37 - A obra de Herivelto
Meu pai coloriu a vida brasileira de forma magistral, com cores fortes e definitivas, sons de rara beleza, numa concordância melódica e harmônica que se perpetuará através dos tempos, numa rica expressão da arte popular. Posso também dizer que meu pai, Herivelto Martins, foi o cronista maior de sua cidade, o Rio de Janeiro. Ele escreveu sobre tudo e usava seu talento para chamar a atenção sobre o que se passava na cidade. Antecipou o fim da praça Onze, no samba memorável ao lado de Grande Otelo. Cantou o morro da Mangueira, homenageou a beleza triste da favela em sua Ave Maria, enalteceu as mulatas, as Estelas, as Isauras e as Olindas. Cantou cassinos e botequins. Anunciou o novo perfil da cidade com a construção da avenida Central (atual Rio Branco), que rasgou e remodelou o centro do Rio. Cantou o Morro do Castelo, que foi demolido para dar espaço ao aterro do Flamengo. Seus interesses eram mais amplos. Cantou do bondinho de Santa Teresa, no Rio, à cidade de Brasília para Juscelino. Escreveu para a Bahia e o Rio Grande do Sul. Cantou Francisco Alves e Carlos Gardel. Não vejo, na música popular brasileira, nenhum compositor com tamanha versatilidade de temas e ritmos. Na obra de Herivelto, quase setecentas canções, encontramos samba, marcha, samba-canção, valsa, tango, bolero, baião,
canção, jongo, frevo, guarânia, batuque, rancheira, fox. Na capa do último disco de meu pai, Que rei sou eu? , produzido pela Funarte em comemoração ao Prêmio Shell da MPB dado a ele em 1987, o jornalista e pesquisador Tárik de Souza, em texto escrito especial-mente, afirmou que parece haver na obra de Herivelto vários compositores, tal o grau de diversificação no seu jeito de compor. Como músico e compositor surgido no in-ício do século, meu pai não recebeu nenhuma influência musical. Sua informação literária restringia-se aos poemas caipiras aprendidos em Barra do Piraí. Tudo o que fez, assim como Donga, Pixinguinha, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Braguinha, Ataulfo Alves, Lamartine Babo, Noel Rosa e toda a geração deles, foi de uma originalidade sem precedente na história musical do Brasil. Não tinham a quem seguir e então in-ventaram, inaugurando o caminho que todos das gerações subsequentes, sem exceção, trilhamos e ainda vamos trilhar. O pioneirismo era total. Não se pode esquecer que a gravação, o registro em disco, engatinhava também . Era apenas o início do mercado musical e as gravadoras começavam a se instalar no país. Edição não existia, registro muito menos. Tenho certeza de que a originalidade e o lirismo abençoaram aquelas cabeças e fizeram com que deixassem um legado espontâneo e genial. Tanto que, até hoje, nos curvamos e bebemos em sua fonte. Herivelto fez parte dessa geração e foi um dos seus gigantes, com uma obra magnifica-mente intuitiva e artesanal. Obra que atravessa o tempo pela unanimidade que provoca. Nascida da espontaneidade, sem ser dirigida ou manipulada, baseada somente nas informações trocadas entre eles, sem obedecer a qualquer regra imposta por ditaduras comerciais. Não se fazia música pensando no sucesso e no consumo, mas principalmente pelo orgulho, pela beleza da obra em si. E pela espontânea aceitação do público. Nada merecia respeito e consideração dos que viviam da música se não fosse calcado na qualidade, na beleza e numa verdade interior que traduzisse tão somente uma comunhão com a música. A música de meu pai tinha essa força e essa verdade, assim como a de Ary Barroso, Lamartine, Cay mmi, Braguinha, Lupicínio e todos os grandes da época de ouro. Tinham a soltura e a liberdade de criação que aos poucos foram morrendo no Brasil. Aliás, no mundo inteiro. Por causa dessa liberdade, o período se tornou tão pródigo em sons, rimas e nu-ances. E, mesmo estando essas pérolas musicais meio esquecidas na música atual, o leg-ado transcende o tempo e, qual uma fênix, renasce no canto popular, eternizando-se na memória de nosso povo. A geração que se seguiu, trazendo Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lira, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, veio com uma força muito grande e realmente assustou os antecessores. Eles traziam um mundo desconhecido, cheio de novos sons, uma forma nova de tratar o amor, cheio de bossa, com muita ginga e balanço. Uma Bossa Nova. É importante dizer que a bossa realmente nova não nasceu somente daqueles que citei — e o