Por Marco Napolitano*
Resumo – A proposta de abertura do regime, elemento central da agenda política do regime militar brasileiro na segunda metade dos anos 1970, teve um grande impacto na cena cultural protagonizada pela oposição civil ao regime. A fase da “distensãoabertura” coincidiu com a consagração comercial e cultural da Música Popular Brasileira (MPB) que, desde os anos 1960, desempenhava um papel importante na cultura de esquerda. Com o abrandamento da censura, esse gênero musical tornou-se uma área de expressão artística ainda mais privilegiada pela oposição, porta-voz dos projetos, dilemas e utopias das classes médias críticas ao regime. Neste artigo, analisarei o papel histórico e os circuitos socioculturais ocupados pela MPB no contexto da “abertura” política. palavras-chave: Música brasileira: história, Brasil: música e política.
Abstract – The idea of “liberalisation”, a central element of the political agenda of the Brazilian military regime in the second half of the 1970s had a major impact on the cultural scene, which had previously been dominated by the civil opposition to the regime. The phase of “decompression-opening” coincided with the commercial and cultural highpoint of Brazilian Popular Music (MPB) that, since the 1960s, played an important role in the culture of the political left. With the easing of censorship, this musical genre became even more a privileged area of artistic expression, a mouthpiece for the ghosts, desires and utopias of the middle class that was critical of the regime. In this work, we analyze the variables of the Brazilian music scene of the second half of the 1970s, the various readings transmitted by the songs of MPB and its main socio-cultural settings.
Keywords: Brazilian music: history, Brazil: music and politics.
Na propaganda de aparelho de som da alta tecnologia, publicada na revista
IstoÉ, em 23 de junho de 1977, lia-se a seguinte chamada: “Para
ouvir canções de protesto contra a sociedade de consumo, nada melhor
do que um Gradiente financiado em 24 vezes”.
Essa provocação publicitária, de certa maneira, expressava a condição paradoxal
da música popular brasileira naquela década marcada pelo autoritarismo:
foco da resistência e da identidade cultural de uma oposição civil ao regime
militar, as canções rotuladas como parte da “MPB – Música Popular Brasileira”
eram extremamente valorizadas pela indústria fonográfica brasileira (Napolitano,
2001). Esse quadro ficaria ainda mais contrastante após 1976, quando se
consolidou a “política de abertura”,1
do regime militar, como ficou conhecida
a estratégia de distensão (e reaproximação política) entre o regime militar e os
setores liberais da sociedade civil, levada a cabo pelos dois últimos governos militares
(Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo). Consagrada como expressão
da resistência civil ainda durante os anos 1960, a MPB ganhou novo impulso
criativo ao longo do período mais repressivo da ditadura, tornando-se uma espécie
de trilha sonora tanto dos “anos de chumbo” quanto da “abertura”. No
período que vai de 1975 a 1982, os artistas ligados à MPB afirmaram-se como
arautos de um sentimento de oposição cada vez mais disseminado, alimentando
as batidas de um “coração civil” que teimava em pulsar durante a ditadura. A
MPB tornou-se sinônimo de canção engajada, valorizada no plano estético e
ideológico pela classe média mais escolarizada, que bebia no caldo cultural dessa
oposição e era produtora e consumidora de uma cultura de esquerda (Miceli,
1994).
Em 1970, sob o impacto do exílio e da censura, Caetano Veloso, em tom
premonitório, fez a seguinte declaração ao Pasquim: “O som dos anos 70 talvez
não seja um som musical. De qualquer forma o único medo é que esta talvez
venha a ser a década do silêncio”.
Já em 1980, a crítica musical percebia o quanto o contexto autoritário e
a mística da década anterior haviam prejudicado a avaliação mais fria sobre a
cena musical brasileira: “Curiosa década, estes anos 70. Depois da fermentação
crescente dos 60, entramos nela num clima de expectativas: e agora? E depois? E
ficamos tão encharcados de ansiedade que nem vimos a década passar” (Bahiana,
1980, p.151).
Entre uma e outra fala, situadas nas duas pontas da década de 1970, notamos
a dificuldade de entender a historicidade específica da cena musical brasileira,
pressionada entre a criatividade exuberante da década anterior e suas demandas
políticas que fizeram da canção brasileira uma das mais vigorosas expressões
do pensamento na esfera pública, ainda que perpassada pela lógica de mercado
(Napolitano, 2001).
