No Rio, no mega festival Hollywood Rock, cheio de estrelas internacionais, os Titãs abrem para os Pretenders na Praça da Apoteose superlotada e arrebentam, levando o público ao delírio. A histórica performance é reconhecida como a melhor de todo o festival, incluindo os estrangeiros. O velho sonho roqueiro brasileiro finalmente se realizava. Alberico Campana, dono da Churrascaria Plataforma, que conheci como garçom no Beco das Garrafas, me convidou para ser seu sócio em uma casa noturna no Leblon. Chamei Dom Pepe para a sociedade e abrimos os trabalhos do African Bar. Os shows de Marisa davam muita alegria e orgulho mas, como previsto, quase nenhum dinheiro. O espaço de Alberico era ótimo, um chalé normando de dois andares na Rua Venâncio Flores, onde funcionavam um bar e um restaurante francês. Virou um chalé afro-normando: pintamos a fachada de caqui, enchemos a calçada de palmeiras e bananeiras e na entrada colocamos um toldo de onça. O piano-bar foi feito todo de bambu, com sofás e cadeiras de onça e zebra e plantas tropicais por toda parte. O segundo andar era só um bar e uma pista de dança cercada de plantas, com três percussionistas tocando ao vivo junto com os torpedos negros que Dom Pepe detonava nas caixas.
No piano-bar realizei um sonho de juventude, que começou! quando o ouvi pela primeira vez num distante show de bossa nova na Faculdade de Arquitetura: trouxe Johnny Alf de São Paulo, para tocar piano e cantar todas as noites no African Bar. Os pedidos de convites para a inauguração foram tantos que a festa de abertura se desdobrou em duas de 500 convidados cada, quase enlouquecendo a nossa promoter Liége Monteiro. E mesmo assim muita gente reclamou de só receber convite para a segunda noite. Em São Paulo, no final de março, Marisa fez duas temporadas de quatro dias na danceteria Aeroanta, templo do rock paulistano, e no prestigioso e erudito auditório do Museu de Arte Moderna. No Aeroanta fez um show mais “dançante”, só com as músicas mais animadas, o “Aeroshow”. No MASP, os 800 lugares e os corredores superlotaram todas as noites, o show “Cantando na avenida” foi aplaudido de pé. Como uma provocação, incluímos no show paulista uma música do megabrega Waldick Soriano, a hilariante “Amor de Vênus”, com Marisa cantando em clima de chanchada tropical. O público se divertiu, o mundo musical sentiu um frisson, os jornais engasgaram para definir a nova cantora, que ia de Phillip Glass a Waldick Soriano, de Tim Maia a Kurt Weill. Mas eram unânimes — com a exceção do bad boy Luis Antonio Giron — em reconhecer o seu talento e originalidade. Giron disse que Marisa era um blefe, uma enganação, uma “miragem”.
Parecia um filme. Estávamos cada vez mais integrados pela música e felizes com o sucesso, juntos dia e noite ouvindo e falando da música e da vida. E como acontece freqüentemente nesses cenários, a sintonia fina começa a misturar as estações. Eu já não sabia mais onde terminava a paixão avassaladora pela artista que estava se formando diante de meus olhos e ouvidos e onde começava o afeto por aquela garota bonita, educada e amorosa, que me lembrava tanto de mim mesmo aos 20 anos. Não sabíamos direito o que era aquilo, só sabíamos que estava bom, que estava cada vez melhor. Voltamos correndo para o Rio, no dia seguinte do último show paulista, para as festas de estréia do African Bar. A promoção de Liége foi eficientíssima e o sucesso instantâneo. Funcionou a combinação dois em um. Um piano bar cool, com um maravilhoso cantor intimista, num ambiente aconchegante. Um segundo andar tremendo com as bombas rítmicas das novas bandas internacionais, dos africanos King Sunny Adé, Touré Kundá e Feia Kuti, e dos baianos Olodum, Ilê Ayê e Araketu, reforçados pela percussão ao vivo. As noites cariocas estavam conhecendo o samba reggae, o futuro axé, e gostando.
O filme continua com Marisa, em Belo Horizonte, no Cabaré Mineiro, com mais de 700 pessoas lotando a casa nas três noites e o show tratado pelos jornais como um grande evento. Comemorando o triunfo mineiro e discutindo o próximo show, conversamos sobre aquela noite no Jazzmania. E falei a ela do que tinha ouvido e sentido. Mas para minha surpresa, ela tinha ouvido e vivido o show de forma muito diferente. Em sua memória musical, ela estava nervosa no início e não chegou a cantar bem, mas também não cantou mal, e nunca semitonou nem atravessou ritmos. Ela tinha certeza. Eu também, não de como foi, mas de como ouvi. Ninguém queria convencer ninguém, nem ela nem eu queríamos nos enganar. Ela não tinha problemas com críticas, ouvia todas, sempre, gostava de ser criticada, tinha boa autocrítica, queria melhorar. Não seria nenhum problema ter mesmo começado mal para crescer e triunfar no final. Mas para ela não foi assim.
