Cantor e compositor carioca é comumente apontado como "tradutor" da alma feminina
Por Érico Andrade *
Artista lançou recentemente primeiro single do próximo disco, Tua Cantiga.
Não raro, mulheres se sentem contempladas pelas letras das músicas compostas por Chico Buarque de Holanda. Chico fala por elas, insistem. Afinal, dizem, ele tem alma feminina. Dificilmente algum compositor trisca a unanimidade como o faz Chico. Mais difícil ainda é quando essa unanimidade é também feminina pelo motivo das mulheres se reconhecerem, nas suas diferentes facetas, nas letras milimetricamente compostas por aquele que desvenda as nuances do feminino. Fala como se fosse uma mulher. Como se fosse. É evidente que, por mais que Chico consiga ter a proeza literária e musical de fazer as mulheres ou parte delas se sentirem representas por suas músicas, ele não pode acessar a experiência fenomenológica e subjetiva de ser mulher. Mas meu texto não pretende desenvolver esse ponto.
Quero falar dos homens de Chico que controlam, subjugam e dominam as suas mulheres. Quero sublinhar que as mulheres de Chico estão em função desses homens. Elas são de Atenas e não de Esparta. É a partir dos homens que sabemos delas, de suas histórias. Os homens as escolhem porque "elas não têm gosto ou vontade". Elas são o que os homens querem. Os homens de Chico também sabem que elas estão sempre esperando; não apenas as de Atenas, mas também as do Rio. Com gosto de hortelã, café, feijão e paixão que nunca acaba; elas estão sempre disponíveis. Mesmo "maltrapilhos e maltratados", os homens arrancam das mulheres açúcar e afeto. Quando cansados, eles são beneficiados com pratos, carinhosamente preparados e, quando em grupo, a comida estende-se pela casa, é engrossada, para que nenhum homem deixe de ter mais uma vez fartura, leia-se domínio, e abundância daquilo que deseja. Mas o que desejam esses homens de Atenas, da Lapa e do cais?
Como todos os homens, mais precisamente: a maioria, para evitar indigestas generalizações, querem o amor incondicional. Querem o amor de uma mãe sem companheiro, dedicada unicamente à criança e cuja restrição do reportório de cantigas não impede o cuidado do menino, filho, que é santo, poderia também ser uma majestade, e leva nome do nosso Senhor. Os homens querem o amor da mãe que nas suas mulheres se traduziria pela capacidade de tudo perdoar. Perdoar inclusive a violência das mãos que se erguem.
O masculino em Chico é o reforço da imagem do homem que nada pergunta – ele não precisa exercer nenhuma forma de cuidado para se alojar no coração das mulheres - nem traz nada, mas apenas faz a mulher reconhecer-se a partir dele como mulher. Mulher que não tem tempo de dizer não. Mulher que não fala, ante a atitude masculina, e quando fala é apenas para dizer sim. "Uma noitada, um botequim, um cinema", seja qual for o motivo; ela diz sim. Afinal, os homens pagam, compram, palavras. Compram das mulheres meias verdades e às mulheres concedem apenas o tom da luz em que as verdades se escondem – são meias verdades – para não perderem seu caráter de ficção sob encomenda.
Mesmo a felicidade feminina tem áurea de vingança. Vingança por uma obediência que não passa. A mulher que procura nos olhos do ex-parceiro a si mesma, a sua própria felicidade, pois a sua felicidade precisa ser homologada pelo incômodo dele. A mulher que faz de sua felicidade uma provocação, reforçando, para variar, a natureza sedutora da mulher que muitas vezes, mas não sempre, está a serviço do imaginário masculino cuja virilidade se traduz na impregnância do desejo de ser o desejo de todas as mulheres. O homem que enlouquece as mulheres, as faz rivalizar, mora em seus corpos porque eles são a extensão de sua própria propriedade. Aliás, a fidelidade masculina, que invariavelmente trata as mulheres como propriedades que se negocia (o amigo que pede permissão de flertar com uma mulher que "já foi de um amigo"), está no palco principal quando homens trocam palavras sobre a convicção de que a tristeza de um homem é acompanhada pela felicidade da mulher. A morena deve dançar em paz, não simplesmente porque é mulher, mas para agradar, novamente, "os mil homens sempre tão gentis".
As mulheres que os homens de Chico desejam "amam demais" e estão dispostas a adorar pelo avesso. Dispostas a obedecerem, como de costume, todos os comandos dos homens. Mais do que as mulheres, eles desejam espelhos que lhes apresentem a medida do seu poder. Nessa perspectiva, o feminino em Chico é também e sobretudo o seu lado mais masculino. O masculino que é estereotipado nos homens que não cuidam, não choram e, claro, mentem.
* Érico Andrade é filósofo, professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, crítico de cinema e sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco
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