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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

CLUBE DA ESQUINA / 1972

Por Ricardo Moreira



Na cabeça de um Milton bem mais maduro e cosmopolita do que aquele rapazola do Edifício Levy – sua primeira morada em BH onde o destino o juntou à família Borges - é que o gérmen de um disco coletivo construído a partir da comunhão dos dois extremos de uma geração delimitados entre ele próprio e o talentoso menino Lô, começaria a ser gerado.

Comecinho dos anos 1970, bem-sucedido na carreira, com discos gravados no Brasil e no exterior, residência fixada no litorâneo Rio de Janeiro, Milton descobriu que fazer meia-volta e caminhar na direção do interior era tudo que precisaria fazer para avançar ainda mais sua música sem fronteiras. Configurando-se naquele momento da carreira inviável voltar fisicamente para as Gerais, Bituca decidiu mandar vir a montanha - neste caso, as de Minas - a Maomé. Os primeiros a migrarem para o Rio foram Lô Borges e Beto Guedes, ainda adolescentes, mas devidamente autorizados pelas mães. Morando sob a proteção do padrinho Milton, os meninos respiravam música (e ouviam Beatles) 24 horas por dia, conviviam com os amigos músicos do artista, iam a shows e, com esse trabalho de imersão, desenvolviam ainda mais sua arte. Quando Milton decidiu alugar o mágico retiro da casa de praia em Piratininga/Niterói, sobrou mais espaço para Toninho Horta, Ronaldo Bastos - o fluminense da turma, os mais raros Fernando Brant, Murilo Antunes e Márcio Borges, a galera do Som Imaginário e muitos outros que iam e vinham curtir, compor e tocar no aprazível quarto de vidro com vista para a praia. Boa parte do material gravado em Clube da Esquina seria resultado da abertura desse consulado mineiro à beira-mar.

Mais uma vez a amizade, antes de qualquer coisa, moveria o moinho de canções e ideias geniais preparando para o forno, a massa de um álbum eterno. Num tempo que a Ponte Rio-Niterói ainda não havia sido construída, os meninos do Clube fariam o caminho que dava a volta de 100 km em torno da Baía de Guanabara pelo município de Magé até chegar aos Estúdios da EMI-ODEON no Rio de Janeiro. Lá, encarariam a tarefa de impregnar o óxido da fita de gravação com a química resultante de mais de um ano da convivência entre amigos numa das mais delirantes pré-produções de disco já feita na história fonográfica nacional.

Rebobinando o tempo, não podemos esquecer que "Milton", disco de 1970, fora um marco importante na conquista da sonoridade independente que o Clube fincaria definitivamente dois anos depois. Até então as canções dos discos iniciais de Bituca eram embaladas em arranjos de maestros notoriamente estabelecidos que, como era de se esperar, colocavam a moldura que julgavam mais adequada à obra do estreante fazendo-o soar mais filiado à tradição da MPB. Seria tudo com que Bituca parecia querer romper na revolução que começou a partir do laboratório de sons imaginários feito em "Milton". O artista reinventou nesse disco o conceito de arranjo e mostrou a todos que um cantor podia e devia soar além de melodias, letras e até de sua própria voz.

Libertas Quæ Sera Tamen. Assim foi hasteada a bandeira do livre-arbítrio artístico conquistado com a benção de duas figuras queridas do staff EMI - Milton Miranda e Adair Lessa. Os mesmos executivos permitiram a Milton que quitasse com apenas um disco duplo a dívida contratual de dois álbuns de carreira que deveriam ser lançados ainda naquele ano. Toparam também que esse disco fosse dividido com um menino desconhecido que a gravadora não convidara e sequer contratara. Liberaram ainda uma capa mega-anticomercial onde ao invés do artista, figuraria uma foto de um menino branco e um negro agachados numa estrada, aludindo indiretamente aos nomes de Milton Nascimento e Lô Borges que só apareceriam na contracapa. Para felicidade e júbilo da MPB, eles fizeram tudo “errado”. 

Trancados no estúdio, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso e seu Som Imaginário, cruzaram ideias em quatro faixas com as cordas do arranjador Eumir Deodato e coletivamente ornaram cada contorno das 21 canções de Clube da Esquina. Uma revolução sônica estava solta.

“Tudo o que você podia ser”, de Lô e Márcio Borges, é a pedra fundamental do álbum e um tanto premonitória no que diz respeito à trajetória do que estava sendo fundado com o disco Clube da Esquina. A comunhão mineira de músicos “oficializada” nesse álbum não tinha pretensões estratégicas de levantar bandeiras, mas acabou por sacudir muito mais a estrutura convencional da música brasileira do que, por exemplo, a Tropicália, movimento para o qual sempre fora creditado um compromisso maior com a rebeldia e a renovação. Interpretada por Milton Nascimento, vale notar na faixa o vigoroso violão-base de Lô e, ao final, o uso do falsete por Milton não como um recurso para alcançar notas mais altas, mas como linguagem estética assumida. O uso regular desse timbre vocal era uma inovação que se consolidaria tanto no trabalho de Milton, quanto, e principalmente, em outros inconfidentes mineiros, Beto Guedes e Flavio Venturini. 

