Por Daniel Brazil
O mês de março é sempre propício à reflexão sobre a participação da mulher na sociedade. E a música popular, como não podia deixar de ser, reflete o padrão de comportamento de sua época. Mas, em vez procurarmos a mulher-tema nas letras de música, que tal lançarmos um olhar para as protagonistas, as criadoras de canções?
A presença nas mulheres na música popular, até meados do século XX, se limitava à função de intérprete. Os compositores nunca prescindiram do timbre feminino, mas também nunca abriram espaço para trabalhos autorais das cantoras. A grande exceção é a pioneira Chiquinha Gonzaga (foto), primeira grande compositora popular e também uma mulher de atitudes que só muito depois seriam chamadas de feministas. Abre Alas, sua canção mais conhecida, parece anunciar que a mulher estava chegando para ocupar seu lugar na MPB.
Ainda assim, a conquista de espaço foi lenta e difícil. As primeiras mulheres compositoras dedicavam-se à música instrumental. Muitos choros, valsas e polcas para piano foram compostos por mulheres na primeira metade do século XX. Certamente a primeira grande compositora de canções – letra e música – foi Dolores Duran, nos anos 50. Além de boa cantora, era letrista inspirada e teve parceiros como Tom Jobim. Morreu com apenas 29 anos, eternizada por canções como A Noite do Meu Bem e Estrada do Sol.
Não podemos esquecer aqui as mulheres que muitas vezes foram eclipsadas pelo talento de seus parceiros. Almira e Jackson do Pandeiro assinaram várias composições, e foram uma dupla do barulho nos anos 40 e 50. Hoje só se fala de Jackson... Um fenômeno semelhante ocorre com Anastácia e Dominguinhos, que criaram juntos mais de 200 canções. Anastácia, autora de Só Quero um Xodó, entre tantos sucessos, tem reconhecimento regional, mas nacionalmente é comum as pessoas se lembrarem apenas de Dominguinhos. O velho machismo ainda deixa marcas fáceis de detectar.
NA música caipira, o cenário é ainda mais inóspito. Mas outra pioneira, a sempre atenta Inezita Barroso, grava um LP em 1958 somente com composições de mulheres. Uma delas, Zica Bergami, é autora de um de seus sucessos mais emblemáticos: Lampião de Gás. Gravou também obras de Lina Pesci, outra prolífica compositora paulista de choros, valsas e sambas-canção.
A década de 60 viu a consagração da bossa nova, o surgimento da canção de protesto, da Tropicália, e o ressurgimento do samba de raiz, que na década anterior fora submergido pelo samba-canção radiofônico. Nos grandes festivais começaram a surgir novas compositoras, como Tuca, Rosinha de Valença e Joyce. Esta última, que lançou seu primeiro disco em 68, compôs bem depois uma música que se tornou quase um hino feminista. A bela Feminina, gravada em 1980, é um marco, e talvez seja a primeira música a explicitar uma nova voz no leque temático brasileiro.
Ó, mãe, me explica, me ensina,
Me diz o que é feminina...
No mundo do samba, as mulheres também vieram lentamente conquistando seu espaço como protagonistas. Dona Ivone Lara, nascida em 1921, se tornou a primeira mulher autora de um samba enredo quando fez para a Império Serrano “Os Cinco Bailes da História do Rio” (1965). Autora de grandes sucessos como Acreditar e Sonho Meu, viu surgir outra compositora, com perfil mais feminista e politizado, na ala de compositores da Mangueira na década de 70: Leci Brandão.
Sob a influência da década anterior, os anos 70 viraram a época do desbunde, da liberação sexual. Cada vez mais a mulher conquistava espaços que antes eram interditados. No Brasil sob ditadura, não se podia falar de política nem criticar o governo, mas ousava-se cada vez mais ao falar de sexo. Em 78 o Brasil inteiro cantava com as Frenéticas: “Eu sei que eu sou/ bonita e gostosa...” e o refrão “”...dentro de mim”. Mas ainda era uma canção escrita por homens, para mulheres cantarem.
Provavelmente a canção que realmente colava na cabeça das meninas era Ovelha Negra, de Rita Lee. Esta sim, abordou temáticas femininas de forma pioneira, falando de coisas que ninguém colocava em música, como menstruação ou menopausa. Não à toa, já no ano 2000, emplacou o que talvez seja o maior hit feminista de nosso tempo, que é Pagu.
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem!
Rita Lee reafirmou a postura de questionamento do papel e comportamento da mulher (e do homem) em várias outras canções. Os puristas da MPB guardam certa distância dela não por isso, mas por ser considerada roqueira... Já a canção popular mais “brasileira” assistiu nos anos 70/80 ao surgimento de uma geração contemporânea de Rita Lee que em maior ou menor medida colocaram uma voz feminina nas composições. Sueli Costa, Marlui Miranda, Luli e Lucina, Kátia de França, Angela Roro, , Zelia Duncan, Vange Leonel, Paula Toller, Marina Lima... Marina, aliás, tem uma canção chamada O Lado Quente do Ser, e que começa com os versos “Eu gosto de ser mulher...”. A letra é do Antonio Cícero, irmão de Marina, mas a identificação com o universo feminino é total, foi gravada até pela diva Maria Bethania.
Um grande talento dessa geração é Adriana Calcanhoto, que cria com competência desde música infantil até baladas de sabor folk. Adriana compôs um belo samba dolente que é um retrato da mulher liberada do século XXI. Gravado por outras cantoras/compositoras, como Marisa Monte e Tereza Cristina, Beijo Sem é o retrato de uma nova mulher, que proclama sua independência e livre-arbítrio.
Eu não sou mais
Quem você
Deixou
Amor (de ver)
Vou à Lapa
Decotada
Bebo todas (viro outras)
Beijo bem
Madrugada
Sou da lira
Manhãzinha
De ninguém
Noite alta
É meu dia
E a orgia
É meu bem.
O verso “sou da lira” remete a Chiquinha Gonzaga, claro. É como se a nova compositora estendesse a mão para a pioneira e dissesse “estamos juntas, somos da mesma lira”.
E as cantoras/compositoras das gerações seguintes já incorporam com naturalidade essa postura de independência, de atitude perante o mundo. Não necessariamente são feministas, mas certamente femininas, acrescentando nuances ao nosso cancioneiro. Nomes como Alzira Espíndola, Ceumar, Céu, Socorro Lira, Mariana Aydar, Anelis Assumpção, Iara Rennó, Ana Costa, Antonia Adnet, Tiê, Karina Buhr, Manuela Rodrigues, Andreia Dias, Tulipa Ruiz e mais uma constelação.
Sinal dos tempos. Falar de mulher-compositora hoje é correr o risco de omitir nomes...
Fonte: Revista Música Brasileira
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