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sĂ¡bado, 30 de setembro de 2017

MEUS CAROS AMIGOS

Por Ricardo Moreira



Em 1976, ano em que foi lançado "Meus Caros Amigos", o Golpe Militar completava 12 anos e Chico Buarque de Hollanda - 32 anos, casado com Marieta Severo e pai de trĂªs meninas - ainda carregava nas costas a sina de ser “o nosso Errol Flynn” – como definiu Glauber Rocha pela Ă³tica cinematogrĂ¡fica, dois anos antes. A essa altura a imagem de paladino da liberdade e o intrĂ©pido figurino capa-e-espada que Glauber e a naĂ§Ă£o tinham orgulho em lhe emprestar, nĂ£o eram mais do seu tamanho.

Capa do Disco "Meus Caros Amigos" (1976)


Chico era muito maior do que tudo isso, mas difĂ­cil tambĂ©m era fechar os olhos a um Brasil perverso presidido pelo quarto militar onde atos simbĂ³licos como a recusa do PrĂªmio Molière pela peça Gota d’Ă¡gua que escreveu com Paulo Pontes, ainda eram necessĂ¡rios para lutar contra a navalha da censura. Um paĂ­s onde morria de forma suspeita, naquele mesmo ano, a estilista e mĂ£e-coragem Zuzu Angel – que partia sem saber que destino fora dado a seu filho. Na obra de Chico, Zuzu e seu drama apareceriam duas vezes. A primeira no desesperado acalanto “AngĂ©lica”, em parceria com Miltinho e gravado por Chico apenas em 81, e na letra de “CĂ¡lice” – parceria com Gilberto Gil – no verso: “quero cheirar fumaça de Ă³leo diesel / Me embriagar atĂ© que alguĂ©m me esqueça...”. Uma clara referĂªncia Ă  morte de Stuart Angel que depois de torturado, teria sido arrastado com a boca no cano de descarga de um jipe da aeronĂ¡utica atĂ© morrer por asfixia. Era difĂ­cil calar.

A conta desse ativismo “visceral” era muitas vezes paga com a subestimaĂ§Ă£o de suas primorosas melodias e do lirismo de suas canções. Tudo em favor de versos que davam voz aos anseios de liberdade Ă queles brasileiros que tinham o privilĂ©gio e o desconforto de saberem o que se dava nos subterrĂ¢neos da liberdade, nas veias de um paĂ­s abertas por tenebrosas transações. Se Chico por um lado precisava ser episodicamente resgatado do papel indesejado de “cantautor revolucionĂ¡rio”; jĂ¡ contra o forjado duelo estĂ©tico com a TropicĂ¡lia dos festivais, ele havia se vacinado tanto pelo arranjo primoroso do tropicalista Rogerio Duprat para “ConstruĂ§Ă£o” em 1971, quanto pelo histĂ³rico disco “Caetano & Chico - Juntos e Ao Vivo” de 1972.

Caetano e Chico - Juntos e Ao Vivo (1972)


Ainda perseguido pela incansĂ¡vel lupa da censura em “Calabar, O Elogio da TraiĂ§Ă£o”, depoister-se camuflado dela em personagens fictĂ­cios como Julinho da Adelaide em “Sinal Fechado” e coadjuvado numa temporada e disco histĂ³ricos com Maria BethĂ¢nia no CanecĂ£o, o artista estava pronto para continuar a aviar notĂ­cias frescas para novos e para caros amigos atravĂ©s de sua obra-prima de 1976. 

Meus caros amigos estĂ¡ no olho do furacĂ£o da discografia de Chico Buarque. Por se tratar de um disco, segundo ele prĂ³prio definiu os Ă¡lbuns dos anos 1970, que tem “alguma coisa de abafado”, ele estĂ¡ num ponto intermediĂ¡rio entre o começo do sufoco de “ConstruĂ§Ă£o” e as janelas abertas a partir de “Chico Buarque” de 1978, quando a censura afrouxava e o projeto “lento e gradual” da Abertura começara.

Capa dos discos "Calabar" (Ă  esquerda) e "ConstruĂ§Ă£o" (Ă  direita)


CaĂ­a entĂ£o como uma luva a influĂªncia ensolarada de Cuba na estupenda faixa de abertura “O que serĂ¡”. A encomenda fora feita pelo diretor Bruno Barreto para Dona Flor e Seus Dois Maridos – uma adaptaĂ§Ă£o cinematogrĂ¡fica do romance homĂ´nimo de Jorge Amado. Chico atendeu nĂ£o sĂ³ com uma obra-prima, mas com trĂªs “o que serĂ¡s” subintitulados: Abertura, “Ă€ flor da pele” e “Ă€ flor da terra” para situações distintas do roteiro. O ensaio do cubaiĂ£o, como ficou apelidada a mĂºsica pela mistura rĂ­tmica caribenha e nordestina, encantou Milton Nascimentoque a ouviu por acaso ao passar pelo estĂºdio em que Chico ensaiava com o arranjador Francis Hime. Assim se deu o dueto histĂ³rico que teve o convite retribuĂ­do pelo mineiro em seu disco “Geraes”, onde Chico participa na versĂ£o Ă  flor da pele de “O que serĂ¡”.