Para mim, talvez traído pela emoção (ou pela literatura), foi muito diferente, porque o que vi e ouvi sem dúvida melhorava a história, acrescentando surpresa, angústia e suspense. Melhorava o filme. De volta ao Rio, começamos a preparar um passo decisivo: uma pequena temporada de verão no Teatro Ipanema, por onde tinham passado, sem exceção, todos os grandes nomes da nova música brasileira. Era quase obrigatório, uma prova de fogo, um batismo artístico. O show foi um pouquinho diferente do de São Paulo, com o repertório ainda mais provocativo. E superlotou, muitos artistas, especialmente cantoras, foram assistir, e a maior delas, Gal Costa, achou Marisa linda e talentosa e adorou o show. Em seguida me convidou para dirigir seu show internacional e viajar com ela para Buenos Aires, Lisboa, Nova York, Tóquio e mais 12 cidades do Japão. A pedidos, Marisa voltou a São Paulo para uma temporada de duas semanas no Teatro de Cultura Artística, superlotando os 1.500 lugares todas as noites, tratada como uma nova diva pela imprensa. Em Nova York, em maio de 1988, fui o curador da parte musical de um ambicioso e bem-sucedido festival de artes brasileiras produzido por Carmen Elisa Madlener com o nome de “Brazil Project 88”: uma mostra de Arquitetura, Artes Plásticas (com grande destaque para Hélio Oiticica) e Cinema. De música, foram três shows no Town Hall Theater, com Caetano Veloso, João Bosco e João Gilberto.
Pela primeira vez em Nova York, Marisa assistiu João Gilberto ao vivo pela primeira vez, na primeira fila. Cazuza também, muito doente, vindo de uma temporada de tratamento em Boston. No show, João impecável, com seus clássicos de sempre, sempre novos, e uma interpretação de “You Do Something To Me” que faria a alegria de Cole Porter. No dia seguinte ao concerto de João, Caetano me contou que Chet Baker tinha morrido. Tinha caído (ou se jogado) da janela de seu hotel em Amsterdam. Comovido, saí pelos sebos do Village procurando o histórico Chet Baker Sings, de 1956, para substituir o meu já gasto e arranhado original, um dos discos mais bonitos e influentes da história do jazz e da música brasileira. Com o coração pulando e sem discutir preço, arrematei um novo em folha, uma reedição feita por um pequeno selo de Barcelona, provavelmente pirata. No Rio, o African Bar fervia, Boni e sua mulher Lu tinham uma mesa cativa ao lado do piano de Johnny Alf. Ao som de suas canções, começou um sensacional romance entre a balzaquiana Vera Fischer e o jovem Felipe Camargo, que interpretavam justamente Édipo e Jocasta na novela “Mandala” da TV Globo. Com bem-vinda freqüência, Vera, lindíssima, incendiava o bar e a pista. Noite a noite o African se tornava o point do momento na Zona Sul, cheio de artistas e de meninas e meninos bonitos e ótima música. Para desespero dos moradores da pacata rua do fim do Leblon, que viram sua tranqüilidade invadida por filas de carros e buzinas, interrompendo o trânsito até a Lagoa nos fins de semana. E com o sucesso crescente, praticamente todas as noites.
A Associação de Moradores começou a reclamar. Fizemos obras de reforço do isolamento acústico, o som não saía da casa mas, mesmo com uma brigada de manobreiros, era impossível evitar gritarias e buzinadas na porta. E pior: Alberico não tinha um alvará de funcionamento para casa noturna, ele tinha herdado a licença do antigo restaurante, que não permitia música ao vivo nem dança. E pior do que tudo: o zoneamento proibia expressamente casas noturnas naquela rua. Rua! Não havia nada a fazer, eles tinham toda a razão, sorry. Depois de quatro meses escaldantes, o African Bar fechava para sempre, deixando uma marca de alegria e novidade na noite carioca. Com Marisa, começamos a planejar o próximo passo, um vôo mais alto, inédito na praça: um show para ser transformado em um especial de TV — antes mesmo do lançamento de seu primeiro disco, que seria exatamente a trilha sonora do especial, contrariando o tabu discográfico de estrear com um disco ao vivo. Aceitamos a proposta da EMI, que estava disposta a investir no especial de TV e garantia liberdade criativa e controle do marketing. E, como nós, não tinha pressa: era para lançar quando estivesse pronto. Parecia a ideal para fazer o que tinha que ser feito. Marisa seria a primeira artista brasileira a ter um show de uma hora exibido em rede nacional de TV e um home-video, sem ter um disco.
Dirigido por mim e por Walter Salles e produzido por Lula Buarque de Hollanda, o especial seria feito em cinema, com fotografia de José Roberto Eliezer e gravado ao vivo pela EMI, em três noites, no Teatro Villa-Lobos, em Copacabana. Depois de um mês entre o Japão e os Estados Unidos com Gal, voltei ao Brasil e começamos a ensaiar o show de Marisa. O projeto artístico crescia muito mais rápido e mais intenso do que se sonhara, mas a escalada de Marisa acabou provocando em mim uma reação inesperada e desastrosa quando “o ciúme lançou sua flecha preta”, como dizia a nova canção de Caetano que Gal cantava no show internacional. E pior, em dobro. Ciúme de uma bela garota de 21 anos e do que eu via como minha criatura artística devorada pelo público. Pigmalião de Ipanema torna-se um otelo branco e perversamente usa sua imaginação para ser seu próprio iago. Sua mente conturbada vê em cada espectador que a aplaude um potencial pretendente e concorrente. Mas afinal, era tudo que eu queria, que Marisa fosse admirada, respeitada, amada e desejada, todo o meu esforço tinha sido para isso. Tinha construído minha própria armadilha e entrado nela e agora não sabia como sair. Marisa nem imaginava essas fantasias paranóicas que me torturavam, mas não deixou de perceber que as coisas estavam mudando entre nós.
