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terça-feira, 11 de julho de 2017

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Leo Tomassini


- O que é canção para você?
Sempre que penso em canção me vem à cabeça a ideia da terceira margem do rio. 
É muito comum considerar a canção como a junção de música e letra. Canção é música com poesia, poesia musicada. Não gosto desta ideia de união de duas partes. A canção é um todo indivisível, uma síntese que se dá. Muitas vezes o processo se dá exatamente como um casamento de partes, muitas vezes suas partes podem ter vida independente da outra, mas a canção, pra mim, é a terceira margem do rio. Quando estudamos poesia nos encontramos com o gênero lírico, representado por uma lira, lá na origem a poesia surgiu colada à música, já era canção. O que chegou pra gente foram só as palavras, a letra. 
Engraçado nisso tudo é pensar no mito de Hermes, como diz Chico, "O deus sonso e ladrão Fez das tripas a primeira lira que animou todos os sons". 
Guinga me disse que Tom numa conversa com Chico sentenciou: Chico, mau compositor imita, bom compositor rouba. 
É curioso pensar que um dos maiores da canção do mundo se filie tanto aos princípios do deus ladrão que trouxe ao mundo a música. o Mito de Hermes, por sinal, é sensacional, o melhor de tudo é que quem fica com a fama é o Bonitão Apolo. Quem carrega a Lira é Apolo! 
A forma canção até hoje é muito bem compreendida e amada pelo povo de todo mundo, no entanto, quando pensada por músicos e poetas muitas vezes encontra incompreensões absurdas. Canso de ouvir de músicos que canção é uma manifestação menor da música, e ao mesmo tempo, poetas dizem que letra é uma manifestação menor da poesia (desmemoriados da origem dessa história toda!). Essas duas visões equivocadas, a meu ver, se ancoram na ideia de que a canção é o casamento de duas partes. A canção é feita de música e poesia, mas é mais do que isso, tem uma amálgama, uma terceira margem que rompe e faz surgir uma outra coisa. 
No filme Coração Vagabundo de Fernando Grostein Andrade há uma passagem em que Caetano é confrontado com uma consideração de Hermeto Pascoal sobre sua obra tropicalista: - Caetano como poeta é um grande poeta, como músico é um musiquinho! 
Seguindo a linha de raciocínio do músico genial Hermeto a obra de Dorival Caymmi seria taxada de que? Naif e primitiva? 
Há tantas canções de letras simples, ou até mesmo simplórias, que são absolutamente geniais, há tantas letras densas, rebuscadas, incríveis que são canções horríveis. Há tanto músico fera que não tem o menor talento pra fazer o formato canção. Enfim, esse exemplos só nos mostram a especificidade dessa forma que arrasta multidões pelo mundo.

- De onde vem a canção?
A canção vem da tristeza que encontra um jeito de balançar. O grande poder transformador. Vem quando bate uma saudade triste.
Acho que para a grande maioria dos cancionistas a canção vem de uma resposta para driblar a dor, a solidão, a nostalgia. O samba é filho da dor, o grande poder transformador. Mas há outros caminhos, Jorge Ben Jor é a afirmação da alegria, da felicidade, de uma força contagiante e dançante. 
Do meu pequeno ponto eu posso dizer que minhas canções vieram dessa vontade de driblar a dor. Comecei a compor tardiamente, aos 34 anos de idade depois do fim de meu casamento. Todas as minhas canções foram absolutamente imprescindíveis para mim e minha vida. Sem elas eu não sei onde estaria. 
Fico pensando nos grande sambas de carnaval dos anos 30 e 40 e acho muita graça. "Agora é cinza", por exemplo, a letra é tão triste, mas a música é de uma felicidade contagiante. É um gesto contundente de afirmação da vida, de zombar da dor. É lindo.

- Para que cantar?
Cantar bem é uma das melhores formas de ser feliz. O difícil é conseguir cantar bem, esse desejo de superação às vezes atrapalha bastante e faz do cantar muitas vezes uma coisa sofrida. Mas quando você consegue acertar na veia é uma felicidade suprema. E é muito melhor ser alegre que ser triste.

- Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes?
João Gilberto. Pra quem acompanha a história do canto popular do Brasil e do mundo, o velho baiano é uma referência, um divisor de águas. Um gesto que até hoje ecoa, uma luz que ainda vai brilhar por muitos séculos. Paulinho da Viola. Uma das vozes mais bonitas do mundo. Eu sou Paulinho da Viola Futebol Clube. Caetano Veloso. O maior artista da música do Brasil. Há grande compositores como ele, grande intérpretes como ele, grandes palcos como o dele, grandes pensadores da música com ele, mas ninguém no Brasil conseguiu ser tudo isso tão bem. Mas não é só isso, o gesto estético original depois da Bossa Nova tem em Caetano uma de suas maiores representações.














* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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