19 - A vida com Lurdes
Meu pai, ao sair da Urca, foi morar sozinho num apartamento pequeno na rua Santa Clara, em Copacabana. Mas logo estava mor-ando com Lurdes, morena de olhos verdes e personalidade forte, em Santa Teresa, na avenida Almirante Alexandrino, 292. Era um apartamento de três quartos, onde Bily e eu passávamos alguns fins de semana. Embaixo morava o Ubirajara, pai do cantor Taiguara, um grande instrumentista (tocava bando-neon), que conheci melhor mais tarde, ao trabalharmos juntos. Nessa mesma rua moravam as irmãs de Lurdes, Conceição e Jane. Eram pessoas maravilhosas — imparciais, inteligentes e muito sábias ao se relacionarem com a nova vida da irmã ao lado de Herivelto. Tratavam a mim e a Bily com um carinho e uma compreensão fora do comum . Junto com a mãe, dona Sílvia, cuidavam de Newton, filho de Lurdes. Até hoje não consegui entender por que Newton não vivia com a mãe. Ele tinha paixão por meu pai, que, afinal, o conheceu muito pequeno ainda. Mas Herivelto sempre o tratou com distância. Era como se tivesse uma certa reserva em tratá-lo com carinho, por ser filho de outro homem . Considerado por nós desde o começo como irmão, Newton tem muitas das qualidades da mãe: personalidade calma e serena e um equilíbrio interior que contribui para neutralizar qualquer problema entre os irmãos. Seu caráter e bom coração sempre me encantaram . Com o passar dos anos, ele, com esse temperamento, terminou por conquistar uma certa amizade com meu pai. E, principalmente, seu respeito como profissional. Meu pai confiava a Newton, que é economista, seu imposto de renda e a administração de seus investimentos. Quando soube que minha mãe já havia se mudado da Urca, Herivelto voltou com Lurdes para o bairro que adorava. Durante três anos morou na rua Joaquim Caetano, 3. Depois, alugou uma casa na Otávio Correa, 84, que mais tarde comprou e onde viveu o resto da sua vida. Hoje, como o bairro está tombado, há na porta dessa casa uma placa colocada pela prefeitura informando que ali morou uma grande personalidade do Rio: o compositor Herivelto Martins. Lurdes tinha uma personalidade muito diferente da de minha mãe. Dona de um timbre de voz grave, falava muito pausada-mente. Com seu jeito calmo mas firme, conseguiu uma verdadeira façanha com meu pai: raras vezes ele falou mais alto com ela. Meu pai tinha com Lurdes uma conduta nada semelhante à que teve com minha mãe. Quando tinham algum problema, era resolvido dentro do quarto e ela sempre mantinha sob seu controle o clima da discussão. Muito racional, Lurdes conduzia o casamento de forma inteligente e sabia usar seu domínio sobre meu pai com serenidade e firmeza. Tudo isso, acredito, era influência da educação diferenciada que recebera como filha de uma família de classe média alta do Sul do país, região mais privilegiada cultural-mente. Seu pai era um homem de negócios em Porto Alegre, proprietário de muitos imóveis, o que permitiu a ela que tivesse uma formação de qualidade, além de certa tranquilidade para viver no Rio. No início do relacionamento dos dois, havia muito companheirismo da parte dela. Saíam juntos, ela ia aos seus shows, dirigia o carro, ajudava-o a buscar os crioulos e cabrochas da escola de samba. Participava real-mente da vida do artista Herivelto e da vida do homem que buscou nela a cura de suas feridas. Coragem diante da vida era uma característica bem forte de Lurdes. E isso ela ofereceu ao meu pai. Em nenhum momento esmoreceu diante dos problemas enfrentados por ele. Foi uma grande companheira, segurando uma barra muito pesada na fase do Diário da Noite e diante das depressões de meu pai. Sua postura de mulher bonita e fina acompanhava Herivelto a todo lugar: do