“Mulheres de Atenas”, faixa dois do disco, foi composta tambĂ©m sob encomenda para a peça de mesmo nome do dramaturgo Augusto Boal - parceiro de Chico na canĂ§Ă£o. Ao espelhar a humilhaĂ§Ă£o, abuso e a exploraĂ§Ă£o feminina na remota sociedade grega a mĂºsica aviva produtivamente o debate sobre o tema no mesmo 1976 em que a Academia Brasileira de Letras passa a aceitar mulheres em seus quadros e seis anos apĂ³s a ativista Betty Friedan queimar sutiĂ£s em Nova York.

“Olhos nos olhos” segue no mote da libertaĂ§Ă£o feminina da submissĂ£o. Sucesso estrondoso no mesmo ano com Maria BethĂ¢nia, a balada evidencia o poder quase mediĂºnico de Chico em se transportar em verso para o universo do sexo oposto com naturalidade e identificaĂ§Ă£o espantosas. 

“VocĂª vai me seguir” – parceria com o cineasta Ruy Guerra - Ă© ainda uma canĂ§Ă£o, que pelo caminho poĂ©tico inverso como em “Mulheres de Atenas”, mostra quadro a quadro o poder subterrĂ¢neo do sexo “frĂ¡gil”. Parte da trilha da peça “Calabar” – a belĂ­ssima toada conta ainda com um magistral trabalho vocal do MPB-4.

Hugo Carvana descolou “Vai trabalhar vagabundo” em 1975 para trilha de seu filme homĂ´nimo que contava a histĂ³ria de um malandro, o prĂ³prio Carvana, libertado da prisĂ£o. Chico nĂ£o perde a viagem e salpica a mĂºsica de crĂ­ticas sociais pautadas pelas misĂ©rias do dia a dia do trabalhador brasileiro.

O samba “Corrente” Ă© um universo paralelo que rescende ao mesmo concretismo pavimentado em “ConstruĂ§Ă£o” cinco anos antes. Como se fosse um playmobil poĂ©tico, sua letra brinca de mover versos desvendando novos significados que o prĂ³prio ouvinte pode livremente atribuir. Apesar de ser “um samba bem pra frente”, como diz o primeiro verso, desafiando subliminarmente os militares em sua campanha institucional Este Ă© um paĂ­s que vai pra frente e de quebra a marchinha ufanista tambĂ©m usada pela Ditadura - “Pra frente, Brasil” da Copa de 70, a genialidade de Chico cria uma espĂ©cie de marcha-rĂ© melĂ³dica e harmĂ´nica em que se tem a sensaĂ§Ă£o clara de retrocesso. Uma obra-prima de concepĂ§Ă£o. 

“A noiva da cidade” e “Passaredo” foram compostas com Francis Hime para o filme A noiva da cidade, de Alex Viani. Na primeira o belo samba sonha com o amor de uma distraĂ­da menina-moça, enquanto a segunda Ă© um verdadeiro tratado ornitolĂ³gico que fez com que Chico pesquisasse em dicionĂ¡rios cientĂ­ficos os nomes de pĂ¡ssaros para compor a rica fauna da letra.

A intensa e errĂ¡tica “Basta um dia” Ă© originalmente da peça Gota D’Ă¡gua, escrita com Paulo Pontes que tinha Bibi Ferreira no papel principal, foi tambĂ©m para o disco do mesmo ano da sambista Clara Nunes no esteio de seus costumeiros passeios Ă  MPB.

O exilado polĂ­tico Augusto Boal – falecido em 2009 – aparece novamente desta vez como destinatĂ¡rio da carta-choro “Meu caro amigo” que Chico compĂ´s tambĂ©m com Hime e inspira o nome do disco. O resultado da conversa entre melodia e letra brilhantes com arranjo de Francis para o regional de choro liderado pelo virtuosismo da flauta de Altamiro Carrilho, Ă© arrebatador e definitivo.

Apesar da asfixia daqueles tempos de opressĂ£o, o sentimento que fica depois da leitura dessa carta libertĂ¡ria chamada “Meus caros amigos” Ă© um intenso orgulho de ter Chico Buarque de Hollanda como patrĂ­cio e, porque nĂ£o dizer, carĂ­ssimo amigo.

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