Cada vez mais seguro da direção do projeto artístico, eu me sentia cada vez mais inseguro no plano pessoal, porque era experiente o bastante para saber que não havia futuro para nós, juntos. O que me provocava secreto sofrimento, porque sabia que quanto mais tarde fosse, mais doloroso seria, pelo menos para mim. Mas ninguém precisava saber disso. Para Marisa, todos os caminhos estavam abertos e claros, às vésperas de fazer seu primeiro especial de televisão e seu primeiro disco ao vivo, de sua primeira turnê nacional, iniciando uma brilhante carreira profissional onde tudo era novidade e excitação. Eu queria dirigir outros shows, produzir discos, escrever um livro sobre Glauber Rocha, conviver com amigos de minha geração, mas estava totalmente dedicado a Marisa. E quanto mais ela crescesse, mais envolvido eu estaria. E sem que ela tivesse qualquer responsabilidade nisso, mais ciúmes eu teria de todo mundo, pior seria o convívio, o choque de gerações seria insuperável. Os shows do Villa-Lobos foram os melhores que Marisa já tinha feito, segura e vigorosa, amadurecida mas mantendo o frescor e espontaneidade da sua juventude. Com direção musical do maestro Eduardo Souto Neto, com Letícia Monte, Suzana Ribeiro e Joana Motta nos backing-vocals, o show teve até um quarteto de cordas, que acompanhou Marisa e o grupo de jazz paulista Nouvelle Cuisine numa versão clássica de “Bess, You Is My Woman Now”, da ópera Porgy and Bess, de Gershwin. E a participação especial de um sensacional garoto de 19 anos, Ed Motta, sobrinho de Tim Maia, cantando com ela “These Are The Songs”, recriando o dueto de Tim e Elis em 1970.
Waltinho filmou dois shows inteiros com três câmeras de cinema e depois do último espetáculo ainda entrou pela madrugada fazendo novos takes mais trabalhados no palco, com gruas e carrinhos. Os músicos odiaram, mas Marisa resistiu estoicamente e ainda estava filmando quando o sol já estava nascendo. Rigoroso e perfeccionista, Waltinho fazia todos os takes que precisava, enquanto eu jazia num canto, depois das emoções daquele que era para mim, sem que ninguém soubesse, o último show de Marisa. Nos estúdios da EMI, em Botafogo, iniciamos os longos e penosos trabalhos de regravação de instrumentos, mixagem e edição necessários para um vôo tão alto como o primeiro disco ao vivo de um artista. Como em qualquer disco “ao vivo”, regravamos muitos instrumentos, acrescentamos mais percussão, refizemos os backing-vocals com Marisa cantando junto com as meninas. Mas ao contrário de todos os discos “ao vivo”, não mexemos na voz de Marisa, que ficou exatamente a que foi gravada, como uma cantora lírica, ao vivo no palco. Ao mesmo tempo, Waltinho editava na Tycoon, em Jacarepaguá, o especial de televisão. O diretorartístico da TV Manchete, Jayme Monjardim, impressionado com a qualidade artística e técnica — nunca um artista brasileiro teve um especial feito em cinema —, programou-o como uma das estrelas do fim de ano da emissora.
Uma artista que sequer tinha um disco, que nunca tinha tocado em rádio nem na televisão, cantando covers e versões. Nunca tivemos nenhuma briga nem desentendimento artístico, nem pessoal, até o desencontro final. Tudo terminou bem, dentro das circunstâncias, embora eu me sentisse arrasado pela dupla perda. Marisa começou a namorar o vocalista Nasi, do grupo de rock paulista Ira! (que não tinha nada de nazista, era brizolista roxo), e eu a atriz ítala Nandi, uma das estrelas do Teatro Oficina, minha amiga desde O rei da vela, em 1968. ítala foi um anjo, mas eu não conseguia pensar em outra coisa que não naquele canto de sereia que eu ajudara a amplificar. Me assustei com o tamanho da encrenca, absolutamente desproporcional ao que seria (mais) um rompimento em minha história de muitos. Mas ninguém precisava saber disso, a não ser os amigos muito íntimos, o analista lacaniano cada vez mais entendiado com a repetição obsessiva do “drama da impossibilidade”, e João Gilberto, em longos e diários telefonemas. Estimulado por João, depois de mais de 15 anos sem pegar no violão, voltei a tocar, passava horas em casa tocando, repetindo músicas como mantras. O exercício de repetir infinitas vezes pequenas células rítmicas e harmônicas, por mais simples que sejam, exige atenção total, qualquer vôo do pensamento conduz ao erro e ao reinício, como os mantras. A disciplina e a concentração levam ao vazio, à paz, à serenidade, a um vazio pleno, como o dos mestres zen. Ou baianos.
