Páginas

terça-feira, 21 de novembro de 2017

MARIA JOÃO CANTA A POESIA DE ALDIR BLANC

Por José Teles



A cantora portuguesa Maria João em um disco inteiro de canções com letras de Aldir Blanc, num repertório que inclui O Bêbado e o Equilibrista, Dois pra Lá, Dois pra Cá. Parece muito óbvio, e fácil. Nem óbvio, nem fácil. A lisboeta Maria João Monteiro Grancha não é de obviedades, nem de facilidades. Filha de pai português e mãe moçambicana, demorou a enveredar pela música, dedicando-se ao aikidô, de que foi faixa-preta, e professora dessa luta marcial, que até hoje pratica.

Começou a cantar, por acaso, em 1976. Estava com 20 anos. Mas só gravou o primeiro disco, de jazz, uma década depois. É uma cantora de jazz (formou dupla memorável com o pianista Mario Laginha), mas pode ir ao erudito ou à MPB, pela qual já incursionou, mas não imergindo na obra de um único compositor como faz neste álbum.

Maria João e Convidados – A Poesia de Aldir Blanc (SESC) reúne parcerias com João Bosco (quatro), Guinga (quatro), e três inéditas com o português Carlos Paredes (duas), e uma com André Mehmari, o único instrumentista brasileiro que participa do álbum, inteiramente gravado em Lisboa. Recomenda-se começar a audição do álbum pela segunda faixa, O Coco do Coco (com Guinga). O baião, de harmonia acidentada, e versos hilariamente fesceninos, é interpretado com o acompanhamento inusitado de tuba e bateria (tocadas, respectivamente, por Sérgio Carolino e Silvan Strauss).

Com este arranjo e a impostação histriônica, Maria João, pegou o espírito de uma canção que tem versos como estes: “No tempo em que casei de véu com meu marido/era virgem no ouvido e ele nunca reclamou/pra ser sincera, eu acho que isso inté facilitou”. Assim como não escorrega nas cascas de bananas idiomáticas que Aldir Blanc joga ao chão em composições como Linha de Passe ou Boca de Sapo (ambas com João Bosco).

Brincando, ou a sério, Aldir Blanc é sempre um excepcional letrista. É lírico em Sede e Morte, um fado com o mestre da guitarra portuguesa Carlos Paredes: “Cinza e passado/no tempo em que foi perdido/tu ao meu lado/nas sombras do não vivido”. Maria João novamente vale-se do mínimo para canta-lo, apenas com o violão de Luis Ferreirinha e a guitarra portuguesa de Paredes. Repete o conceito em Catavento e Girassol (com Guinga), só ela e a harpa de Eleonor Picas.

A dupla com Mario Laginha encara o que, aparentemente, é uma tarefa ingrata, cantar O Bêbado e o Equilibrista, com junção de Paredes que nos Rodeiam (de Laginha). Ir além de Elis Regina é a tarefa que preocupa quem interpretar este clássico de Aldir e João Bosco. A portuguesa vai bem além com um approach diferente recria a música com outro contexto, a interpreta como uma chanson de Kurt Weil, com o inventivo pianista português.

Em sua carreira, Maria João renova-se e surpreende o tempo inteiro, faz isso aqui com o manjado pastiche de bolerão Dois pra Lá, Dois pra Cá (com João Bosco), que ganha iconoclasta programação eletrônica (de André Nascimento), mais o piano de João Farinha. Tão boas quanto composições de Aldir Blanc com João Bosco são as parcerias com Guinga. Boa parte delas pouco conhecida, até porque os dois começaram a compor juntos,quando o rádio fechava-se para o requinte.

Assim é que pode passar por inédita canções como Canção do Lobisomem (lançada por Guinga, em 1993), e que ganha clima de experimentação, com a guitarra com efeitos de Mario Delgado: “Nem a cobra coral, nem mesmo a naja/dão bote da prata que viaja/numa bala entre a arma e o meu peito/acho graça em desgraça/dito e feito: sou meu matador”, os versos finais da música, depois de que Maria João parte pro improviso vocal.

Haja fôlego para o choro inédito, ou tanguinho brasileiro Movimento Perpétuo, grande melodia de Carlos Paredes com versos antológicos de Aldir, e o piano de André Mehmari: “Ai as crianças brasileira/dizimadas nas manhãs/iguais a tantas congolesas/sírias, lusas, afegães/quando queiram o bem do esporte/a foice as atirou na morte”.

Maria João canta a mais longa das letras de Aldir Blanc num pique de Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth. Um disco que deixa uma sensação de perplexidade a cada audição. Poucas vezes Aldir Blanc, ou a MPB já foram interpretados com tanta intensidade criativa.

Confiram Maria João, ao vivo, com Guinga, em Catavento e Girassol:


Nenhum comentário:

Postar um comentário