Por Paulo César Feital
Nasci num sábado de carnaval. Fevereiro, década de cinqüenta. Dei-me conta da minha geração e senti-me agraciado por Deus ao testemunhar o aparecimento de uma constelação com tantas estrelas de primeira grandeza. O fulgor poético de Chico, o brilho ousado de Caetano, Gil e Milton; o fogo cadente de Vandré; o lume de Torquato e a claridade de Edu, Dori, Ivan, Gonzaga, Aldir, Paulinho Pinheiro, Hermínio, Baden, Djavan, MPB4, Quarteto em Cy, João do Vale, João Bosco, Elis, Clara, Bethânia, Nana, Lenny, etc...
E o samba?
Na mesma constelação, pulsando em dois por quatro, cintilavam Cartola, Candeia, Wilson, Elton, Paulinho, Nelson e Guilherme, Mauro Duarte, Mano Décio, Nogueira, Martinho, Marçal, Monarco, Noca, Clementina, Dona Ivone, Zé Ketti e tantos outros. O fulgir dessa constelação atrapalhava os planos da horda da escuridão e anulava a intenção do poder oficial de controlar a população. Para isso era preciso arrancar da terra a árvore da liberdade de expressão e a juventude brasileira convivia com o que de melhor suas raízes geravam. A poesia aprendera a driblar a censura e o povo a ler no subtexto a sutileza das denuncias. Mas a horda da escuridão era, e é, de grande poderio.
Acreditavam os habitantes do breu da época, na força do espírito militarista, e, por acreditarem, tornaram-se poderosos. Hoje, crêem na força do capitalismo selvagem, na mídia venal, no vil metal que corrompe, na ambição sem fronteiras e, por acreditarem, tornaram-se mais poderosos que seus dinossauros. Criaram o exército da mediocridade. O medíocre trabalha vinte e quatro horas e o talento dorme em berço esplêndido. Um alto comando, inteligente e cruel, concluiu que, para conquistar seus objetivos seria necessário o rompimento da memória nacional, o esfacelamento do pensamento coletivo e a destruição da imaginação. As primeiras cobaias foram seus próprios soldados.
Iniciou-se uma perseguição implacável. Em postes, tapumes e muros eram afixados cartazes: “PROCURA-SE, VIVA OU MORTA, A GENUÍNA MÚSICA BRASILEIRA”. Frevos, baiões, baladas, choros, marchas, modas,toadas, jongos e valsas abrigaram-se na alma ferida de seus criadores. A década de oitenta, a mais estéril do século, já sob o domínio da segunda geração da horda, que trocara a farda de seus pais pelo terno e gravata e assumira altos cargos na indústria fonográfica e secretarias de cultura, devastou qualquer pretensão de reação da Arte brasileira. Um som sem harmonia, melodia e poesia inundou o país de norte a sul. O novo dizia que “pra mim fazer amor” não era preciso concordância. O enlatado, expulso do seu torrão de origem, encontrava abrigo nos meios de comunicação, aclamado pelos vendidos ou lavados cerebralmente. Os filhos da horda começavam a criar a terceira geração. Uma geração sem assobio.
A música é que situa no tempo os fatos marcantes de uma vida. Uma grande desilusão, um grande amor, uma passagem política, enfim, a nossa história. Essa geração, no outono da sua existência, terá que bater o pé no chão, tendo dentro de suas cabeças o som do bumbo eletrônico. Uma imensa paixão, bum,bum,bum..., Uma perda irreparável, bum,bum,bum... Triste, mas real. As indústrias filiadas a horda, através dos homens que as comandam, prantearão um dia a imbecilidade de seus filhos vítimas inocentes da desmedida ambição. É preciso contra - atacar. É vital que passemos para nossos herdeiros o que foi, o que é e o que é preciso ser.
Mas, e o samba?
Durante todo esse período, mais malandro, mandingueiro, guerrilheiro, caíra na clandestinidade. Retornara às suas origens e encarnara, como sempre lhe coubera na história, o papel de liderança do movimento de resistência. Ele sabia que teria que planejar um trabalho a longo prazo, em segredo e recolhido. Um trabalho que até hoje se estende e que começa a dar frutos. Democrático, promoveu a queda das fronteiras da verdadeira criação. Misturou Lapa com Leblon, calçada com viela, violinos com cavaquinhos. Uniu poetas e compositores urbanos aos populares. Elton Medeiros, Nelson Sargento, Carlinhos Vergueiro, Luiz Carlos da Vila, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Jota Maranhão, Jorge Simas, Noca da Portela, João Nogueira, Claudio Jorge, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Nei Lopes, entre outros, são cantados por Nilze Carvalho, Roberta Sá, Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Telma Tavares, Moyseis Marques, Lucas Bueno, Sáloa Farah, Ana Costa, Mariene de Castro, e tantos outros representantes da nova safra.
Hoje misturam-se e formam um só bloco. Centenas de composições guardadas no celeiro do samba a espera da invasão. Enquanto isso, a horda, como um polvo, estende seus tentáculos em todas as direções. Mataram a galinha dos ovos de ouro e num último suspiro tentam roubar o pouco que resta para o artista: o palco! Não podem deixar nenhum buraco vazio. Sim, pois a mediocridade é, monetariamente poderosa, a serviço da inteligência diabólica, mas, ao mesmo tempo, vulnerável ao menor avanço do talento. Por isso ela é vítima de sua própria vigília. Não pode dormir. É obrigada a inventar a cada minuto aparições ridículas e investir segundo após segundo, milhões, para a preservação do patético. É exaurida pela própria mediocridade. Não freqüenta as reuniões da CRIAÇÃO porque não pode apresentar nada mais que ridículas cópias do ridículo. Ninguém a humilha. Ela já nasce humilhada. E A GENUÍNA MÚSICA BRASILEIRA sabe disso. Basta que conscientize seus poetas e compositores que ACREDITAR É PRECISO!
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