A reflexão acadêmica proposta ainda durante o período de consolidação
da transição democrática também parece não saber como definir a cena musical
do período:
Os anos 70 mostraram a consolidação e maturação dos ídolos de maior calibre
da década anterior, mas não acrescentaram nenhum dado realmente novo à
tradição da MPB. Menos pelas canções e mais pelas posturas dos nossos dois
mais importantes compositores (Chico Buarque e Caetano Veloso), a discussão
durante todo o período foi marcada pelas “patrulhas ideológicas” [...] década
sombria, poucas alegrias e muita luta política no sentido de redemocratizar o
país. (Aguiar, 1994, p.152)
Nessa lógica, o rock é que seria a música paradigmática da abertura. Minha
proposição é um pouco diferente, talvez o rock brasileiro talvez tenha sido
a música da transição democrática da Nova Republica, e não a da abertura polí-
tica, stricto sensu, ou seja, aquela proposta pelo próprio regime militar. Portanto,
a imagem do período, tanto na memória como na história, é de uma cena
musical marcada pela constante ameaça do silêncio imposto pela censura, pelo
domínio das fórmulas de mercado e pela preponderância do político sobre o
estético.
Neste artigo, tentarei mapear a grande complexidade que envolve a cena
musical dos anos 1970, particularmente o gênero MPB. Longe de ser um mero
desdobramento passivo das lutas políticas do período ou dos movimentos musicais
da década anterior, a MPB dos anos 1970 experimentou o auge da popularidade
e maturidade criativa, elementos que, por sua vez, não traduzem
diretamente nem uma penetração universal nas audiências populares, nem uma
autonomia estética idealizada voltada para poucos. A canção engajada, em todas
as suas variantes, não apenas dialogou com o contexto autoritário e as lutas da
sociedade civil, mas ajudou, poética e musicalmente falando, a construir um
sentido para a experiência social da resistência ao regime militar, transformando
a “coragem civil” em tempos sombrios em síntese poético-musical. Os dilemas e
contradições da canção em geral, e da MPB em particular, expressam os dilemas
e contradições dessa mesma resistência civil no seio da classe média brasileira,
mais afeita à tradição radical do que aos impulsos revolucionários (Candido,
1990). Esses dilemas poderiam ser traduzidos em equações de difícil resolu-
ção normativa: como manter a “boa palavra” circulando em tempos sombrios?
Como ampliar o leque de interlocutores e correligionários do campo estéticoideológico?
Como conciliar as benesses da modernização e do acesso ao mercado
com a atitude crítica às políticas do governo autoritário? Como falar às classes populares, vistas como sujeitos da história pela cultura de esquerda que lastreava
a MPB, sem os códigos e canais apropriados?
Podemos dizer que a canção popular dos anos 1970, situada dentro das
correntes identificadas pela crítica como sendo parte do guarda-chuva da MPB,
dividiu-se em dois períodos bem demarcados de expressão: entre 1969 e 1974,
poderíamos nomeá-la como “canção dos anos de chumbo”. Entre 1975 e 1982,
teríamos a “canção da abertura”. É claro, essas cronologias e rótulos são puramente
aproximativos e sujeitos a generalizações, sempre perigosas. Se a “canção
dos anos de chumbo” foi, marcadamente, uma canção que sublimou a experi-
ência do medo e do silêncio diante de um autoritarismo triunfante na política,
a “canção da abertura” será marcada pela tensão entre o imperativo conscientizante
da esquerda e a expressão de novos desejos e atitudes dos setores mais
jovens da classe média. A ansiedade coletiva por uma nova era de liberdade que,
todavia, ainda não havia chegado, transformando-se em iminência, experiência
limite entre dois impulsos nem sempre conciliáveis na tradição crítica: o éticopolítico
e o erótico. A era de violência extrema havia passado, mas a era de liberdade
ainda não havia começado. Daqui surge uma primeira hipótese sobre a
canção da abertura, pautada na percepção de um “entrelugar” que se manifestará
como expressão poético-musical e experiência histórica. Ao longo do artigo,
sem a pretensão de realizar análises de qualquer tipo, até por causa dos limites
deste texto, apontaremos um mapa de canções tomadas como índices dessas
questões, sintomas do mal-estar e das expectativas oriundas da experiência desse
entrelugar histórico.