Os velhos amigos Nara Leão e Roberto Menescal me procuraram para que fizesse letras em português para grandes músicas românticas americanas, para o novo disco de Nara que Menescal estava produzindo. Eram músicas que nós todos amávamos desde sempre, como “Night and Day”, “Summertime”, “My Foolish Heart”, “Love Letters”, clássicos de Cole Porter, Gershwin, Johnny Mercer. Todos os dias, às nove da manhã, passei a me encontrar com eles no apartamento de Nara, que continuava na Avenida Atlântica, mas agora era no Leme. Há vários anos Nara vinha lutando contra sérios problemas de saúde, entre médicos e médiuns, e me pareceu frágil mas bem-disposta, alegre como sempre. Cantando cada vez melhor com seu fio de voz, tocando um violão eficientíssimo, transformando em bossa nova gilbertiana os clássicos americanos, tudo com o maior bom gosto e discrição. Deliciado, eu ouvia Nara e me lembrava das primeiras vezes que a vi, quando ela cantava muito mal mas se tornou um de meus primeiros ídolos, quando entrei com o coração aos pulos no “apartamento de Nara” pela primeira vez, quando ela gravou minhas primeiras músicas, quando nos divertíamos gozando os roqueiros de Carlos Imperial. Nara estava animada com o disco e harmonizada com a vida. Até chamou Ronaldo Bôscoli, seu ex-namorado e depois arquiinimigo por décadas, para fazer algumas letras. E ele fez.
Com Roberto Menescal, meu ex-professor de violão, voltei a aprender, tocando as suas harmonias dissonantes e bossa-novistas para as canções do novo disco. Aprendia, voltava para casa e tocava o dia inteiro, voltava no tempo, fazia as letras. E às vezes sofria com as histórias de amor que escrevia e com a sensação de que seria o último disco de Nara. Fui a São Paulo fazer um programa de televisão e aproveitei para almoçar com Rita Lee. Ela estava em casa com os filhos, separada de Roberto e muito triste, num estado parecido com o meu. Trocamos confidências como velhos amigos e começamos a fazer uma música juntos: “Foge de mim, mas deixa teu endereço, em cada fim, há sempre um começo e um novo sim...” De volta ao Rio, liguei para Tim Maia, sobre quem eu e Rita tínhamos falado muito e dado boas gargalhadas, comentando a entrevista dele para Veja, em que disse sua frase imortal: “Não fumo, não bebo e não cheiro, mas às vezes minto um pouquinho.” Disse para ele dar um alô para ela, que estava muito sozinha e gostava muito dele.
Ele ligou e, mal ela atendeu, soltou o vozeirão em ritmo vertiginoso: “Olha aqui, ô Rita Lee, eu já agüentei cinco anos de ‘Administração Arnaldo Baptista’, dez anos de ‘Administração Roberto de Carvalho’ e estou te ligando pra dizer que...” Fez uma pausa e berrou no telefone:
“I LOVE YOU!!!!!!!” O programa de televisão de Marisa atraiu muita atenção, por ser uma artista nova aparecendo nacionalmente antes mesmo de ter um disco, pelas reações de entusiasmo da imprensa, pela novidade e pela qualidade. Teve audiência razoável e críticas maravilhosas no Brasil inteiro. Assisti sozinho em casa, alguns dias antes do Natal, amei e odiei. Para nossa sorte, Marina Lima mostrou “Bem que se quis” para sua amiga Lúcia Veríssimo, que estava gravando a nova novela da TV Globo, “O salvador da pátria”, e se apaixonou pela canção. E implorou ao diretor Paulo Ubiratan que a música fosse o tema de seu personagem.
Com a novela no ar e a canção pontuando todas as muitas cenas de amor, em poucos dias tínhamos um sucesso nacional, um big hit de uma nova artista. E como todo hit, a música me perseguia por toda parte, andando no calçadão, nos bares, nos carros, onde houvesse um rádio. Era uma tortura e uma felicidade ao mesmo tempo, era impossível fugir da música ou recusar o sucesso. “Agora vem pra perto, vem vem depressa, vem sem fim dentro de mim, que eu quero sentir o teu corpo pesando sobre o meu, vem meu amor, vem pra mim, me abraça devagar, me beija e me faz esquecer.” O Brasil inteiro ouviu Marisa cantando aquela letra que escrevi para uma canção napolitana a pedido de uma cantora portuguesa, que jamais imaginei que pudesse ser um sucesso popular. “Bem que se quis” abriu o caminho e o Lp de Marisa recebeu pedidos gigantescos das lojas para lançamento em janeiro, contrariando todas as certezas da indústria do disco, que considera o mês como o pior do mercado, garantia de fracasso.
Às vésperas do Natal, vendo as retrospectivas do ano nos jornais e revistas, e em todas Marisa como a grande revelação e o African Bar como a melhor casa noturna, a melancolia natural do período de “festas” somou-se à sensação de perda e abandono. Numa hora em que tinha tudo para estar feliz e realizado. Pagava por meus desejos, sofria por minhas memórias, me perguntava sobre a precariedade das impressões e dos julgamentos. Voltava à primeira noite de Marisa no Jazzmania e me perguntava se teria mesmo sido tão linda a música que ouvi na “Noite do amor, do sorriso e da flor” no anfiteatro da Faculdade de Arquitetura, se teriam mesmo sido tão dramáticos os shows de Rita Lee no Rock in Rio, de
Roberto Carlos em Cachoeiro, de João Gilberto em Roma, de Elis em Montreux. Se eram mesmo tão divertidas as músicas de Carlos Imperial e Wilson Simonal, se era tão forte a paixão dos 20 anos que me fez ouvir muito melhor o Tamba Trio e o Bossa Rio de Sérgio Mendes, gostar mais das letras de Ronaldo Bôscoli, da voz de Nara. Se meu amor fazia as pessoas mais musicais aos meus ouvidos, se meu amor pela música as fazia mais queridas ao meu coração... quando o telefone tocou.
