24 - O místico Herivelto
No começo da carreira, Herivelto tinha um amigo muito chegado chamado Barbosa. Mulato de temperamento doce e gentil, Barbosa “recebia” o Pai Joaquim . Meu pai gostava de contar que numa noite, incorporado, ele disse: “Corre pra casa, corre agora mesmo, Herivelto, porque você acaba de receber um presente”. Sem titubear, ele foi para casa e lá teve a notícia de que eu acabara de nascer.A devoção de Herivelto à umbanda (e ao Pai Joaquim Mina) tornou-se um elo entre ele, a família e muitos amigos. A umbanda sempre teve um papel importante tanto na vida de meu pai como na de minha mãe. Quando nasci, eles apenas viviam juntos. Embora meu padrinho Benedito Lacerda tivesse insistido para que casassem, o que realmente o convenceu foi a ordem espiritual dada pelo Pai Joaquim . Recebida através do Barbosa, mandava meu pai casar. Isso significa que, mais do que o amor por minha mãe ou o respeito pela moral vigente, o fator de-terminante foi a obediência às suas crenças religiosas, a uma “ordem superior”. Essa obediência às leis espirituais control-ou toda a vida de meus pais, principalmente a de Herivelto. Ele era muito crédulo. Após a morte de Barbosa, seu líder espiritual, acabou “iniciando” Lurdes na umbanda. Ao longo dos anos, ela foi desenvolvendo cada vez mais o seu canal mediúnico e se tornou uma das mais concorridas mães de santo do Rio e a chefe espiritual de um centro espírita em Realengo, construído por meu pai. Muito íntegro em sua devoção e real-mente envolvido na tarefa de fazer caridade espiritual, Herivelto atraía para o centro pessoas de todas as camadas sociais e do mundo da música. Não foram poucos os artistas que procuraram meu pai e Lurdes nos momentos críticos. Ela havia se tornado a guia espiritual de muita gente e a casa deles na Otávio Correa vivia cheia. A notícia das graças alcançadas por meio do trabalho de Lurdes trazia pessoas de todas as partes, até do exterior. O trabalho espiritual dos dois angariou amizades e carinho entre as pessoas beneficiadas. Houve inclusive uma situação muito difícil para eles, em que puderam ter a chance de sentir todo o afeto e gratidão das pessoas. Foi quando a saúde de Lurdes se complicou e seu cardiologista aconselhou uma cirurgia delicada para a época e pouco difundida no Brasil: a colocação de ponte de safena. Nesses casos, recorria-se ao mais destacado centro cardiológico da época, instalado em Houston, nos Estados Unidos. Lurdes deveria ser operada por um dos grandes cardiologistas do mundo. Aí começou outro drama: a falta de dinheiro. Meu pai tinha uma vida financeira limitada a shows esporádicos e aos direitos autorais — para vergonha nacional, inexpressivos. Não havia como levantar tanto dinheiro. Pelo menos era o que ele pensava… Rapidamente, espalhou-se pelo centro em Realengo e pela Urca que agora eram eles que estavam precisando de ajuda financeira. E as pessoas que sempre receberam conforto e ajuda espiritual dos dois queriam saber como podiam ajudar a salvar Lurdes. Foi uma loucura. Toda a ajuda recebida nessa época por eles foi muito importante, mas duas pessoas se destacaram . Primeiro, uma grande amiga de Lurdes, do meu pai e também minha, Dulce Veloso. Não tendo grana viva, não se conformou e trouxe um saco cheio de joias, dizendo que usassem tudo. Vendessem, penhorassem, sem se preocupar em devolver tão cedo. Outra pessoa que surpreendeu com seu gesto foi Chico Anysio. Ele morava em frente à casa de meu pai na Urca e frequentava o centro. Quando soube do problema que atravessavam, chamou meu pai em sua casa, ofereceu um cheque em branco, só assinado, e disse: “Herivelto, é para a operação da Lurdes. Primeiro veja quanto tem no banco; então, pode limpar a minha conta”. Assim, Lurdes pôde ir a Houston fazer sua bem -sucedida cirurgia. De volta ao Brasil, continuou o trabalho espiritual. Nossa família será eternamente grata a todos os que puderam auxiliar naquele momento, seja com dinheiro ou participando da corrente de orações que se formou. Meu pai fazia muita questão de ver todos os filhos no centro, vestidos de branco, descalços e batendo cabeça. Alguns se identificaram com o culto, como Hélio e Yaçanã. Ela, inclusive, tornou-se seguidora de Lurdes, dedicando-se também ao trabalho de mãe de santo. Após a morte de meu pai, a direção do centro ficou em suas mãos. Mas Hélcio aparecia muito pouco, e Bily, Newton e eu íamos mais para agradar-lhe. Eu, particularmente, apesar de ser um homem crente em Deus e espiritualizado, nunca descobri no centro de meu pai e de Lurdes as respostas às questões e aos problemas que me angustiavam . Ao contrário, sempre encontrei mais bálsamo para minhas dores em outros es-paços, principalmente em estágios mais diferenciados de espiritualidade, como a filosofia oriental. Em busca do autoconhecimento, encontrei no Oriente um caminho mais estreito para Deus. Isto é, dentro da filosofia oriental, você se relaciona diretamente com Deus. Nesse contexto, não se depende de tantos intermediários, como padre, pai ou mãe de santo. Assim, ficam eliminados os “humanos”, tão sujeitos a erro, que provocam muita confusão entre os dois mundos. A cada dia, tento estreitar mais essa relação com Deus. Afinal, Ele está em mim e eu estou Ele. Vejo que há uma grande tendência nos líderes espirituais de se sentirem meio Deus. Essa sensação de onipotência se alimenta muito da carência e da fragilidade das pessoas em seus momentos difíceis. A maioria não está preocupada com o autoconheci-mento, porque isso implica ter força para não precisar pedir soluções a quem quer que seja. Implica fazer suas próprias escolhas e, consequentemente, ter responsabilidade com elas. Lei de causa e efeito. Com o passar do tempo, Lurdes percebeu a força de seu trabalho espiritual junto a meu pai e passou a usar isso para assumir um controle sobre tudo e todos, na esfera de par-entes e amigos de meu pai. Perdeu os limites entre o real e o espiritual, adotando uma posição de dona da verdade, em nome de seu dom . Não questiono o dom espiritual, mesmo porque presenciei muita gente ser confortada por esse dom, nem falo do trabalho de Lurdes junto aos estranhos. O que questiono é ela querer controlar a vida de to-dos na família em nome de suas privilegiadas informações do além . Passou a ser a rainha-mãe, a quem todos tinham de bater cabeça e submeter à análise seus problemas, recebendo soluções nem sempre tão condizentes com o que o assunto pedia.
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