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segunda-feira, 22 de maio de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




17 - Destruímos hoje o que podia ser depois

Embora tenha sido meu pai quem decidiu se separar de minha mãe e mesmo já estando há alguns anos envolvido com outra mulher, isso não significou realmente o fim de um capítulo, como se poderia esperar. Ao contrário, foi o início de muitos outros capítulos. Meu pai não estava preparado para enfrentar a realidade de que minha mãe poderia sobre-viver sem ele. Ela era sua “cria”. O senti-mento de posse, pessoal e artística, desenvolvido por ele em relação a ela era muito grande. Afinal, eles aconteceram juntos. Cresceram juntos naqueles catorze anos. Para usar uma expressão muito em voga hoje, a formatação da vida de Dalva e Herivelto foi feita a dois. Não dá para falar de um sem o outro. Imagino que meu pai, apesar dos conflitos, sentia isso de uma maneira muito forte. Se sentimentalmente ele já estava substituindo-a por Lurdes, artisticamente a perda era irremediável para ele. Não se encontra mais de uma Dalva de Oliveira pela vida. Penso que ele torcia para que se tornasse verdade o que tantas vezes dissera à minha mãe, para amedrontá-la, quando brigavam: “Você não é nada sem mim . Eu inventei você. Não se esqueça disso, Dalva!”. Mas, apesar de toda a insegurança calcada por ele, ela tinha de enfrentar a sua estrada sozinha. E lançou, no começo de 1950, “Tudo acabado”, de J. Piedade e Oswaldo Martins:

Tudo acabado entre nós
Já não há mais nada
Tudo acabado entre nós
Hoje de madrugada
Você partiu e eu fiquei
Você chorou e eu chorei 
Se você volta outra vez Eu não sei
Nosso apartamento agora Vive à meia-luz
Nosso apartamento agora
Já não me seduz
Todo o egoísmo
Veio de nós dois
Destruímos hoje
O que podia ser depois


A letra da música caía como uma luva sobre a recente separação deles. O público, identificando o momento vivido por Dalva, fez da canção o primeiro grande sucesso de minha mãe sem meu pai. E parecia, aos fãs de minha mãe, uma resposta à música “Ca-belos brancos”, de meu pai e Marino Pinto, lançada antes. Apesar de ter sido composta muitos anos antes da separação, com o passar do tempo, por causa de sua letra, o público foi incorporando-a na briga musical. Devido à grande aceitação do público, a gravadora Odeon lançou outro disco com Dalva, poucos meses depois, no qual minha mãe cantava de um amigo deles e ex-par-ceiro de meu pai, Marino Pinto, em parceria com Mário Rossi, o bolero “Que será”:

Que será
Da minha vida sem o teu amor
Da minha boca sem os beijos teus
Da minha alma sem o teu calor
Que será
Da luz difusa do abajur lilás
Se nunca mais vier a iluminar
Outras noites iguais
Procurar
Uma nova ilusão não sei
Outro lar
Não quero ter além daquele que sonhei
Meu amor
Ninguém seria mais feliz que eu
Se tu voltasses a gostar de mim
Se teu carinho se juntasse ao meu
Eu errei
Mas se ouvires me darás razão
Foi o ciúme que se debruçou
Sobre o meu coração

Outro sucesso estrondoso! Meu pai não soube enfrentar esse sucesso que minha mãe alcançava sem ele e apelou. Foi aí então que estourou a grande guerra musical, quando meu pai escreveu em parceria com David Nasser a música “Caminho certo”:

Eu deixei o meu caminho certo
E a culpada foi ela
Transformava o lar na minha ausência
Em qualquer coisa
Abaixo da decência
Compreendi que es-tava tudo errado
E, amargurado, parti perdoando o pecado
Mas deixei o meu caminho certo
E a culpada foi ela
Sei agora que os amigos que outrora
Sentavam à minha mesa
Serviam sem eu saber
O amor por sobremesa
Acreditem, é muito fácil julgar
A infelicidade alheia
Quando a casa não é nossa
E é outro que paga a ceia

Este samba infeliz foi o estopim para que compositores do porte de Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, Alvarenga e Ranchinho, Lourival Faissal, Guaraná etc. tomassem as dores de minha mãe e compusessem desesperada-mente para dar a Dalva, com suas canções, uma resposta a Herivelto. No mesmo ano, 1950, minha mãe gravou, de Ataulfo Alves, a música “Errei, sim”:

Errei, sim
Manchei o teu nome
Mas foste tu mesmo o culpado
Deixavas-me em casa
Me trocando pela orgia
Faltando sempre com a tua companhia
Lembro-te agora
Que não é só casa e comida
Que prende por toda a vida
O coração de uma mulher
As joias que me dava
Não tinham nenhum valor
Se o mais caro me negavas
Que era todo o seu amor
Mas se existe ainda
Quem queira me condenar
Que venha logo
A primeira pedra me atirar

Foi tanto o sucesso de “Errei, sim” que meu pai passou a odiar Ataulfo e por pouco não chegaram às vias de fato. Aliás, iria ser engraçado, Herivelto, baixinho, e Ataulfo, com aquela altura toda… Conta-se que Ataulfo já havia composto “Errei, sim” alguns anos antes e, quando mostrou à minha mãe, ela imediatamente se identificou com a música e quis gravá-la. A amizade desses compositores com meu pai ficou muito abalada. Ele se sentia traído por eles. Para Marino Pinto, inclusive, fez, em parceria com Benedito Lacerda, “Falso amigo”:

Me trocaste por dinheiro
Eu que te considerava meu amigo verdadeiro
Aproveita
Gasta bem o que ganhaste
Eu não quero ter notícia
Que como Judas te portaste
Teus sambas são verdadeiras infâmias
Crivados só de calúnias
Contra o amigo leal
O vinho que bebeste à minha mesa
Fez revelar a beleza
Sem um disfarce sequer
Pantera de unhas encurvadas
Amigo das madrugadas
Um vagabundo qualquer

Sei que foi Marino quem lhe causou mais mágoa, pois eles eram realmente muito unidos. E, por isso mesmo, acho que acabou sendo perdoado, anos mais tarde, e ele e meu pai até voltaram a ser parceiros nos anos 60. É importante ressaltar que toda essa polêmica musical só aconteceu devido às características do mercado musical da época. Como os discos eram de 78 rotações (aquelas bolachas pretonas), com apenas duas músicas, era costume os cantores de sucesso lançarem dois discos por ano: um no Carnaval e outro no segundo semestre. No caso de minha mãe, a gravadora, detectando o potencial de mercado que a polêmica musical causava, passou a botar lenha na fogueira, lançando até três discos de Dalva por ano nessa época. Em contra-partida, meu pai lançava outros três discos, assim tínhamos por volta de seis lançamentos deles ao ano, o que mostra que a cada dois meses havia uma música nova para o público adotar e abastecer o clima de guerra entre eles. O conflito musical continuava. Meu pai revidou a música de Ataulfo com o samba “Teu exemplo”:

Há muita gente
Que encontra estrelas
Na própria lama
E junta um buquê de flores
Do mal que soube causar
Há muita gente
Que a glória arranca
Do próprio drama
E da tragédia da vida
Motivos para viver
E quando erra proclama
E quando peca sorri
Há muita estrela na lama
Mas eu me refiro a ti
Porém tudo que fizeste
Não te fez minha inimiga
Mas a outras mulheres eu digo
Que o teu exemplo não siga

Marino Pinto e Paulo Soledade, no começo de 1951, deram a Dalva uma resposta forte, “Calúnia”:

Quiseste ofuscar minha fama
E até jogar-me na lama
Só porque eu vivo a brilhar
Sim, mostraste ser invejoso
Viraste até mentiroso
Só para caluniar
Deixa a calúnia de lado
Que ela a mim não afeta
Deixa a calúnia de lado
Se de fato és poeta Se me ofendes
Tu serás o ofendido
Pois quem com ferro fere
Com ferro será ferido

Nesse mesmo ano, Herivelto, em parceria com Benedito Lacerda, lança “Consulta o teu travesseiro”:

Consulta o teu travesseiro
E me diz se é possível
Entre nós uma reconciliação…

E, também em parceria com Benedito, “Não tem mais jeito”:

Não tem mais jeito
Mulher quando perde
A vergonha e o respeito
Não tem mais jeito…

Para enfrentar mais esses ataques, minha mãe ganha de Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins o samba “Palhaço”, uma sutil ironia à antiga profissão de meu pai:

Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém
Volta que a plateia te reclama
Sei que choras, palhaço,
Por alguém que não te ama
Enxuga os olhos e me dá um abraço
Não te esqueças que és um palhaço
Faça a plateia gargalhar
Um palhaço não deve chorar

Recém -chegada de Londres, Dalva lança, do disco gravado com o maestro Roberto Ingles, outra música de Ataulfo Alves, “Fim de comédia”:

Esse amor quase tragédia
Que me fez um grande mal
Felizmente essa comédia
Vai chegando ao seu final
Já paguei todos os pecados meus
O meu pranto já caiu demais
Só lhe peço pelo amor de Deus
Deixa-me viver em paz
Não quero me fazer de inocente
Porém não sou tão má
Como disseram por aí
Eu quero o meu sossego tão somente
Cada um trate de si

Foi um tremendo sucesso. E, para encerrar o ano de 1951, minha mãe grava, de Luís Bittencourt e Marlene, “A grande verdade”:

Vai
Não te posso prender
Não te posso obrigar
A mentir se não queres ficar
Não convém insistir
Não convém iludir
Pra mais tarde sofrer
Não me tens amizade
Esta é a grande verdade
Por isso não vejo razão
Para a nossa união, meu amor
Sonho quimera ilusão
Tudo vai terminar
Quando um dia o remorso chegar
E da felicidade existir a saudade
No teu coração
Verás então ao teu lado
Meu vulto meio apagado
Revivendo um amor desesperado

Meu pai ataca outra vez, agora em parceria com Raul Sampaio, que entrara para o Trio de Ouro, com a música “Perdoar”:

Perdoar
Eu não perdoo, não
Eu estou cada vez mais convencido
De que aquela mulher
Ai, ai, meu Deus
É um caso perdido
Vem arrependida implorar perdão
Falta, erra e por fim
Ainda confessa, errei, sim

Já no começo de 1952, depois do Carnaval, Dalva lança de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, que anos depois se tornaria parceiro de Herivelto, “Poeira do chão”:

O que te dei em carinho
Tu devolveste em traição
O que era um claro caminho
Tornaste desolação

Hoje tu voltas chorando Para implorar o meu perdão O meu perdão nada custa Falando a palavra justa Há muito eu te perdoei E por amar a verdade Vendo tanta falsidade No fundo eu te lastimei Se é falso e vil o interesse O amor bem cedo fenece É flor que morre em botão Não, não pode alcançar os astros Quem leva a vida de rastros Quem é poeira do chão Do lado de minha mãe, eram muitos compositores trabalhando para enfrentar meu pai. Mas, aos poucos, a polêmica musical foi esfriando e os ataques foram se espaçando, dando lugar a sucessos como “Kalu” e “Ai, Ioiô”, na voz de Dalva, e, no repertório de meu pai, aos tangos como “Carlos Gardel” e “Hoje quem paga sou eu”, gravados por Nelson Gonçalves. Todos esses ataques musicais de meu pai a minha mãe foram criando uma grande animosidade em torno dele. O povo realmente considerava minha mãe uma pessoa desprotegida e vítima dele. Para botar mais pimenta ainda nesse caldo, não satisfeito com o bate-boca musical (minha mãe fazia muito mais sucesso com as músicas do que ele), Herivelto aceita a infeliz sugestão do jornalista David Nasser para usar um espaço no Diário da Noite para se “defender” de Dalva, dando sua versão da vida a dois com ela. Junto com David Nasser, meu pai começa a publicar no início de 1951 uma série de artigos diários (foram 22 capítulos ditados por ele e escritos por David) durante cinco semanas. Ele não poupou palavras nem desrespeito por aquela que foi sua companheira, mãe de seus dois filhos, e lhe deu suporte profissional durante mais de catorze anos. Nas páginas verdes do Diário da Noite lia-se grande e destacada manchete:

“HERIVELTO NARRA SUA DESDITA CONJUGAL”

O país inteiro lendo aquelas coisas, as revistas especializadas tomando partido, ora do meu pai, ora da minha mãe. Era uma nojeira, sem classificação, vergonha para David Nasser e vergonha para um talento como He-rivelto Martins. Uma frase de que me lembro muito bem e que me marcou profunda-mente, escrita por David Nasser num dos capítulos escabrosos a que tive acesso, foi: “Em que pese o enorme talento da cantora, há de se ressaltar a sua vida particular do mais baixo nível”. Esse texto teve uma repercussão espetacular e contribuiu muito para o ódio das pessoas. As revistas da chamada imprensa marrom se deliciavam, enquanto Herivelto e David ofereciam subsídios para que mais e mais se pusesse lenha na fogueira. Havia uma revista chamada Escândalo, de propriedade de um crápula, Fred Daltro, que publicou uma capa conosco (minha mãe rodeada por mim e Bily ). A manchete era: 

“DALVA DE OLIVEIRA, INDIGNA DE SER MÃE!”