A primeira colaboração do niteroiense Ronaldo Bastos no disco aparece na letra para a melodia do "trespontano" Milton Nascimento que desaguou em “Cais”. O encontro de montanha e praia proporcionou uma canção libertária de grande vigor poético. Climaticamente rica, a música possui num movimento à parte um diálogo de densa beleza entre o piano e a voz de Milton com o baixo tocado com arco por Luiz Alves (timbrando quase que como um violoncelo) que passaria a ser tão marcante quanto sua melodia e letra. Esta seria mais uma contribuição estética trazida pelo Clube: o instrumental, também protagonista, passa a ser mais do que um simples acompanhamento da voz do cantor e rouba a cena. Sempre atenta a tudo, a canção iria também para o repertório de Elis Regina no mesmo ano.


Seguindo viagem do porto para a gare, a letra de “O Trem azul”, não foi inspirada, como se poderia imaginar, por um bucólico trenzinho entre montanhas mineiras, mas na verdade por uma composição europeia que o mochileiro Ronaldo Bastos tomou um dia. Este talvez seja um dos maiores standards eternizados por esse disco. Indispensável em qualquer roda de violão e até hoje uma saborosa audição nas emissoras de rádio, a melodia de Lô Borges flutua no céu numa viagem onírica acompanhado pelo inspirado solo oitavado da guitarra de Toninho Horta. Um clássico dos Deuses. Duas décadas depois, Tom Jobim pegaria o mesmo trem azul em seu derradeiro trabalho, o álbum Antônio Brasileiro, como mais uma prova de até onde e em quantas direções as influências do Clube poderiam se expandir. 

“Saídas e bandeiras Nº 1”, uma vinheta de 45 segundos fruto de uma parceria de Milton com Fernando Brant em cinco compassos musicais, é uma fuga guiada pelas vozes uníssonas de Beto Guedes e Milton Nascimento para o interior da alma de um Brasil precioso e distante daquele que em 1972, a fumaça de chumbo da Ditadura insistia em ainda encobrir. A picada bandeirante descansa na clareira de “Nuvem cigana” – de Lô e Ronaldo – uma canção hippie de coração sem medo, pontuada pela viola 12 cordas de Beto Guedes.

Antes que surja a dúvida, a morena em questão na música “Cravo e canela” era a amiga de Bituca, Dina Sfat. Apesar do tempero da atriz na letra de Ronaldo e melodia de Milton dar água na boca, ainda sim, ficou fora do filme de Ruy Guerra para o qual o tema fora encomendado. Não entrou na trilha, mas dentro da galeria de finos paladares musicais que este disco criou, ela é uma das mais saborosas. Milton e Lô dividem assovios e vocais.

“Dos cruces” do espanhol de Bilbao - Carmelo Larrea - na voz de Milton é uma das pontes pioneiras erguidas pela MPB em direção a los hermanos de língua espanhola. A interpretação livre dada ao bolero desenhada pelos experimentos sensoriais do Clube, redobram a carga dramática da letra e destacam essa leitura de qualquer outra das muitas regravações já feitas desta canção mundo afora. 

A placidez do piano de Lô em “Um girassol da cor de seu cabelo” chega atenuando o final incendiário de “Dos cruces”. Mais uma parceria dos irmãos Borges - Lô e Márcio. O clima meio espacial do início serve de pano de fundo para uma melodia de delicadeza quase feminina. A suavidade é interrompida pelo suspense das cordas escritas por Eumir Deodato. Mas estas servem, na verdade, de cortina para um surpreendente refrão pop cantado a pleno pulmão pela galera do Clube - como um final feliz para uma faixa de tintas cinematográficas.

Não foi para o cinema, mas para o teatro de José Vicente – que já havia escrito a peça Hoje é dia de rock – que Milton e Fernando Brant criaram “San Vicente”. A peça se passaria numa cidade latina, que na verdade representava o Brasil, numa tentativa de engabelar a Censura. Mas do que essa função satélite de trilha, a música acabou protagonizando a arquitetura de uma ponte na direção inversa do caminho trilhado em “Dos cruces”. Depois do lançamento do disco surgiram naturalmente regravações de chilenos, argentinos, venezuelanos, uruguaios - todos oprimidos da mesma maneira pelos seus regimes autoritários que estendiam a mão de volta em solidariedade através da música. A gravação é movida pelo violão agridoce de Tavito, por vibrantes interlúdios andinos e pelos falsetes arrebatadores de Bituca. Numa ordem perfeita de escalas de belezas heterogêneas, surge logo após o mini-poema musical “Estrelas” deixando saudade no seu brilho de curtíssima duração e trazendo um ilustre penetra no coro: Luiz Gonzaga Jr.

