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segunda-feira, 20 de março de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




08 - Orson Welles, uma rica experiência


uma rica experiência Foi Haroldo Barbosa quem indicou meu pai a Orson Welles. O gênio do cinema norteamericano veio ao Brasil numa espécie de “missão diplomática” do governo dos Estados Unidos, encarregado de fazer alguns documentários sobre a América Latina para os estúdios rko. Dentro da chamada “política de boa vizinhança”, era um gesto de simpatia dos Estados Unidos com os mais recentes aliados ao bloco de resistência às loucuras de Hitler. O que nasceu da obediência a seus patrões da rko se transformou numa grande aventura para Orson, ao se apaixonar por todo esse universo naïf brasileiro, fascinante para o gênio em sua descoberta do ritmo do samba, da negritude, da vida dos jangadeiros. Antes de chegar ao Rio, Orson Welles esteve trabalhando no Peru. Já no Brasil, demorou-se mais do que o previsto no Nordeste, ao filmar os jangadeiros, pois acabou se envolvendo com seu momento político e com seus líderes. Registrou em seu copião o movimento de reivindicação dos jangadeiros, que lutavam pela elevação da categoria a Profissionais da Jangada, com direito a aposentadoria e outros benefícios. Registrou também todo o contexto de miséria da vida desses pescadores, mostrando-a na plenitude de sua verdade. Ao chegar ao Rio, em 1942, Orson e sua “missão” já haviam consumido muito tempo e muito dinheiro. Os estúdios, ansiosos por um documentário tipicamente norte-americano, e portanto cor-de-rosa, espantavam-se com a crueza do material enviado pela equipe. Na verdade, Orson nunca foi entendido nos Estados Unidos pelo Trabalho que realizou aqui. Ao se rebelar contra a rko, as verbas enviadas foram escasseando e ele ficou sozinho com seu gênio cinematográfico e a paixão por um país que o recebia de braços abertos — mesmo que esses braços não tivessem muita roupa. O movimento dos jangadeiros crescia. Para sensibilizar o governo de Getúlio, eles foram de jangada até o Rio, em arriscada viagem. A imprensa carioca os recebeu com muito alarde; os barcos e navios os saudaram com seus apitos e fogos. A então Capital Federal parou para vê-los, e o Brasil se comoveu. Orson agendou a filmagem da reconstituição dessa chegada, na distante Barra da Tijuca. Para espanto de todos, uma fatalidade aconteceu: o líder dos jangadeiros, Jacaré, morreu durante as filmagens. Sobrevivente de uma viagem tão arriscada, de Fortaleza ao Rio, morreu na Barra, em dia de mar calmo. Ninguém conseguiu explicar o que houve. Ao tomar conhecimento da morte do líder Jacaré, Orson Welles entrou em profunda depressão. Foram interrompidas as filmagens de Quatro homens e uma jangada. O dinheiro vindo dos Estados Unidos diminuía cada vez mais. O estúdio chamou de volta a equipe, mas não conseguiu levar Orson Welles aos Estados Unidos. Este homem ficou aqui com uma câmera, um operador e mais nada. E mudou de tema. Nesse momento aconteceu a aproximação com Grande Otelo e Herivelto Martins, contratados como assistentes de direção de Orson Welles. Imaginem só, que honra. Trabalhar com o talento precoce do cinema norteamericano que, aos 24 anos, fizera cair o queixo do mundo com seu filme de estreia: Cidadão Kane. Esta sua primeira obra se tornou uma das mais importantes referências do cinema norte-americano e mundial. E garantiu a Orson Welles o título de gênio para sempre. Orson queria filmar o Carnaval. Mas do jeito dele: queria uma câmera seguindo uma criança pequena pelo morro, pelos ensaios, pela avenida, por entre as pernas dos sambistas. Meu pai, “doutor em mulata e crioulo”, organizou, a seu pedido, um Carnaval fora de época. A música “Praça Onze”, grande sucesso do Carnaval de 1942, foi escolhida como tema principal da trilha sonora. As filmagens de rua aconteciam em frente da escadaria do Teatro Municipal; outras, no estúdio da Cinédia. A criança que ia antecedendo e guiando a câmera — o “ponto de vista da câmera” —, mostrando as calçadas, confete e serpentina pelas ruas, gente dormindo no chão após sambar até de manhã, lixeiro limpando a confusão, essa criança era eu. Minha lembrança das filmagens é um pouco confusa; a mim parecia tudo uma grande bagunça. Aquele amontoado de gente, eu passando entre as pernas dos crioulos, a câmera me acompanhando, a voz de Orson no comando. O cansaço, a filmagem entrando pela noite, eu com fome, minha mãe me dando sanduíches… Herivelto produzia as tomadas que Orson queria e, de seu assistente, passou a amigo. Dalva cozinhou muitas vezes para Orson Welles, depois das filmagens, das quais participava com o Trio. Chegavam tarde, com fome e cansados, doidos por uma cerveja preta, pela macarronada já famosa de minha mãe e aquele clima descontraído de nossa casa. Sofrendo com a saudade de casa e da atriz Rita Hay worth, com quem veio a se casar