Catete, visitando Getúlio, às festas na casa de Roberto Marinho. Fosse nos palácios ou nos botecos, Lurdes, com seus olhos verdes, fala mansa e uma tonalidade de voz que lembrava Marlene Dietrich, ajudava a atenuar a imagem de um homem marcado por um momento terrível de descrédito junto ao público. Ela ajudou muito na recuperação social e familiar de meu pai. Organizou sua vida, seus compromissos profissionais. Contribuiu para que ele readquirisse, em parte, a credibilidade, depois que foi se apa-gando devagarzinho a história descrita no Diário da Noite. Digo em parte porque a marca de Dalva jamais o abandonou total-mente. Bem, não foi apenas a marca de Dalva, mas sim o que restou da análise feita pelo povo do que foi a vida dele com minha mãe. Com Lurdes meu pai teve três filhos: Fernando, Yaçanã e Herivelto Martins Filho, apelidado por nós de Louro. Quando nasceu o primeiro, fiquei encantado. O Fernandinho era um bebê lindo e foi uma criança dócil e inteligente, de quem eu gostava muito. Curtia cuidar dele quando Lurdes saía com meu pai. Nessa época, vindo de São Paulo, estava morando com eles na casa da Urca. Cuidei do mesmo jeito de Yaçanã, trocando fraldas e dando comida na hora certa. Meu pai tinha uma relação estranha com os filhos e depois com os netos. Enquanto estivessem entre a época de colo e os cinco anos, falassem errado e fizessem gracinhas, ele adorava. Pegava no colo, brincava, curtia de verdade. Depois dessa fase, começava a inverter o tratamento: palavras duras, repreensões exageradas e, finalmente, abandono e até desprezo. Todos observamos esse comportamento dele com as crianças da família. Foi assim com Fernando e com Louro, foi assim com os filhos do Fernando, May ara e Fernando (que continuaram mor-ando na Urca depois da morte do pai). Era assim com todas as crianças. Só não foi assim com Yaçanã. Pai de seis meninos, meu pai tinha loucura para ter uma menina. E, quando nasceu sua única filha, ela não recebeu o mesmo tratamento dispensado aos filhos. Meu pai sempre a mimou, tratando-a sem a secura que usou conosco. Mas, apesar desse tratamento diferenciado, Yaçanã não foi especialmente carinhosa com ele. Ao contrário, era muito mais grudada com a mãe. Fernando era inteligente e brilhante, além de muito na dele. No entanto, foi excessiva-mente protegido e dominado pela mãe. Acredito que, ao longo do tempo, ele vivenciou uma sensação meio paradoxal: de desamparo por parte do pai e de controle sufocante por parte de Lurdes. Talvez tenha sido esta a razão de ele entrar no mundo das drogas. Era muito desequilíbrio para um garoto não tão forte assim. Lurdes tinha verdadeiro fascínio por tudo o que fosse relacionado com a medicina. Acho que sua saúde delicada (era cardíaca) despertou uma grande intimidade com esse mundo e seus assuntos. Tinha amigos médicos em quase todos os hospitais. Era expert em bula de remédio, sabia-as de cor. Receitava remédios para quem quer que fosse. Discutia com seus conhecidos as receitas dadas pelos médicos, chegando a discordar do tratamento que prescreviam. Acredito que essa fixação tenha feito com que Louro cursasse medicina, mais para satisfazer a mãe do que por vocação. De todos os meus irmãos, Louro sempre foi o de maior musicalidade. Tinha grande talento para a vida artística, mas não recebeu nenhum estímulo nesse sentido. Chegou a participar de uma novela na Globo, Minha doce namorada, quando tinha uns dez anos. A permis-são foi dada mais pelo status do trabalho na emissora do que pelo reconhecimento de sua vocação. Ao se tornar médico, Louro jogou fora um talento fora do comum; no seu sangue, corre mais música do que medicina. Depois que meu pai passou a viver com Lurdes, muita coisa em relação