Era João Gilberto, me convidando a visitá-lo em seu apartamento no alto do prédio do Rio Design Center, no Leblon. À noite, cheguei na hora marcada mas, antes que eu tocasse a campainha, ele abriu a porta. Estava de banho tomado, de terno e gravata e com a caixa do violão na mão, como se fosse para um show. “Não vamos ficar aqui”, disse misteriosamente sem explicar por que, “vamos para a sua casa.” Pegamos o elevador e descemos para a garagem, onde João colocou o violão no porta-malas e assumiu o volante de um Monza verde metálico, que jamais imaginei que ele tivesse. Quando chegamos à praia, me lembrei de uma das grandes “lendas e mistérios de João Gilberto”, contada por Galvão dos Novos Baianos, e senti um frio na barriga. Diz a lenda que João saiu de carro com Galvão de madrugada pela Praia de Ipanema e que foi cruzando todos os sinais vermelhos, sem diminuir a marcha, sem olhar, conversando alegremente, com absoluta tranqüilidade. Mas, pouco adiante, num sinal aberto para ele, freou inesperadamente — justo a tempo de escapar de um carro que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade.
Por maior fé que tivesse em João, eu não estava disposto a experimentar tanta magia. Mas João dirigia devagar, admirando o mar noturno, ouvindo fitas de conjuntos vocais dos anos 40 e parando em todos os sinais vermelhos, do Leblon ao Arpoador, onde estacionamos e descemos para tomar água-de-coco, comer milho cozido e conversar. Quando chegamos ao meu apartamento, diante do mar de Ipanema, João sentou-se de frente para mim, me deu o violão e pediu que eu tocasse para ele. Eu toquei medroso e ele sorriu amoroso, pegou o violão com delicadeza, ficou um tempo em silêncio e cantou a noite inteira. No início de 1989, a pedido da Rainforest Foundation inglesa, produzi uma gravação coletiva, do tipo “We Are The World”, para uma campanha internacional em defesa dos índios e da Floresta Amazônica. Chamei Djavan, Sandra de Sá, Renato Russo, Gilberto Gil, Ivan Lins, Marisa Monte, Leila Pinheiro e outros que se identificavam com a causa e passamos um dia inteiro gravando nos estúdios da RCA. A música era meio chat, cada um cantando uma frase, mas o clima estava ótimo no estúdio e a performance do pessoal foi muito boa. Uma equipe inglesa
filmava tudo para o clip que seria exibido no mundo inteiro junto com artistas ingleses e americanos. Num intervalo da longuíssima gravação, Djavan me mostrou uma música que tinha acabado de fazer: um chorinho moderno, jazzístico e cheio de dissonâncias. Adorei. E mais ainda quando ele me pediu que fizesse a letra.
No dia seguinte ele me mandou uma fita com a melodia e comecei a trabalhar na letra. Mas não tive trabalho algum, as frases me vinham prontas à cabeça, algumas em inglês. Parecia que a letra já estava dentro da melodia, só era preciso revelá-la. Em pouco tempo estava pronta e passei por telefone a Djavan, que gostou muito, principalmente da mistura de versos em inglês e em português, que eu não sabia direito se funcionava. Mostramos a Marisa e ela decidiu incluí-la no seu show, que iniciaria sua turnê nacional em Salvador. Por puro acaso poético, eu estava em Salvador um dia antes, para ser homenageado com o Troféu Caymmi como “legenda viva da música brasileira” (sic). Coisas da Bahia. Muito mais emocionante foi, na noite seguinte, no teatro, ouvir Marisa cantando aquelas palavras que escrevi para o choro de Djavan: “Você bem sabe que eu não sei te dizer, tudo que sinto por você, mas você bem sabe que we always lie but we can never say good-bye...” E terminava com uma sugestão. A ela e principalmente a mim mesmo: “Vai ou não vai, que eu vou ou não vou, seja como for, com você, sem você, a gente tem é que crescer.”
De volta ao Rio, Tim Maia ao telefone: “Alô alô Nelsomotta, eu vou fazer um show no teatro do Hotel Nacional para comemorar 30 anos de carreira... (pausa), ou melhor, 30 anos de carreiras (gargalhada), e quero que você seja o diretor.” “Tim Maia, além de muito mais pesado do que o ar, você é absolutamente indirigível”, tentei argumentar. Era essa a sua graça e sua força. Ele sempre soube que músicas cantar, que músicos chamar, que arranjos fazer. Recebi o convite mais como uma demonstração de afeto, esperando ser útil de alguma
maneira. Ele disse que então eu seria uma espécie de “conselheiro”. E mandou botar meu nome no cartaz do show como diretor. Imaginem, aconselhar Tim Maia... Mas acabei sendo útil. “Escolhemos” as músicas, ele encomendou os arranjos a seus maestros e chamou os músicos: a Banda Vitória-Régia e uma orquestra de cordas. Mais de 30 músicos no palco. Os ensaios, no estúdio dele no Recreio dos Bandeirantes, correram animadíssimos e sem incidentes maiores que não esporros monumentais que Tim dava nos músicos com regularidade. Mas dois dias antes do show ele me telefonou apavorado: um oficial de Justiça estava batendo na sua porta com um mandado judicial. Disse que não iria abrir de jeito nenhum e implorou que eu fizesse alguma coisa.