em 1943, Orson “adotou” nossa casa. Meus pais contavam do carinho que ele tinha comigo. Me punha no colo, enquanto escutava Herivelto cantar suas músicas, até eu dormir. E fazia questão de me colocar na cama. Lembro-me do cheiro penetrante de seus charutos cubanos, o hálito de cerveja preta. E de sua altura (ainda não era tão gordo), quando me punha no colo. Para mim, bem pequeno nos meus cinco anos, ele parecia enorme. Orson ficava em casa até umas três ou quatro da madrugada, tomando cerveja preta Black Princess, a preferida de meu pai. Herivelto contava que ele bebia bem, mas somente depois do trabalho concluído. De repente, levantava, chamava um táxi e se despedia, dizendo para Herivelto e Otelo: “Tomorrow eight o’clock, nas estúdios da Cinédia!”. Queria todos lá às oito em ponto. Quando os dois chegavam, entre oito e meia e nove horas, Orson já estava trabalhando. A bronca era grande. Herivelto tentava disfarçar, dando ordens à equipe, começando a agitar o estúdio. Na terceira ou quarta vez, e esgotadas as clássicas desculpas do trânsito, da condução, tomaram vergonha. Passaram a chegar na hora, embora mortos de sono. Herivelto e Otelo aprendiam na marra o significado da palavra “pontualidade” no dicionário de um profissional norteamericano. Para poder encarar melhor a responsabilidade, Herivelto precisava controlar Otelo, o mais atrasado da dupla. Então, já que ficavam o dia todo juntos, levou Otelo para morar lá em casa. Assim, chegavam ao mesmo tempo ao estúdio. Otelo havia recebido educação melhor que a de meu pai. Tinha sido criado por uma família paulista de posses e se aventurava em outros idiomas, cantava em francês e inglês, havia excursionado pela Europa. Inicialmente, em seu arranhado inglês, era o elo entre eles, funcionando como intérprete. Com o tempo, Herivelto também foi se virando no inglês, além de Orson também ter começado a aprender um pouco de português. Para o trabalho, nos estúdios da Cinédia havia sempre um intérprete oficial para garantir a fidelidade das informações trocadas. Eu recebia de cachê 500 mil-réis por dia de filmagem. Com esse dinheiro, meus pais compraram uma casa na Ilha do Governador, na rua Magno Martins, 65. A Ilha era um dos lugares mais gostosos do Rio. Na época não havia ponte, a gente tinha de tomar a barca, a última saía às dez da noite. Pode-se imaginar a tranquilidade. Quando Orson soube, ficou fascinado. “Eu querer ir junto”, disse para meu pai. Foi. E não queria mais sair. Nos intervalos das filmagens, era muito requisitado para festas, recepções. Avesso a tanta badalação, sentia-se livre disso na Ilha. Dormia no chão, às vezes, porque Otelo, Bené Nunes e outros não deixavam de estar por lá também. Papo, cerveja preta, praia, violão… era o que Orson Welles mais queria. Numa daquelas recepções enfadonhas, como convidado de honra, vestindo um belo summer, Orson Welles foi receber uma homenagem, na presença do embaixador orteamericano e convidados da alta sociedade carioca. Quando começaram a servir o jantar, Orson saiu à francesa, chamou um táxi e foi bater na porta de nossa casa, na rua Itapiru. Meu pai ficou surpreso:“Você não estava numa festa? Acho que devia voltar pra lá, não é o homenageado?”. “Eu não querer. Gente chata, muito chata!” Orson, já sem gravata, suando em bicas, foi entrando e tirando o paletó. Queria apenas sentar na sala de nossa casa e tomar Black Princess. Quando parou de mandar dinheiro, a RKO conseguiu “convencer” Orson a voltar a sua realidade norte-americana. Ele teve de se render e abandonar “o paraíso”, como se eeferia ao Brasil. Ao retornar, o momento político já era outro, os Estados Unidos não estavam mais interessados em fazer “bilubilu” no Brasil. Em razão do grande talento que encontrou em Herivelto e Otelo, Orson chegou a convidá-los a ir para os Estados Unidos. Insistiu que fossem morar lá. Mas Herivelto e Otelo não quiseram se aventurar, começar tudo outra vez. Aqui estavam começando a sentir o gostinho do sucesso, depois de tempos tão difíceis. Todo o material produzido por Orson ficou abandonado por quase meio século. Somente nos anos 90, numa coprodução franco-americana, o documentário foi editado. Vieram até o Brasil, em 1993, buscar subsídios sobre os acontecimentos da época. Gravaram depoimentos com Otelo e comigo. Infelizmente, meu pai já havia falecido e não pôde contar mais detalhes dessa experiência tão rica. Já foi exibido no Brasil, nos cinemas de arte e na TV a cabo, com o nome de It’s All True ( É tudo verdade). Priorizaram as intermináveis cenas de jangadeiros, muito pouco foi mostrado da riqueza do Carnaval carioca. E, o pior de tudo, não consegui me ver nele — não sei se de propósito ou devido à perda desse material — e infelizmente a ideia original de Orson Welles de contar o Carnaval do Rio através dos olhos de uma criança, dos meus, foi eliminada.


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