Por Alexandre de Paula
A Inteligência Artificial (IA) chegou ao terreno da música. Diversas iniciativas envolvendo pesquisas e softwares provam que é possível aliar tecnologia e arte – seja para compor canções, seja para auxiliar compositores a pesquisar, seja para ajudá-los a produzir. Ferramentas desse tipo, cada vez mais eficazes, devem se tornar comuns.
O Brasil participa de um dos mais importantes projetos da área, a Flow Machines. Desenvolvida pela Sony e capitaneada pelo pesquisador François Pachet, a plataforma, que une diversas maneiras de interagir com a Inteligência Artificial, ajuda a compor, escrever e analisar música.
Inicialmente, a plataforma usava como bases o jazz, o pop e o rock. Agora, por meio de um sistema chamado Brazyle, estilos e ritmos brasileiros se integrarão ao projeto.
“Se não fosse a Brazyle, essa tecnologia chegaria apenas com exemplos de rock, pop e jazz. Pela primeira vez, a música brasileira faz parte da vanguarda da tecnologia musical”, explica o cientista da computação Giordano Cabral, idealizador do Brazyle.
O plano de “abrasileirar” a Flow Machines surgiu durante o doutorado de Cabral na Sony Computer Science Lab Paris, entre 2003 e 2008. “A ideia veio naturalmente de uma longa e contínua discussão, pois já que estávamos trabalhando na nova tecnologia, era natural aplicá-la à música brasileira”, explica o especialista.
Duas razões foram responsáveis pela iniciativa: a complexidade da criação musical brasileira e o gosto por ela. “Primeiro, porque nossa música é muito rica, trazendo desafios especiais à tecnologia baseada em Inteligência Artificial. Segundo, porque é uma paixão compartilhada tanto pela equipe brasileira quanto pelo próprio François Pachet”, conta Cabral.
ALGORITMOS
A complexidade da música brasileira exigiu ajustes na plataforma. “Temos grande riqueza de ritmos, harmonias e timbres. Muitos detalhes dos algoritmos tiveram de ser repensados em função dos cases que trouxemos”, destaca o pesquisador.
Sistemas como Flow Machines são capazes de executar diversas tarefas musicais. Cabral explica que a intenção não é que a Inteligência Artificial produza música sozinha. “A grande sacada da Flow Machines foi justamente criar uma tecnologia manipulável, permitindo interagir com a máquina, interferir nos exemplos e regras, mandar refazer trechos específicos”, detalha.
Por isso, conta Giordano Cabral, as principais composições criadas por meio do sistema foram idealizadas por músicos – e não por programadores. Um dos casos é Daddy’s car, que simula o estilo dos Beatles, feita por Benoit Carré em “parceria” com a Flow Machines.
Cabral informa que o sistema é capaz de – contando com a interação humana – compor músicas, rearranjar melodias, analisar automaticamente canções e registrá-las em formato completo (com partitura, acordes e áudio sincronizados).
Com boa parte do sistema automatizado, o plágio é um questionamento recorrente. Cabral ressalta que o próprio sistema se encarrega de evitar cópias. “Ao sugerir melodias, ele restringe as alternativas de modo a filtrar exemplos que seriam considerados plágio. Em resumo, há uma função ‘antiplágio’ implementada no próprio código”, explica.
BRASIL
Para ser capaz de tudo isso, o sistema precisa ter acesso a diversos exemplos de músicas de cada estilo para decodificar o que é mais usado e os padrões de cada gênero. No caso do Brasil, a startup Daccord ficou responsável por catalogar e gravar o que seria utilizado como base.
“São cerca de 20 pessoas envolvidas. Um repertório exaustivo de songbooks foi transcrito, dos quais 103 músicas foram gravadas, cada uma com três pistas, além de três versões diferentes para a voz”, relata Cybele Wessen, CEO da Daccord.
O trabalho exigiu diversos ajustes para funcionar corretamente na plataforma. “Foi preciso definir um acervo representativo dos estilos brasileiros com o qual, ao mesmo tempo, músicos e cantores tivessem familiaridade. Depois, fizemos ajustes, correções, transposições e adaptações. As bases de chorinho, por exemplo, nem sempre se encaixavam no formato de melodia, acordes, baixo e ritmo que existia no sistema”, explica.
Três perguntas para...
Giordano Cabral, cientista da computação
Com a utilização da Inteligência Artificial, como fica a questão dos direitos autorais?
É um assunto complexo, pois as leis mudam de país para país. Houve um estudo jurídico de três anos por parte de escritórios especializados na Europa para se chegar ao consenso sobre como a Flow Machines poderia funcionar do ponto de vista de direitos autorais. O entendimento é que, pela forma como utiliza a sua base – mantendo o poder de decisão do artista, que manuseia os softwares de criação das músicas com alto grau de flexibilidade –, esse artista detém os direitos sobre a obra.
Como é o acesso ao sistema? Quem pode usá-lo?
Por enquanto, é fechado, pois ainda está sendo aprimorado. Esperamos por uma versão verdadeiramente aberta em breve.
Há sempre o temor de que a Inteligência Artificial possa substituir a criação humana. Esse risco existe?
Há muito tempo se deseja que os computadores entendam as regras musicais e auxiliem músicos e compositores a expandir suas capacidades. Algumas iniciativas procuraram justamente criar sistemas completamente automatizados, músicas puramente criadas por uma IA. Mas Flow Machines é uma tecnologia manipulável. Dessa forma, a ferramenta se torna, na verdade, um novo software de criação e produção na mão dos artistas. Não é à toa que os grandes exemplos criados com a plataforma foram feitos por compositores de verdade – e não pela equipe de programadores e desenvolvedores.
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