No Brasil, antes mesmo de a MPB surgir nos anos 1960, a canção já tinha
consolidado seu lugar no mercado de bens culturais e na vida cultural cotidiana
dos brasileiros. As questões sociais e políticas sempre estiveram presentes na
pauta de temas abordados pela canção. Em todos os momentos da sua história,
a canção popular engajada fez:
cantar o amor, surpreender o cotidiano em flagrantes líricos-irônicos, celebrar
o trabalho coletivo ou fugir à sua imposição, de portar embriaguez, de dança,
de jogo com as palavras em lúdicas configurações sem sentido, de carnavalizar
a imagem dos poderosos. (Wisnik, 1980, p.14)
Foi dentro dessa tradição, anterior mesmo à canção engajada stricto sensu,
que a MPB dos anos 1970 alinhavou a chamada “rede de recados” contra a ditadura,
recados esses que expressavam a consciência e os desejos reprimidos das
coletividades que, ao tornarem-se canção, tomam consciência de si. Para Wisnik
(1980, p.8), o “recado” da música popular em tempos de ditadura não é nem ordem,
nem palavra, nem “palavra de ordem”. Nas palavras do autor, tratava-se de:
uma pulsação que inclui um jogo de cintura, uma cultura de resistência que sucumbiria se vivesse só de significados e que, por isso mesmo, trabalha simultaneamente com os ritmos do corpo, da música, da linguagem [...] a música popular é uma rede de recados, onde o conceitual é apenas um dos seus movimentos: o da subida à superfície. A base é uma só e está arraigada à cultura popular: a simpatia anímica, a adesão profunda às pulsações telúricas, corporais, sociais que vão se tornando linguagem.
As principais estratégias e formas poético-musicais para a realização dessa rede de recados se configuraram de maneira diferenciada, conforme os dois momentos históricos aqui citados. Na canção dos anos de chumbo, a expressão que predominou foi a de uma espécie de contraviolência simbólica da sociedade civil ante o terror de Estado, operação que se traduzia na sublimação poética do medo e na manutenção da palavra e da expressão lírico-subjetiva em circulação numa sociedade ameaçada pelo silêncio da censura e pela voz hegemônica do poder autoritário (Napolitano, 2009). Naqueles anos, ouvir uma canção, ainda que nos limites de um espaço privado, poderia ser um ato de consciência cívica e crítica, por meio do qual se realizava uma espécie de ritual de pertencimento à parte crítica da sociedade civil e negação dos valores inculcados pelo regime.
Alguns estilos pessoais, de autoria e performance, podem ser nitidamente reconhecidos, em que pese a riqueza e pluralidade do repertório pessoal desses mesmos artistas. Entre os compositores, temos a presença de algumas linhas de expressão poéticas, sintetizando as preocupações poéticas e políticas das suas obras naquele período.
Em Chico Buarque, a política surge como uma condição existencial e perpassa todas as esferas da vida privada e pública, sintetizando uma experiência do tempo que oscila entre a melancolia crítica e a euforia irônica. Nos dois LP que sintetizam a canção da abertura em Chico Buarque – Meus caros amigos (1976) e Chico Buarque (1978) –, as canções parecem oscilar por esses dois polos expressivos. Do primeiro, teríamos “Corrente”, “Meu caro amigo”, “O que será (a flor da terra)”, “Cálice”. Do segundo polo, “Homenagem ao malandro” e “Apesar de você”. Por sinal, essa canção, proibida durante os anos de chumbo, realizou-se socialmente na abertura, adquirindo o status de um samba-enredo cívico para um carnaval que nunca chegaria. Em Milton Nascimento e nos seus principais parceiros poéticos (Fernando Brandt, Ronaldo Bastos, Márcio Borges), o lirismo e a subjetividade se articulam ao engajamento, manifestando-se na forma do encontro interpessoal e numa afirmação humanista e afetiva Em Gonzaguinha, a “boa palavra”, imperativo ético que deve marcar a consciência política, explode numa poesia agônica, beirando o melodrama. Ivan Lins e Vitor Martins consagraram-se especialmente pela capacidade de criar figuras poéticas, alegóricas ou metafóricas, que sintetizaram a experiência, individual e coletiva, sob o autoritarismo. Morais Moreira, nome frequentemente esquecido quando se fala em MPB dos anos 1970, criou verdadeiras elegias à alegria popular, como base de uma sabedoria e de uma legitimidade que não poderiam ser barradas pela repressão. Aldir Blanc e João Bosco, donos de uma das obras mais contundentes (e consistentes) dos anos 1970, fundiram crônica social e poesia para retratar o cotidiano das classes populares sob o autoritarismo, afirmando ora a dignidade, ora a capacidade de ironia crítica do cidadão comum. Souberam, ainda, reciclar o tom épico para retratar as grandes lutas populares contra o poder opressivo. Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós ora utilizaram o sussurro como arma poética, ora também foram para o estilo épico e contundente, embora mais alegórico que a dupla Bosco/Blanc (como em “Nação” e “Canto das três raças”).
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* Marcos Napolitano é professor do Departamento de História da Universidade de São
Paulo. @ – napoli@usp.br
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