a nós, filhos do casamento anterior, se modificou. Já não tínhamos como falar com ele diretamente, fosse porque ela quisesse ajudar em alguma decisão, ou para que ele não se aborrecesse, ou porque qualquer atitude ou decisão dele tivesse de passar pelo seu crivo. O fato é que tudo o que queríamos com meu pai passava primeiro por Lurdes. Ironicamente, isso criou uma distância in-crível entre ele e nós (Bily e eu). O tempo passou, já não éramos crianças. Mesmo as-sim, quando queríamos falar com ele, Lurdes tinha de estar por perto, ouvindo tudo, sabendo de tudo. Sabíamos que não adi-antaria nada falar com ele a sós. De qualquer forma, ele levaria o assunto para ela antes de nos dar qualquer resposta ou decisão. Tudo isso comprometia a intimidade com o nosso pai. Ele, por sua vez, poderia, se quisesse, ter mudado esse quadro. Era só sair da situação cômoda de protegido e enfrentar a questão de ser pai. Era só ser o Herivelto de antes. Mas já não era. Se eu tivesse de alugar um apartamento e precisasse de meu pai como fiador, primeiro precisava falar com Lurdes, adiantar todos os detalhes. Isso sem contar as vezes em que ela simples-mente pegava o papel, levava até ele e voltava com a assinatura, sem que ao menos pudéssemos conversar a respeito ou até mesmo pedir uma orientação a ele. Ao mesmo tempo, Lurdes assumia uma postura de boa madrasta e estimulava a con-vivência de todos nós com meu pai, mas sem oportunidade para uma real intimidade, sempre num ambiente de muita gente. Ela mantinha a casa aberta, organizava grandes festas nas datas comemorativas — aniversário dele, Dia das Mães, Páscoa, Dia dos Pais e Natal. Acompanhando o desejo de far-tura de meu pai, estava sempre pronta para receber todos nós, mais esposas e filhos. A família era grande e qualquer reunião virava uma festa. No Natal, então, era uma loucura. A ceia de meu pai era famosa na Urca, porta aberta mesmo. Ele chegava a receber, entre familiares e amigos, mais de cem pessoas, com direito a performance de Papai Noel para as crianças, feita por atores amigos, e uma imensa árvore com os presentes. Com o passar dos anos, a saúde de Lurdes se tornou muito delicada. Além de cardíaca e safenada, tinha um problema sério de insônia e se tornou dependente de remédios fortíssimos para dormir. Com o tempo, esses remédios não surtiam mais efeito, apenas a deixavam grogue. A vida de meu pai com Lurdes, em que pese ele dizer que ela era o grande amor da sua vida, escondia uma verdade gritante. Ele se tornou um burguês inflexível, um ausente nas modificações que se processavam à sua volta. Daquele homem que influenciou seu tempo, cheio de imaginação e criatividade, capaz de movimentar um país com música e letra, que fazia dos seus erros a alavanca de grandes conquistas, restaram apenas a acomodação e a tristeza de ter de dormir sozinho. Sua mulher tomava toneladas de sedativos (Mogadon, Ropy nol e qualquer outra novidade surgida no mercado) e ficava até de madrugada dando voltas pela casa, completamente dopada, sem conseguir dormir. A situação entre Lurdes e meu pai era contraditória. De um lado, viviam de mãos dadas e à tarde, depois do almoço, tinham de deitar um pouco. Lurdes chegou a me dizer: “Teu pai não é mole. Tem de ser de noite e muitas vezes à tarde também . Às vezes, tenho de fingir que estou dormindo, senão não dá pra aguentar!”. Por outro lado, houve algo entre eles que nenhum filho conseguiria explicar. A casa, o centro espírita, a família os uniam . Mas eles não se uniam mais em suas solidões. Ninguém vai conseguir honestamente explicar o que houve entre eles, para se tornarem tão sozinhos e ainda se dizendo apaixonados.
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