Por André Diniz
Em 1922, na abertura das comemorações do Centenário da Independência, na capital federal, o discurso do presidente Epitácio Pessoa foi transmitido pelo serviço de radiotelefonia, com alto-falantes espalhados pelo Rio de Janeiro. Estava inaugurada a transmissão radiofônica no Brasil. Em breve as emissoras de rádio virariam a maior febre da nossa sociedade, com música popular, novelas, programas humorísticos e reclames (propaganda). Sua universalização nas décadas seguintes abriu caminhos para projetos políticos e ideológicos.
O clima contestatório permeou a sociedade brasileira na década de 1920. E a disputa presidencial pegou fogo. Era a mais acirrada até então na Primeira República. “Seu Mé” era o apelido do mineiro Arthur Bernardes, que desembarcou no Rio de Janeiro para enfrentar o campista Nilo Peçanha. Ao chegar à pomposa avenida Rio Branco, Arthur olhou a multidão apreensivo. Os rostos eram pouco amistosos. O pior aconteceu: o povo não pensou duas vezes, mandou uma sonora vaia, acompanhada pelo canto da marchinha “Aí, seu Mé”, de Freire Júnior e Careca, cantada nas ruas da cidade, antes mesmo de ser gravada por Bahiano na Odeon:
O Zé-povo quer a goiabada campista
Rolinha, desista,
Abaixe essa crista
Embora se faça uma bernarda [sinônimo de revolta em Portugal e brincadeira com o sobrenome do presidente] a cacete
Não vais ao Catete!
Não vais ao Catete!
Aí, seu Mé! Aí, Mé Mé!
Lá no Palácio das Águias [refere-se ao Palácio do Catete que tem suas fachadas adornadas por águias de metal], olé,
Não hás de pôr o pé (bis)
O queijo de Minas está bichado, seu Zé.
Não sei porque é, não sei porque é.
Prefira bastante apimentado, Iaiá,
O bom vatapá, o bom vatapá [refere-se ao político baiano Seabra, vice na chapa do candidato Nilo Peçanha].
Aí, seu Mé!
Aí, Mé Mé!
Lá no Palácio das Águias, olé
Não hás de pôr o pé
A música de Freire Júnior e Careca era uma marchinha – estilo predileto dos compositores para retratar o cotidiano e a política no Rio de Janeiro. Uma verdadeira crônica musical. Com letras brejeiras, fáceis de decorar e cheias de sarcasmos, a marchinha apareceu pela primeira vez em 1899, na pena da maestrina Chiquinha Gonzaga, no histórico “Ó Abre Alas”, composto para um bloco de carnaval do bairro do Andaraí. Ainda era um gênero em construção, com andamento mais cadenciado, sem o tom espevitado e alegre que ganharia no decorrer do século XX.
Freire Júnior e Careca não foram felizes em seus prognósticos de derrota de Arthur Bernardes na eleição presidencial. Como não havia esquecido o episódio vexatório da avenida Rio Branco, o novo Presidente pediu ao chefe de polícia que chamasse os dois compositores à delegacia para tirar satisfações sobre a marcha “Aí, seu Mé.” Lá foram eles se engalfinhar em discussões diante do delegado, tentando fugir da responsabilidade na autoria da música. Depois da conversa, Freire Júnior chegou a ser preso algumas vezes, e Careca teve que sair da cidade durante um bom tempo. Vale dizer, por curiosidade, que à época em que eles fizeram a marcha, assinaram com o pseudônimo de “Canalha das Ruas”, outra gozação ao Presidente eleito, que atribuía a hostilidade contra ele à “canalhada das ruas” do Rio.
O último governante da Primeira República, Washington Luís, tinha um estilo diferente dos outros ocupantes do Catete: era boêmio, divertido, entoava marchinhas de carnaval no palácio, não perdia um baile de momo e adorava futebol. Talvez por isso as marchinhas o tratassem de forma mais carinhosa e amena, sem a picardia tradicional. Mas isso é história para o próximo texto… Inté.
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