Como resultado de tudo isso, a carreira do Trio de Ouro não manteve o mesmo respeito por parte do público. Na segunda versão do grupo, Nilo havia sido substituído por Raul Sampaio, compositor de muitas canções lindas, como “Meu pequeno Cachoeiro” ; e minha mãe, por Noemi Cavalcanti. Surgiu um grande descrédito, que levou ao declínio do Trio. Só havia aplausos nos lugares em que as pessoas ainda acreditavam em meu pai. Enquanto isso, Dalva foi conquistando a simpatia e carinho do grande público e o sucesso que veio a seguir pode ser chamado de estrondoso. Era, sem dúvida, uma mulher desrespeitada pelo marido, ultrajada em narrativas trabalhadas a quatro mãos. Foi Nelson Gonçalves quem me contou como aconteceu a aproximação de meu pai com David Nasser. Chico Alves, grande amigo de Herivelto, era parente do jornalista David Nasser, que tinha um enorme prestígio na área jornalística e grande influência junto aos formadores de opinião da época. Mas era também um homem ansioso por participar do mundo da música. Seu sonho era competir com Nelson Rodrigues. Enquanto David fazia um jornalismo mais voltado para a política, Nelson escrevia sobre o cotidiano, falava para o povo. A época permitia esse tipo de competição sadia, que a solidão de hoje matou. Assim, ao se aproximarem pelas mãos de Chico Alves, cada um resolveu à sua maneira a carência do momento. David atingiu, por meio da música e do talento do parceiro Herivelto, o desejo de falar para o povo e não somente para a elite. Por sua vez, meu pai encontrou, no apoio de David, a chance de destilar toda a dor de cotovelo com o sucesso de Dalva. Arrasado pela perda do apogeu artístico vivido ao lado de minha mãe, teve as portas do Diário da Noite abertas para dar sua versão. Mais tarde, ao amargar as consequências desse gesto tresloucado, encontrou no mesmo David o prestígio necessário para se reerguer perante a opinião pública com suas inspiradas parcerias. Uma vez, fui com meu pai visitar David Nasser no Cosme Velho. Era uma casa bonita, com uma fachada de pedra, imponente, parecendo um castelo. Ao entrarmos, levei um susto — não tinha móveis. Ele nos deu uns caixotes de cerveja para sentarmos. Havia vendido tudo o que tinha para comprar essa casa. Com o passar do tempo (uns cinco anos depois dos capítulos no jornal), tive o prazer de vê-lo na Rádio Tupi, pedindo para falar com minha mãe. Em princípio, ela relutou um pouco, mas depois cedeu. E ouviu espantada um pedido de desculpas de David Nasser, extremamente comovedor. Foi triste ver aquele jornalista, tão importante e tão festejado, humilhado e arrependido de ter servido com seu talento a tanta imundície colocada no papel. Mais tarde, descobrimos o que mais motivou esse pedido de desculpas, além do arrependimento: a exigência de outro jornalista, que via a profissão se degradar com a atitude de David. Esse jornalista era Ibraim Sued. Chocado com o que se lia no Diário da Noite, exigiu que David parasse com tudo aquilo. Outro que se arrependeu muito, graças à atitude dos fãs de minha mãe, foi Fred Daltro, da revista Escândalo. Depois da reportagem absurda sobre a condição de Dalva como nossa mãe, foi levado por um grupo de fãs para a Barra da Tijuca (em 1951 era ainda um bairro em formação), apanhou muito e foi enterrado na areia, ficando somente com a cabeça de fora. Não morreu apenas por sorte… e para minha mãe saborear um pedido de desculpas, logo depois. De minha parte, posso garantir que o mal feito a nós foi enorme, e não responsabilizo apenas David, mas meu pai também, pela atitude impensada, desatinada. Meu irmão Bily, no entanto, com a humilhação sofrida nas páginas do Diário da Noite, passou a nutrir por David Nasser um ódio mortal, que o acompanhou por anos. Quando Bily trabalhava na TV Rio, uma tarde teve a surpresa de saber que David iria ser entrevistado num programa da emissora. Preparou-se psicologicamente, então, para tomar uma atitude qualquer ao estar diante de David. Dizer algo, xingá-lo, bater nele — em sua fantasia imaginava qualquer coisa que o aliviasse por tanto mal causado. Mas eis que de repente aparecia um David Nasser todo torto, doente, meio entrevado. Pedindo, por favor, a quem estivesse por perto, que buscasse uma cadeira, pois não se aguentava em pé. Naquele momento, Bily lhe ofereceu uma cadeira. E David jamais soube de quem havia recebido ajuda. Mas meu irmão se sentiu aliviado: não havia necessidade de fazer nada para punir aquele homem . A vida havia se encarregado de castigá-lo.


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