Apesar de composta pelo mesmo triunvirato sócio-fundador - Milton, Lô e Márcio - a letra de “Clube da esquina Nº2” só apareceria no disco-solo de Lô, "A Via-Láctea" e em outro, "Nana Caymmi", ambos de 1979. Aqui no álbum Clube da Esquina, ela faz um debut instrumental que até hoje soa como uma coisa não necessariamente vinculada às gravações letradas feitas sete anos depois. Tanta personalidade se deve ao conjunto do arranjo socialista do grupo que parece ninar a imprevisível melodia solfejada por voz e dobrada por violão, ambos de Milton, tudo quantizado pelas cordas escritas por Eumir Deodato. É para escutar e sonhar.

Se estivéssemos pilotando uma vitrola em 1972, chegaria a hora de trocar o lado do LP. Isso explica porque uma música excepcional como “Paisagem da janela” figura como décima-segunda no CD Clube da Esquina. Na verdade, ela era a abertura do lado B - uma posição importante na montagem de qualquer vinil setentista. Agulha no ponto, entramos num clima meio Butch Cassidy e um ritmo de trote nos conduz pela paisagem bucólica de um cavaleiro marginal embalados pela cama de guitarras de Nelson Ângelo e Tavito. Reza a lenda que a parceria bissexta entre Lô Borges e Fernando Brant teria sua letra inspirada com o avistar da Serra do Espinhaço pela janela de um hotel de Diamantina onde o grupo se hospedava para uma entrevista para revista O Cruzeiro.

Alaíde Costa, a Luluzinha do Clube, revive com Milton “Me deixa em paz”, de Monsueto e Ayrton Amorim, sucesso em 1951 com Linda Batista. Desde a combinação dos timbres negros das duas vozes, o vocalise em falsete de Milton costurando os solos de Alaíde, o surdo em duelo constante com o violão, tudo concorre para tornar a releitura única, definitiva, um dueto que entrou para história. Em seguida insurge “Os povos” (Milton Nascimento/Márcio Borges) trazendo à superfície a verve poética cheia de mergulhos em abstrações e viagens metafóricas características do universo Clube da Esquina oxigenando de novos significados a atmosfera da MPB. 

“Saídas e bandeiras Nº 2” aparece novamente agora como que concluindo a reflexão poética de sua primeira aparição e acrescentando novos elementos instrumentais como um solo de baixo de Beto Guedes. Em seguida, Milton e seu piano em “Um gosto de sol”, dele e Ronaldo Bastos, evocam novamente abstrações que parecem brotar diretamente do inconsciente do poeta para a canção. A citação do tema instrumental final de “Cais”, agora orquestrada por Eumir Deodato, emerge tentando mostrar o parentesco intencional entre as duas canções.

“Pelo amor de Deus” é uma marcha-rancho apenas por definição técnica. O arranjo se vale dessa caricatura carnavalesca para revelar com mais nitidez a ironia e dramaticidade de seus versos. Milton canta e divide com Fernando Brant sua autoria. O vibrante momento instrumental a seguir marca a mais africana de todas as faixas de Clube da Esquina, “Lilia” – que não por acaso, é o nome da mãe adotiva de Bituca.

Em “Trem de doido”, de Lô e Márcio Borges, amigos embarcam num plano de fuga de uma realidade sórdida infestada de ratos. Uma balada-rock à moda mineira na voz de Lô Borges com guitarra-solo de Beto Guedes. 

Encerra o disco, a densa “Ao que vai nascer”. A canção como que tenta prever no nome as possibilidades de um movimento que surgia naquele disco. Antes dela, o clima já havia mudado no clássico “Nada será como antes” que acabou por dar título ao livro de entrevistas e crônicas musicais da jornalista Ana Maria Bahiana. Milton e Beto dividem os vocais numa ode à juventude e à amizade pontuada em melodia e arranjo por expressivas referências pop. Ironicamente, seu viço contemporâneo parece acalentar uma gostosa saudade de algum futuro bom que ninguém saber dizer qual, mas que premonitoriamente não seria como antes. A ensolarada canção de Nascimento e Ronaldo Bastos invoca alegria, fé no futuro e uma irresistível vontade de sorrir e cantar junto: “nada será como antes amanhã”. E desde então, nada mas foi.

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