O 'Bruxo' usa piano, tamanco, flauta, colher e berrante para criar melodias das 18 faixas inéditas. Até silêncio o inspira
Por Ana Clara Brant
Aos 81 anos, Hermeto Pascoal garante: 'A cabeça funciona que é uma beleza'
(foto: Bárbara Cabral/Esp.CB/D.A.Press)
Os sons, sobretudo da natureza, sempre fascinaram Hermeto Pascoal. Quando menino, no interior de Alagoas, ele “compunha” os mais variados tipos de ruídos. Com o canudo de mamona de jerimum, fazia um pífano e tocava para os passarinhos. Na lagoa, passava horas fazendo música em parceria com a água. O material do avô ferreiro era pendurado num varal. E ali ficava Hermeto, tirando sons.
“O som está em todos os lugares, até no silêncio. Som é tudo. Só para você ter um exemplo, quando a gente vai para o topo da montanha e fica ali parado, o que escutamos é muito mais forte do que qualquer instrumento. É só se deixar levar. É preciso sensibilidade para perceber isso”, filosofa o compositor e multi-instrumentista.
Não poderia haver título mais apropriado do que No mundo dos sons para batizar o álbum recém-lançado pelo Selo Sesc, reunindo, depois do intervalo de 15 anos, o “Bruxo” e seu grupo. Contando com um time de primeira – Itiberê Zwarg, Rafael Altério, Fabio Pascoal (filho de Hermeto), Ajurinã Zwarg, André Marques, Jota P., Daniel Tápia, Flavio Scubi de Abreu, Olívio Valarini Jr., Thiago Baggio, Amanda Desmonts e Gregory Fenile –, o disco duplo traz 18 faixas inéditas. Boa parte delas presta homenagem a lugares (Viva São Paulo! e Salve, Pernambuco percussão!) e, principalmente, a pessoas – entre elas, Tom Jobim, Carlos Malta, Edu Lobo, Chick Corea, Astor Piazzolla, Miles Davis e Ron Carter.
“Quando a gente estava gravando, sempre me lembrava de alguém que queria homenagear, estivesse vivo ou não. Quer dizer, vivo todo mundo está. As pessoas que não estão mais neste plano estão vivas de outra maneira”, garante Hermeto.
A última faixa – Rafael amor eterno – é dedicada a um “anjo”: Rafael, bisneto dele e neto de Fabio Pascoal. O menino morreu com apenas 3 anos, em 2016. “Ele estava tomando banho de piscina quando, de repente, pediu para ir para o colo do vovô Fabio, meu filho. O Rafa comentou que estava meio cansado e acabou nos deixando. Deus o levou... Faço um solo de piano e ainda colocamos um áudio dele falando. Ficou uma coisa bem bonita”, revela.
O disco já está disponível nas plataformas digitais de streaming. Os shows de lançamento, no Sesc Pompeia, na capital paulista, estão marcados para 12 e 13 de agosto. Na próximas semanas, o CD físico chegará às lojas. Favorável às novas tecnologias, Hermeto acredita que o sistema da música digital só veio facilitar as coisas. “Ainda mais no caso de vocês, da imprensa. Se fosse esperar o disco chegar aí (na redação) via Correios, ia demorar demais. Você já baixou lá no seu computador, escutou. É prático demais, muito interessante. A única coisa que não acho muito legal nessa história de tecnologia é tocar em algo ligado ao eletrônico. Isso não dá pra mim. Para tirar som, tem que ser algo mais tangível, físico mesmo”, afirma.
TAMANCO
No novo disco, a experimentação se faz presente mais uma vez. Entre os “instrumentos” utilizados por ele há piano, flauta, triângulo, bateria e pandeiros, mas também bacias, panelas de barro, bonecos, colheres de plástico, apito, berrante, canos de alumínio e até tamanco de madeira.
Por falar em objetos inusitados, desde que aprendeu teoria musical, Hermeto escreve partituras em qualquer coisa que vê pela frente. Qualquer mesmo: guardanapo, abajur, bandeja, copo, cartolina, chapéu e até assento de vaso sanitário.
“Meu processo de criação sempre foi pegar as coisas e sair tirando som. Quando aprendi teoria, as músicas iam surgindo na minha cabeça e queria dar vazão a isso. Escrevia as partituras onde dava, em qualquer objeto. Meu filho até sabe: quando a gente chega num restaurante, tem que esconder os guardanapos. Senão já viu... (risos). Pra você ter ideia, a tampa da privada deu três músicas, que ainda não foram gravadas. Uma nas beiradas, outra embaixo e a terceira composição no encosto”, diverte-se.
Com 81 anos de vida – completados em junho –, Hermeto Pascoal assegura: a saúde está ótima. Vez por outra, sente um pouco de dor nos dedos. Por isso, tem de fazer exercícios frequentemente. “Minha vista é incrível. Perdi meus óculos há um tempinho, foi quando percebi que não estava precisando mais deles. Conseguia enxergar tudo. E a minha cabeça funciona que é uma beleza”, ressalta.
RAPADURA DIET
Mesmo a diabetes, descoberta há uma década, não é empecilho para nada. Aliás, ele adora doces. “Minha família tinha muita gente diabética. Só fui descobrir com 71 anos, então agradeço a Deus. Demorou bastante. Hoje, esses produtos diet facilitam muito. Continuo tomando o meu vinhozinho, mas pena que ainda não inventaram a rapadura diet. O dia em que fizerem, vou buscá-la onde for”, avisa.
Produzindo a todo vapor – tem agenda cheia para divulgar No mundo dos sons e lança outro disco em outubro, dessa vez com uma big band –, Hermeto diz que o segredo é não premeditar nada. “A gente tem que deixar fluir, sem pensar em nada, apenas sentir. Faço música desde que nasci, sempre com esse processo. Modéstia à parte, minha música é sempre atual. O negócio é esse: intuir e sentir”, conclui.
NO MUNDO DOS SONS
. Hermeto Pascoal & Grupo
. 18 faixas
. Selo Sesc
. Disponível nas principais plataformas de streaming
. CD físico: R$ 30
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