Achei que o melhor era procurar um velho amigo de meu pai, o Dr. Hélio Saboya, secretário estadual de Segurança. Contei-lhe o problema, irresponsavelmente prometi que Tim se apresentaria depois do show, mas que ele por favor segurasse a onda por dois dias. Ele pediu
um tempo para saber o que estava acontecendo. Duas horas depois me ligou, às gargalhadas: no mandado que o oficial de Justiça queria entregar a Tim ele não era o réu, mas o autor da ação penal — uma das muitas que ajuizou contra empresários, músicos, gravadoras, revistas e jornais. E depois esqueceu. Com o African Bar abatido em pleno vôo, deixando legiões de órfãos e viúvos noturnos, no seu vácuo abrimos o Mamma África no Morro da Urca, para uma temporada de verão. Era a mesma fórmula vitoriosa, só que muito maior e mais popular, com a decoração misturando elementos africanos com a exuberância da floresta tropical do morro. O público gostou: estava cansado de rock, desprezava a lambada e adorou a negritude musical. Além de duas pistas de dança ao ar livre, transformamos o restaurante envidraçado em um piano-bar, com vista para a Baía de Guanabara, onde apresentamos shows intimistas com Johnny Alf, Angela Ro-Rô e I Adriana Calcanhoto. A pista fervia com os afro-hits de Dom Pepe e, no palco, 15 percussionistas comandados por Repolho tocavam junto com os sucessos de Manu Dibango e do Olodum. E o público pulava feito pipoca. A coisa estava preta, no bom sentido.
Um dos maiores sucessos do ano é Djavan, com a música e o Lp Oceano, no qual também estavam o nosso choro “Você bem sabe” e “Vida real”, uma versão que fiz para o lindíssimo bolero mexicano “Dejame ir”, um clássico da noite que ele cantava desde seus tempos de piano-bar, quando nos conhecemos. Em seguida produzi o disco de Sandra de Sá e dirigi seu show em temporada nacional. Gostei de Sandra desde a primeira vez que a vi na televisão, cantando “Olhos coloridos” em um festival. Há muito tempo eu a considerava, além de querida amiga, uma grande cantora e discutia com ela uma realidade chocante: na entrada dos anos 90 ela era praticamente a única cantora negra do Brasil, além das “sambistas” como Alcione ou Dona Ivone Lara, num país majoritariamente negro e mestiço. Era como se a elas fosse permitido cantar apenas samba. Não se ouviam no Brasil cantoras negras fazendo sucesso e cantando funks, rocks, blues ou baladas. Havia muitos homens, sim, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, Jorge Ben, Tim Maia, Emílio Santiago, Luiz Melodia, tantos. Mas as grandes cantoras, Gal, Elis, Bethânia, Rita Lee, Simone, Beth Carvalho, Clara Nunes, Marina, Elba Ramalho, Leila Pinheiro, eram todas brancas. Nos Estados Unidos, ao contrário, as grandes eram quase todas negras. ‘A própria Sandra, depois de seu início funk, só conseguia fazer sucesso com baladas sentimentais da dupla Michael Sullivan e Paulo Massadas. Sandra queria mudar, para muito melhor. Aceitei prontamente seu convite para fazer o disco, chamamos Guto Graça Mello para a direção musical e abrimos os trabalhos. Os pontos altos foram uma regravação a capela, só com a voz de Sandra e os tambores do Olodum, de “Charles anjo 45” e a participação de Marina e Djavan em “Slogan”, do grande mestre do Black Rio, Cassiano.
Mas o marketing da gravadora se decepcionou com a sofisticação do repertório e considerou inútil qualquer esforço promocional, as rádios não tocaram e o disco não aconteceu. Sandra voltou às baladas românticas. O país seguia ladeira abaixo. O governo Sarney se desmancha, desmoralizado pela moratória, com a inflação passando de 50% ao mês. As instituições democráticas recém-restauradas estão abaladas, o Congresso promulga uma Constituição aumentando os gastos e diminuindo as receitas do Estado, o Brasil está quebrado. É o momento mais favorável para o surgimento de demagogos, populistas, messiânicos e oportunistas para navegar nas ondas da insatisfação popular. Assustado com a ascensão vertiginosa de Fernando Collor e preocupado com o crescimento da candidatura de Lula, entrei na campanha com entusiasmo. Participei da propaganda eleitoral apoiando a candidatura de Mário Covas, participei de alguns eventos e discuti muita política. Afinal, aos 45 anos de idade eu ia votar pela primeira vez para presidente. No dia da eleição, coloquei a cédula na urna com a mão trêmula de emoção.
Com a derrota de Covas, enfrentei o segundo turno entre o que via como um populismo de direita e um de esquerda, os dois desastrosos para o Brasil. Collor era odioso, com seu olhar maníaco, a arrogância autoritária das velhas oligarquias, o apoio da elites mais retrógradas.
Lula seria a subida ao poder da velha esquerda atrasada e populista, um passo atrás no movimento liberal do mundo, no início do processo de globalização. Frustrado, votei em branco. Em 1989, duas mortes, de certa forma esperadas, me entristeceram profundamente e o país perdeu dois de seus maiores artistas, Nara Leão e Raul Seixas, ela com 46 anos e ele com 44. Dois amigos queridos, com quem dividi tantos momentos de alegria e de música, Nara e Raul foram opostos em tudo e se tornaram igualmente representativos da maior qualidade da música brasileira: a diversidade. A ascensão de Collor marca o início do boom da música sertaneja no Brasil, uma das fases mais tristes de nossa exuberante história musical.
