Prefeitura de Salvador. O show agradou e o prefeito ficou tão satisfeito que convidou a todos para visitá-lo no dia seguinte. Eu estava aliviado, pois até o final não havia aparecido certo amigo e grande fã de minha mãe, lá de Salvador. Além de apaixonado por Dalva, também gostava de-mais de uma bebida. Os gay s sempre foram fascinados por ela, e esse era um dos mais fanáticos. Seu nome era Sílvio Lamenha, trabalhava com antiguidades, era um sujeito inteligente e grande papo. Quando não bebia. No jantar, ele apareceu e não consegui mais segurar minha mãe. Ele a carregou para a noite de Salvador e sumiram . Só fui saber dela de madrugada, quando alguém ligou pedindo que eu fosse buscá-la, pois estavam completamente embriagados num bar que o dono queria fechar. Encontrei-os num boteco de quinta categoria, junto de alguns pedreiros. Outra história dela com Sílvio Lamenha aconteceu quando Luís Vieira estava conduzindo um programa de TV em Salvador e convidou minha mãe para participar de um quadro especial, com bom destaque. Como amigo fraterno, Luís sabia da fase que ela estava atravessando. Assim, preveniu a produção e os outros artistas para evitar qualquer bebida no estúdio. Mas ele não podia imaginar que o perigo surgisse com o tal Lamenha, que queria mais era que o circo pegasse fogo. Ele trouxe escondido uma garrafinha de conhaque. Quando Luís viu, já era tarde — ela já tinha tomado o primeiro gole, e ele a colocou para cantar um número apenas. O programa que ia homenageá-la como convidada especial teve de ser encurtado, porque minha mãe já não se entendia, ficou completamente embriagada. Na fase em que estava — ela praticamente não comia —, não tinha resistência alguma. Um gole apenas era fatal. Quando acontecia algum incidente grave assim, nossa reação era a de que precisávamos tomar alguma atitude: fazer um tratamento, interná-la, qualquer coisa. Mas não tínhamos nenhum controle sobre ela. Dalva tinha a sua casa, o seu marido, a sua vida, enfim . Cheguei a discutir isso com Nuno, que paradoxalmente não bebia nada. Mas, em seu amor, ele não queria arriscar nada que a magoasse. Achava que teria pulso bastante para cuidar dela. À sua maneira e com muita dedicação, até que ele tentou. Só quem já passou pelo drama do alcoolismo em família ou na esfera mais íntima de amigos sabe aquilatar todo esse processo de minha mãe, o círculo vicioso em que passou a viver. Quando estava sóbria, era a mulher mais doce do mundo. Parecia ser impossível que fosse ela a mesma pessoa que sumia pelas ruas, nos mais vulgares botequins, completamente desguarnecida de autoestima. Em seu amor por Dalva, Luís Vieira me conta que, mesmo assim, não desistiu dela. Lembra quando estava apresentando um programa de TV em Porto Alegre e recebeu um telefonema de Laércio Alves, autor de “Bandeira branca” e amigo dela, pedindo que a convidasse para seu programa na capital gaúcha. E acrescentou que seria bom se Luís desse uma força, porque ela estava muito mal de dinheiro. Ele não resistiu ao apelo. Tentou fazer Laércio garantir que ela não beberia. Mas, sabendo que não havia garantia nesses casos, resolveu arriscar, mais uma vez, e aceitou levá-la. Apesar do enorme carinho por ela, estava preocupado, pois havia um programa de televisão a respeitar, assim como um grande público lotando o espaço onde se realizaria o show. Lembrando-se do outro incidente, cercou-se de mais cuidados ainda. Pediu a colaboração de todos. Como a cantora Rosemary também estaria no programa, colocou-as no mesmo camarim . Mas, papeando nos corredores, eis que aparece alguém e oferece uma dose de conhaque a Dalva, com a desculpa do frio que fazia. Foi o bastante para ela se perder. Ao ser chamada, foi cambaleando e não conseguiu cantar absolutamente nada. Luís gentilmente a tirou do palco. Depois que ela se foi, ele fez um discurso para aquele povão que lotava o auditório, descrevendo o que minha mãe estava passando, a sua vida problemática. Fez um discurso que, ele mesmo acredita, parecia ter sido iluminado por Deus. O fato é que o povo começou a aplaudir de pé e a chorar feito criança, numa demonstração de respeito a uma mulher que estava entregando os pontos. Infelizmente, não se encontram muitos Luís Vieira pela vida afora, não. Mas “assombrações” aparecem algumas. Não sei explicar como acontece, mas sinto que existe um tipo de pessoa que adora provocar outro ser humano que está num mo-mento de fragilidade, fazendo com que aborte o sucesso que poderia ter — seja tentando não beber, no caso do alcoólatra, ou não comer, no caso do obeso em dieta. É aquela pessoa que oferece um drinque ao alcoólatra ou um docinho ao obeso. Existia na TV Record, no fim dos anos 60, um programa chamado Quem tem medo da verdade, dirigido por Carlos Manga e Wilton Franco. Nele, o convidado respondia a um verdadeiro tiroteio de perguntas de um júri ávido por dramas, que analisava e se pronunciava a respeito de sua vida particular, refestelando-se com a desdita de quem quer que fosse. Eram os algozes da televisão ensaiando uma nova Inquisição, os donos de uma verdade paga pelos patrocinadores, onde a cretinice e a miséria dos inquisidores se alimentavam do infortúnio dos convidados. Minha mãe já estava num processo adi-antado de autodestruição. E foi assim que aceitou ir ao tal programa, dando com seu nome enorme audiência a quem se alimentava das desgraças humanas. Só que ela já não tinha mais o cuidado de evitar que algo manchasse mais ainda a sua imagem, aonde quer que fosse. Assim, corajosa e ao