Embevecido da cultura popular nordestina, Túlio Borges a faz de esteio para os versos e melodias que sustentam a trilogia a que se propõe
Por Bruno Negromonte
Um dos alicerces da esperança sertaneja encontra-se em uma frase atribuída a figura de Antônio Conselheiro, peregrino que liderou a Guerra de Canudos, no início do século passado. Enquanto a profecia de que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão sobrevive na crença e na alma do povo sertanejo, as agruras dessa região vêm sendo abrandada em verso, prosa e melodia ao longo de todos esses anos. Isso não impede que a observação feita, de modo astuto e singular, pelo escritor Euclides da Cunha, de que "o povo do sertão é, antes de tudo, um forte" perca o sentido, uma vez que essa robustez também pode ser observada na região a partir de outras características. Duas delas, culturalmente falando, evidenciam-se na força dos cantadores repentistas da região e no tradicional forró, denominação que segundo o folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo é derivado do termo africano forrobodó (festa que foi transformada em gênero musical tal seu fascínio sobre as pessoas). Exponentes deste contexto cultural, nomes como Luiz Gonzaga, Jackson do pandeiro, os irmãos Batista, Pinto do Monteiro entre outros foram cruciais na desmistificação desta dicotomia entre o espaço do sertão e as peculiaridades das grandes metrópoles. Sem contar que continuam por substanciar os mais distintos discípulos desta vasta cultura como é o caso dessa grande leva de nomes que permeiam a nossa cultura musical desde os anos que sucederam o áureo período em que o baião e seus variantes reinaram em absoluto dentro da MPB, em especial nos anos de 1950. Como se vê, de década em década, de geração em geração, a força da verdadeira cultura nordestina não esmaece; pelo contrário, mostra-se um verdadeiro mosaico sonoro onde se destaca a mais pura verdade e autenticidade sertaneja imergidas na seiva da poesia.
Endossando este contexto eis que se destaca Túlio Borges, artista que dispensa maiores apresentações a julgar pela qualidade daquilo que vem apresentando fonograficamente desde 2010 quando lançou "Eu venho vagando no ar", trabalho considerado um dos 50 melhores álbuns daquele ano e que ganhou elogios de nomes como Tárik de Souza e Zuza Homem de Mello; além de ter recebido a indicação para o Prêmio da Música Brasileira do ano seguinte ao seu lançamento. Este primeiro disco destaca-se por um frescor apresentado a partir de uma sonoridade abrangente e letras substanciadas de vigor e poesia. Após um hiato de cinco anos, Túlio Borges voltou ao mercado fonográfico reiterando sua singularidade com "Batente de pau de casarão", um disco dedicado ao município pernambucano de São José do Egito, terra do seu pai e berço da poesia popular nordestina. Este segundo álbum, "fruto da admiração pelos poetas e cantadores nordestinos" como o próprio artista o define, vem a ser um vigoroso elo lírico-sentimental entre duas distintas regiões. Um projeto que permitiu a imersão do artista às raízes nordestinas que o constituem, assim como também substanciou a sua poesia e refinamento artístico, lapidando ainda mais as nobres e valiosas características que destacam aquilo que produz a partir de canções como "Tu" e parcerias com nomes como o do cantor e compositor brasiliense Toty; do declamador, poeta e compositor paraibano Jessier Quirino; do escritor, cantor e compositor piauiense Climério Ferreira e do cantor e instrumentista Anthony Brito em faixas como "Baú de guardados", "Nanquim", "Adorável trovador", "São João" entre outras que sincretizam culturas e regiões aparentemente discrepantes, mas que fundem-se diante do talento de Borges.
Na plenitude do seu ofício e procurando perfazer novamente este já conhecido caminho, Túlio chega desta vez com "Cutuca meu peito incutucável" (nome extraído de um dos versos da poesia que o cantor recita na última música). Segundo título de uma trilogia a qual pretende fechar no próximo ano, este é um disco que busca retomar a poesia popular nordestina assim como também a ambientação sonora presente no CD anterior reiterando essa espécie de pangeia sonora a qual caracterizou o exitoso projeto lançado em 2015. Sem delimitações fronteiriças, a sonoridade do disco nos conduz do Centro-Oeste ao sertão nordestino como se o mesmo fosse logo ali, após o pontão do Lago Sul, ou como se Brasília ficasse no oitão da Igreja Matriz de São José do Egito. Novamente o multifacetado artista parte da capital nacional aos mais longínquos rincões da região nordestina imbuído de toda a marcante e destacável autenticidade de sua primeira incursão. Talvez de modo proposital, em "Cutuca meu peito incutucável" o artista chega com uma poesia desfibriladora capaz de aplanar as mais distintas emoções dos ouvintes em canções que levam em consideração que sendo o coração o símbolo do amor, tal tema não poderia deixar de evidenciar-se no bojo do trabalho. Isso é possível evidenciar-se em gravações como o xote "Curvas" (de autoria do poeta Zeto, a quem o intérprete dedicou o último anterior), o reggae "Ela levantou os braços e eu morri de amores" (única letra composta para este projeto por Túlio sob música de Afonso Gadelha) ou outras como "Concreto, amor e canção" (parceria do cantor com a cantora Ana Reis, que também divide os vocais da faixa). A taquicardia evidencia-se no ritmo gostoso do tradicional forró a partir registros como "Grandes olhos" (parceria entre Aldo Justo e Alexandre Marino, integrantes do grupo brasiliense Liga Tripa), "Cantiga" (de autoria do saudoso Clésio e do irmão Clodo ferreira), "Vem não" (mais uma letra de Climério a adornar a robusta melodia de Borges), "Contracachimbo da paz" e "Enxerida no contexto" (parcerias do brasiliense com o paraibano Jessier Quirino).
Sob a égide das ilustrações da artista gráfica alemã Tina Berning e apresentação do escritor Renato Fino (que em se primeiro livro "Debaixo do céu do seu vestido" versa sobre o mesmo tema), "Cutuca meu peito incutucável" se propõe não apenas a mexer nos corações de forma lírica, mas reiterar que mesmo em tempo marcado pelas mais distintas dicotomias, Túlio mostra-se capaz de formar uma unidade pautada na sensibilidade e talento. Ninguém há de divergir em opiniões diante de características tão necessárias para o lânguido cenário musical brasileiro. Portanto, permitam-se cutucarem vossos peitos, pois Túlio Borges é a força do sintetismo de Paul Gauguin substanciada nas rimas, repentes e improvisos de nomes como cego Aderaldo, Otacílio Batista e Rogaciano Leite. É a antítese de Vidas Secas, Morte e vida Severina e O quinze; mas traz em sua poesia a mesma força súbita e intensa presente na escrita de João Cabral de Mello Neto, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. É confluência sem rótulos, por isso vai além do gênero que deu destaque à cidade em que nasceu conseguindo abarcar os mais distintos ritmos como é possível reafirmar neste álbum que chega para sacramentar em definitivo o nome deste talento no panteão da MPB contemporânea.
Maiores Informações:
Site oficial - http://tulioborges.com
Youtube - https://www.youtube.com/channel/UCNKfgXk_z1XvrCczdj0E-4A
Facebook - https://www.facebook.com/tulioborgess
Itunes - https://itunes.apple.com/us/artist/tulio-borges/id399431338
Spotify - https://open.spotify.com/artist/48TeDKsNmbvDOyCVnEnMxv
Nenhum comentário:
Postar um comentário