A “República de Alagoas” sobe ao poder, com o exibicionismo e a voracidade de seus homens e mulheres, ocupando cargos-chave da administração. Duplas sertanejas, dezenas delas, invadem os rádios e os vídeos, cantando com vozes agudas e em terças sofridas as mesmas desventuras sentimentais que eu odiava na minha adolescência em Copacabana, antes da bossa nova. Nem o confisco dos depósitos e poupanças foi suficiente: após poucos meses de estabilidade artificial, a inflação volta a explodir e a recessão se aprofunda. Em Turim, assisto à Seleção Brasileira ser eliminada pela Argentina nas oitavas-de-final na Copa do Mundo. Em Roma, depois da derrota, recebo a notícia da morte de Cazuza, com 32 anos, que marca o fim do Rock Brasil como movimento musical. André Midani é promovido a vice-presidente da Warner Latina, em Nova York, e se casa com a viúva de Nesuhi Ertegun, Selma. No Brasil, o novo presidente da companhia é Beto Boaventura, vindo da EMI, onde trabalhamos juntos no lançamento de Marisa Monte. Convidado por Beto e André, assumi a direção artística da Warner no Brasil, com salário de diretor de multinacional, carro, cartão de crédito e a promessa de liberdade para formar um novo cast.
Mal assumi, mais um choque econômico abalou o mercado de discos em geral e a Warner em especial. Demissões em massa, officeboys, secretárias, assistentes, choradeira nos corredores, vendas cada vez menores e salários achatados. Pior ainda: Beto, em desespero, decidiu ter duas divisões artísticas, uma pop, a minha, e outra sertaneja, do compositor pernambucano Paulo Debétio. A verba de produção e marketing, já muito reduzida, foi dividida e, na ânsia de sucessos rápidos e baratos, investida na área sertaneja. A mim restou o suficiente para gravar os discos já programados de artistas contratados como os Titãs, Gilberto Gil, Barão Vermelho e outros poucos. Nada para investir em novos artistas. Depois de um lobby incansável, consegui que Beto fosse comigo à Bahia para contratarmos um dos artistas mais talentosos da nova geração, Carlinhos Brown. Após longas negociações, Carlinhos, que estava cheio de dívidas, assinou. Recebeu um adiantamento de US$ 8 mil e pouco depois a Warner, sem dinheiro para produzir o disco, teve que rescindir o contrato. Os discos de Gil, dos Titãs e do Barão Vermelho têm boas críticas mas vendas decepcionantes. As bandas de rock vivem um dos piores anos de suas carreiras. A Warner, o pior de sua história. E eu um dos piores de minha vida. Com um ótimo salário e numa posição para a qual imaginava que tinha me preparado a vida inteira, eu estava cada dia mais frustrado. Tim Maia me convida para visitá-lo no seu apartamento na Barra da Tijuca e manda chegar cedo. Às nove da manhã já o encontro alegre e bem-disposto, de bermudas e Rider, acabando de tomar um café da manhã reforçado, com ovos, frutas e bolo. Diz que acordou às sete e esse já é seu segundo. Acende um imenso baseado, pede café e ovos para mim e me toca uma fita. É de seu show no Olympia de São Paulo, com boa qualidade de gravação e grande performance de Tim. Quer saber se a Warner quer comprar.
Claro que quer, respondo sem hesitar, sem saber ainda de onde vou tirar dinheiro. Tim quer um “levado” de US$ 30 mil pela fita e mais royalties de 16% sobre as vendas. Implorei a Beto que me desse o dinheiro, argumentei que era um disco popular, que podia vender bem. E afinal já estava quase pronto. Tínhamos apenas que regravar alguns instrumentos, Tim queria refazer algumas vozes no estúdio e mixar. Beto topou e Tim assinou. Durante três semanas, todos os dias de manhã nos encontramos no estúdio Impressão Digital, na Barra, para trabalhar no disco. Mais que um trabalho, foi um divertimento conviver com Tim, seus múltiplos lanches e baseados e vice-versa. Era um prazer aprender com ele, um mestre dos estúdios, como se encontra o timbre de cada instrumento, como se utiliza melhor a tecnologia. Era uma alegria ouvi-lo cantar seus grandes sucessos e contar suas melhores piadas. Tim estava sempre de bom humor, não houve qualquer problema e o disco ficou muito bonito. Mesmo lançado no pior momento da crise econômica, começou a vender lentamente, ganhou força e estourou. Foi um dos raríssimos lançamentos da Warner a fazer
sucesso no ano. Mas provocou a minha primeira e única briga com Tim Maia. Feliz com o sucesso do disco, um dia abro o jornal e leio uma entrevista de Tim, reclamando que foi explorado e passado para trás pela Warner. Fiquei furioso, me senti atingido, afinal eu é que tinha negociado o contrato com ele. E aceitado, sem regatear ou discutir, exatamente tudo o que ele tinha pedido. Me senti traído e escrevi-lhe uma carta furibunda. Falando sobre 20 anos de amizade e lealdade, lembrando os termos do nosso acordo, dizendo que ele era um idiota por não perceber que eu sempre estive do lado dele e fiz exatamente o que ele me pediu. “Você se queixa da solidão mas trata seus amigos assim”, eu reclamava, reiterando que gostava muito dele e que adorava a sua música. Mas que ele era um maluco irresponsável. Dois dias depois, não acreditei quando vi a minha carta, que não mostrei a ninguém, que era pessoal e confidencial, publicada no jornal. Como foi parar ali? Dada pelo próprio Tim Maia, informava a matéria. Uma carta que o esculhambava e assegurava que todas as suas exigências foram cumpridas e que ele não tinha nenhuma razão. Alguns dias depois, uma inconfundível voz de trovão ao telefone: “Alô? Nelsomotta? Adivinha quem está falando?” “Ed Motta”, provoquei.