mesmo tempo assustada, ela se sujeitou ao Quem tem medo da verdade, abastecida do seu “elixir da coragem”, o conhaque, e aí os membros do júri deitaram e rolaram . Ar-rasaram com ela, dissecaram sua vida, invadiram seu íntimo e sua dignidade, de tal forma que, anos depois, ela ainda chorava ao se lembrar do programa, dos produtores e dos jurados. Sei que alguém dirá: “Mas ela poderia ter lutado, poderia ter tomado outra atitude, não permitindo tudo aquilo”. É quando afirmo que minha mãe era muito frágil. Foi frágil com meu pai, foi frágil com Tito, foi frágil para lutar contra a própria destruição. Ela já não reagia mais, principalmente nos últimos anos, quando algo se quebrou de vez dentro dela. Outro artista esmagado foi Grande Otelo. Na verdade, o programa vivia somente desse tipo de artistas ou personalidades, pessoas que tivessem dificuldade em dirigir seus destinos com o rigor que nem sempre o seu talento permitia. E, quando penso nisso, me vêm sempre algumas perguntas: por que Judy Garland dirigiu sua vida na direção que dirigiu? Por que Piaf também? Por que Elis? E Garrincha? E Hemingway ? E Marily n? Por que Otelo também? Por que tantos, com o potencial de mudar o mundo ao redor, se voltam contra si próprios e transformam seus caminhos em total destruição do que ofereceram antes? É claro que nem conseguem anular o que representam, porque o que nos deixaram foi sinceramente grande e forte. Mas os que foram o veículo e a voz de um talento especial matam, ou tentam matar, o seu interior, não se importando que, eventualmente, possam estar matando tanta beleza que um dia construíram. Eu não estava no Brasil quando isso aconteceu. Ficava sabendo de tudo por inter-médio de meu irmão ou de pessoas amigas. E garanto: não foi fácil suportar a ideia de que minha mãe estava se permitindo passar por tudo isso. Era terrível. Minha mãe sempre teve uma letra bonita. Com o tempo, suas cartas passaram a chegar com uma letra feia, torta, fora de alinhamento. Comecei a ficar preocupado e a perguntar para o meu irmão Bily o que es-tava acontecendo. Ele me dizia que nossa mãe estava adoentada, mas sem carregar muito nas tintas. Penso que para não me preocupar e também para preservar a investida que eu estava fazendo em minha carreira no exterior. Foi quando decidi voltar ao Brasil. Apesar do que meu irmão falava, sentia que havia algo muito errado. E olha que havia começado uma trajetória de peso nos Esta-dos Unidos. Com o Grupo Bossa Rio, cantei ao lado de Sérgio Mendes por quatro anos, e já havia feito meu primeiro filme na Universal Studios, ao lado de Richard Widmark. Mas precisava estar perto dela. Era algo imperativo. Um chamamento. Tranquei minha matrícula no Screen Actors Guild, em Hollywood, fiz uma pequena temporada no México para levantar mais dinheiro e voltei. Quando cheguei ao aeroporto do Rio, ela me esperava. Foi o maior susto da minha vida. Minha mãe estava completamente desfigurada. O desastre já havia deixado marcas horríveis em seu rosto e agora a bebida também cobrava seu preço. A cirrose transformara minha bonita mãe numa figura muito feia. A dor que senti ao vê-la daquele jeito fez com que a abraçasse chorando ali mesmo no aeroporto. Suas mãos, outrora tão bonitas e leves, firmes e expressivas, estavam murchas, sem vida; a pele do rosto, ressecada; e os olhos eram qualquer coisa de desesperador, não tinham mais o brilho e o viço que me acostumei a ver durante a vida inteira. Seu andar era cambaleante, indeciso. Eu pegava em seu braço e a pele parecia solta, flácida, sem vida. A doença havia tomado minha mãe por completo. A partir daí, não voltei mais nem para o México nem para Los Angeles. Decidira ficar com ela, pois senti nitidamente que estava muito perto do fim e que não dava mais para a gente se distanciar. Ainda pude conviver com ela mais um ano e meio, cantamos jun-tos no antigo Vivará, num show em que também estava Leila Diniz. Procurei ficar do seu lado ao máximo. Todo o problema de minha mãe com a bebida começou muito antes, ainda no casamento com Herivelto. Nessa época, porém, ela bebia num contexto social. Dizia-se: “A Dalva gosta de uma bebidinha”. Não era ainda uma coisa absurda que criasse maiores problemas. Mas era o início de um triste final que iria trazer tanto sofrimento a ela. Ao procurar o testemunho de quem conviveu com eles, alguns comentaram que meu pai ficava louco quando ela permitia que suas irmãs ficassem muito perto. Minhas tias Lila e Nair também gostavam de beber, e, com elas do lado, a alegria, a animação, tudo era motivo para alguns drinques a mais. Meu pai sentia que, longe delas, minha mãe ia mais devagar com o copo. Era mais fácil segurá-la. Ele também gostava de beber, mas era de uma maneira bem mais controlada. Arrisco dizer que, se não tivesse sido tão traumática a separação de meus pais, talvez Herivelto não tivesse amargado tamanha sensação de perda em sua vida ou não tivesse sentido se quebrar o grande encanto que o Brasil tinha com sua música. E, se não tivesse sido tudo como foi, talvez minha mãe não tivesse experimentado o sabor de um sucesso tão rápido, tão explosivo, baseado no seu próprio infortúnio, e, quem sabe, poderia ter saboreado uma escalada mais tranquila, uma ascensão baseada na verdadeira força do seu talento. Mais calma, mais serena, mais duradoura. Quem poderá nos dizer que, se não fosse assim, ela teria até vivido mais, sem traumas a corroer seu interior e se transformando na sua autodestruição?
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