mundo passou a enaltecer. Outros haviam muito antes prenunciado o novo es-tilo — Ciro Monteiro, Vassourinha, Noel Rosa, Mário Reis. Mas havia no elenco comandado por Tom Jobim o desejo de romper com a linguagem usada em relação ao amor, à mulher, à visão de mundo. O rompimento musical com o passado, um tanto escuro em sua forma de expressão, fez com que surgisse um aprimoramento do jeito de cantar, tocar e compor. Havia mais frescor, alegria e uma bossa diferente. Não se pode esquecer também que a Bossa Nova brotou de uma classe social emergente, mais abastada, e que conflitava com os representantes do movimento antecessor, gente mais pobre, sem recursos para tomar uísque e, muito menos, morar de frente para o mar. É claro que o choque foi tremendo. Só não foi maior o confronto porque os novos compositores, Tom principalmente, tinham uma admiração enorme por Ary Barroso, Caymmi e todos os outros. Meu pai, por exemplo, é uma das grandes paixões de João Gilberto, que gravou “Isaura” e “Ave Maria no morro”. Cada vez que me encontrava com João no Brasil ou em Nova York, a primeira coisa que falava era: “Oi, Pery ! Como vai teu pai? Já te falei: pra mim ele é e será sempre o mais importante”. Como a maioria dos seus contemporâneos, meu pai não assimilou de imediato a nova expressão. Demorou algum tempo para entender e passar a admirar o movi-mento. Acho que contribuí bastante para a aceitação dele ao me integrar à Bossa Nova. Principalmente quando gravei “Garota de Ipanema” pela primeira vez para o mundo. O sucesso foi tão grande que, acredito, colocou meu pai um pouco mais perto do movimento. Por fim, nos últimos anos, ele já enaltecia o trabalho daqueles que deixaram seus nomes gravados no maior movimento musical que este país conheceu. Recentemente, pude observar, surpreso, que algumas obras do meu pai de gênero mais interiorano receberam certa influência de Ary Barroso. Descobri isso ao assistir ao show Ary mineiro, das cantoras gêmeas Célia e Celma, minhas doces amigas. Como boas mineiras de Ubá, cidade natal do compositor, resolveram homenagear a faceta mais interiorana de Ary, tão pouco divulgada. E imediatamente me lembrei do meu especial amigo e vizinho na Serra da Cantareira, em São Paulo, o compositor Renato Teixeira, dizendo em minha casa como considerava meu pai um compositor com forte influência rural. Contou-me também que a primeira música que aprendeu no violão em sua terra natal foi um tema interiorano de Herivelto, “Caboclo abandonado”:
Quem visse aquele ranchinho
Lá na beira do caminho
À sombra de um pinheiral
Parava cheio de espanto
Ao ouvir de dentro o canto
De um sabiá divinal
Jamais alguém pensaria
Que neste rancho existia
Um caboclo abandonado
Quem partiu deixou lembranças
E ele guarda uma esperança
E ele canta amargurado
A rola nunca se esquece
De onde fez o seu primeiro ninho
O seu primeiro ninho de amor
Pode rolinha triste
Andar por onde quiser andar
Mas ao seu primeiro ninho
Tem que voltar
O samba tinha em meu pai o representante mais dedicado. Mas, com o tempo, a modernidade exigiu que o samba começasse a falar de maneira mais íntima ao coração. Naturalmente, o blues norte-americano e as aparições, em meados dos anos 40, dos cantores românticos (os americanos Nat King Cole, Frank Sinatra e Bing Crosby, e o brasileiro Dick Farney) contribuíram para que se procurasse uma maneira de se comunicar mais ao pé do ouvido. O romantismo de meu pai, o lirismo da época e a própria história de sua vida deram muita força para que nascesse o samba-canção. Eu não diria que ele tenha sido o pre-cursor, mas tenho certeza de que, junto com o Caymmi de “Só louco” e o Braguinha de “Copacabana”, deu o passo inicial para que o samba-canção passasse a ser um gênero abraçado pelos que queriam falar mais de perto ao coração das pessoas. Chico Alves gravou de Herivelto “Culpe-me” e “Caminhemos”. Foram grandes sucessos. Sílvio Caldas gravou “Cabelos brancos”, outro sucesso. A partir daí, o samba-canção ficou total-mente integrado à alma do brasileiro. Aliás, meu pai, quando discutíamos os rumos da cultura nacional, gostava de dizer: “Pery, quando a música brasileira parecer mais decaída, quando a má qualidade quase matar a nossa cultura e o lixo estrangeiro mais estiver dominando a nossa música, há de sempre surgir um samba-canção pra sal-var a nossa dignidade cultural”. Assim espero, meu pai!
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