“Olha aqui, ô Nelsomotta, esse meu sobrinho Eduardo canta direitinho mas é burro porque não gravou nenhuma música romântica. Ele precisa namorar muito, ser bem corneado e gravar música romântica. Aí ele vai entender por que o Júlio Iglesias vende tanto disco.” E voltou ao motivo inicial do telefonema: “Ô Nelsomotta, nós dois estamos parecendo duas velhas ridículas batendo boca no supermercado, acho que nós estamos mesmo é na andropausa, que é a menopausa masculina. Parece coisa ‘ de doidão. Sugiro que esta briga seja dada por encerrada.”
Proposta aceita entre gargalhadas. Contei animado a homenagem que minhas filhas fizeram a ele: “As meninas trouxeram um gatinho para casa e puseram nele o nome de Tim...” “Já sei”, ele interrompeu, “porque é gordo, preto e cafajeste!” Não, o gato era cinzento, magro e amoroso. A música sertaneja dominou as ruas e a classe média, foi a trilha sonora das festas do poder em Brasília e em São Paulo. As peruas da “República de Alagoas” dançavam e sonhavam com Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo. Uma foto emblemática do governo Collor mostra o presidente e a primeira-dama Rosane, alegres e sorridentes, cercados por 60 duplas sertanejas na Casa da Dinda. Para um garoto de classe média de Copacabana dos anos 50 não poderia haver suplício maior do que ouvir 60 duplas caipiras cantando em terças ao mesmo tempo. Para um jovem libertário de 68 não haveria horror maior do que imaginar o Brasil sob o estilo, a ideologia e a rapinagem do governo Collor. Os sertanejos não têm culpa de nada, além do mau gosto. Fazem a música que o Brasil quer, a que eles gostam, o som dos “anos Collor”.
A música ingênua e melancólica do próspero interior de São Paulo, de Minas e de Goiás se urbaniza e se eletrifica, enche estádios, voa de jatinhos e vende milhões de discos. As estrelas da MPB dificilmente conseguem que seus discos toquem no rádio, seus shows perdem público, muitos direcionam sua carreira para o exterior. As gravadoras só pensam em sertanejos, eles são as grandes estrelas dos programas populares de televisão. A vida na Warner estava insuportável. Durante toda a minha vida musical busquei a diversidade e a tolerância, explorei à exaustão as possibilidades de harmonizar contrastes, sempre me orgulhei de não ter preconceitos e de ser capaz de gostar de música de qualquer gênero e de qualquer lugar, de qualquer época. Mas a onda sertaneja era demais, não havia ali nada que eu gostasse. Nem no Brasil em que estávamos vivendo. Mas nem tudo estava ruim: no primeiro semestre fui e voltei seis vezes a Sevilha, uma de minhas cidades mais queridas, como produtor dos shows no pavilhão brasileiro da Expo-92, a convite do comissário, Olavo Monteiro de Carvalho. Tudo começou muito bem com o concerto de Milton Nascimento, um dos artistas brasileiros de maior prestígio na Espanha. Seguiram-se a cada mês Maria Bethânia, Simone, Lulu Santos, Djavan, Marisa Monte e Tom Jobim, com o teatro lotado e ótimas críticas, e a programação foi suspensa: o dinheiro tinha acabado.
Quando acabou o dinheiro em Sevilha, voltei ao Brasil e negociei com Beto minha saída da Warner. E não indiquei ninguém para meu lugar: ele não tinha dinheiro sequer para pagar um substituto, mesmo com um salário muito menor. E afinal, diretor artístico para quê? Aliviado, abri o coração em um artigo furibundo de meia página, publicado ao mesmo tempo em O Globo e na Folha de S. Paulo, denunciando a pobreza rítmica, melódica, harmônica e poética da onda sertaneja e saudando a chegada do samba-reggae da baiana Daniela Mercury, como uma Iansã vingadora, uma guerreira de espada na mão e pernas de fora, abrindo uma clareira de luz e alegria no meio das trevas colloridas. Não era só a música, o Brasil estava insuportável, muitos amigos estavam debandando. Comecei a planejar a retirada, a imaginar uma pequena gravadora na Europa ou nos Estados Unidos, para produzir, promover e distribuir internacionalmente a música brasileira de que eu gostava — e que naquele momento parecia mais admirada e querida no exterior do que no Brasil. Acompanhei apaixonadamente o desenvolvimento do processo de impeachment de Collor e as descobertas diárias da rede de corrupção no seu governo. Quando, nos estertores finais, ele pediu ao povo que o apoiasse vestindo verde e amarelo no domingo, 16 de agosto, comprei a passagem. De manhã, todo de preto, saí para o calçadão de Ipanema e me integrei a um mar rumoroso de gente vestida de negro da cabeça aos pés, carregando bandeiras negras e cartazes e gritando pela saída de Collor. Até os cachorros estavam de preto naquele dia luminoso. À noite embarquei para Nova York. Para começar tudo de novo.
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