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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




36 - A política e o ECAD

Tudo quanto relatei até aqui comprova: meu pai sempre demonstrou pioneirismo em suas atividades. Homem de pouco estudo, que não terminou o primário, mas de muita inteligência, era dotado de especial consciência em relação à classe artística. Em sua época, o mercado musical brasileiro engatinhava e as fontes de renda do compositor nacional se limitavam aos shows e contratos ocasionais com as rádios e gravadoras. Não havia paga-mento dos chamados direitos autorais aos compositores ou dos direitos de execução aos intérpretes. Preocupados, os compositores mais ex-pressivos começaram a se articular e desenvolver um trabalho de conscientização junto à classe, ao governo e à sociedade. Reuniam-se nessa luta Herivelto Martins, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Braguinha, Mário Lago, Alberto Ribeiro, Haroldo Barbosa, Roberto Martins, entre outros. Dessa luta nasceu a Regulamentação do Direito Autoral no Brasil e foi criada a primeira sociedade de direito autoral, mais tarde batizada de UBC — União Brasileira de Compositores, que deu origem às diversas sociedades de hoje, como SBACEM, SOCIMPRO, SBAT, Abramus etc. Os artistas de hoje devem a essa atitude pioneira e cora-josa dos colegas, nos anos 40 e 50, o reconhecimento do seu direito de faturar cada vez que sua obra é executada ou vendida por meio dos discos. Ainda estamos muito longe do ideal para a classe artística, mas o alicerce já foi conquistado. Nos anos 60, Herivelto acabou se envolvendo mais profundamente com o trabalho do Sindicato dos Compositores, sendo seu presidente por dois mandatos consecutivos. Também foi presidente da SBACEM — Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música. Como presidente do sindicato, obteve grandes conquistas para a classe: o direito à aposentadoria para o artista e a obrigatoriedade da contribuição sindical. Esta última porque Herivelto conseguiu convencer o então ministro do Trabalho, Nei Braga, da necessidade de autorizar o desconto obrigatório para o sindicato da classe por intermédio do Ecad, recém criado. Como presidente das duas sociedades, lutou contra a criação do ECAD — Escritório Central de Arrecadação de Direitos —, por prever o risco dessa ideia, a princípio muito conveniente e facilitadora do mecanismo de arrecadação, mas perigosa se tivesse sua estupenda receita mal gerida. Houve protestos na época por parte dos profissionais mais esclarecidos que pensavam como Herivelto. A formação do ECAD trouxe muita tristeza para meu pai, ao ver com o passar do tempo, como previra, apenas alguns eleitos se beneficiando. A famigerada entidade veio para enriquecer poucos, e a distribuição igual para todos jamais aconteceu. Essa participação no mundo político da música rendeu a Herivelto uma quantidade razoável de inimigos. Era um mundo sem os ideais dos quais ele sempre fora imbuído, uma politicagem barata, onde interesses escusos e de poucos prevaleciam sobre os verdadeiros interesses da classe. Em várias ocasiões disse a meu pai que não entendia como ele, o autor de obras tão importantes e sensíveis, se misturava com assuntos que muitas vezes não levavam a nada. Ou melhor, levavam -no a um mundo feio, distante da beleza dos palcos a que estava acostumado. Cheguei a vê-lo sair de revólver na cintura — e ele não tinha o costume de andar armado. Fiquei assustado: “Meu pai, o que está acontecendo?”. “Vai haver uma reunião no sindicato e já vieram me contar que o Adelino anda por aí armado, dizendo que vai me pegar. Tenho de me proteger.” “Ora, meu pai, deixa disso! O senhor é um poeta. E poetas não andam armados.” A briga maior, naquele momento, era com Adelino Moreira, seu grande opositor nessa política. Eu deplorava tudo aquilo e não quis muito saber por que brigavam. Penso que essa participação, num mundo completamente alheio ao seu, afastou Herivelto pouco a pouco do palco e mais ainda do violão, embora música fosse o que mais amasse na vida. Outra faceta dele: tinha uma necessidade imensa de liderar, de aparecer. Se a música era o seu amor, a sede de comandar era a paixão. Sempre. Fosse o repertório do Trio, os figurinos de Dalva ou as evoluções de sua escola de samba, com o famoso apito. Alguns colegas da época diziam até que essa história do apito, além de funcional, ajudava-o a se destacar. Só dava Herivelto no samba. É importante ressaltar, porém, que essa sede de destaque e de comando se restringia à área de trabalho, ao mundo musical. Em sua proximidade com políticos importantes, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ademar de Barros, sei que essa capacidade natural de liderança motivou alguns convites para concorrer a cargos políticos. Nunca aceitou nem demonstrou interesse. Não era simplesmente o jogo do poder que o atraía, mas sim o poder e o destaque em seu ambiente musical. Fazendo uma análise mais pragmática, posso dizer que meu pai, com sua atuação na política do meio musical, também estava procurando se “segurar” financeiramente, pois o Trio de Ouro (com Raul Sampaio e Lourdinha Bittencourt) tinha cada vez menos trabalho. E sua escola de samba, ainda ativa, não faturava muito; apenas preenchia um pouco do grande vazio que o artista Herivelto passou a enfrentar. Havia algo em meu pai que só comecei a perceber após sua morte e que procurei observar de uma maneira completamente is-enta de tendências. Nunca o vi manifestar nenhuma atração por lados, cores ou opiniões políticos, ou mesmo engajar-se em correntes partidárias. Era uma pessoa ligada exclusivamente à música, ao palco e às manifestações de sua arte popular. Mesmo que estivesse perto de Getúlio, Ademar ou Juscelino, a finalidade da aproximação não era política, no sentido mera-mente eleitoreiro, mas sempre pretendendo fazer algo pelos compositores. Havia nele uma grande consciência de classe e um empenho enorme de melhorar a condição de quem vivesse da música. Foi assim quando se tornou presidente da SBACEM e presidente do Sindicato dos Compositores. Era assim também quando compunha. Ele sempre honrou suas origens — o morro, a vida humilde, as raízes indígenas, o negro, a mulata, o crioulo — e, mais ainda, enalteceu-as na sua música cheia de amor e espontaneidade, como ninguém fez com tamanha produtividade. Essencialmente, sinto que a grande finalidade da vida de meu pai, sua função como ser humano foi sempre ligada à música antes de qualquer outra manifestação mundana. 



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