02 - Cassino da Urca
Lembranças: viagem ao passado. Algumas imagens são bem nítidas. Fecho os olhos e me vejo no Cassino da Urca. Ao apagar das luzes, posso sentir o frio do corrimão dourado, a maciez do tapete ouro-velho, o perfume francês das mulheres no ar, e aí, do alto da escadaria, vejo mulheres lindas, homens elegantes em seus smokings e, o mais impressionante, os shows. Que maravilha de shows! Irrequieto como qualquer garoto de cinco anos, estou descendo de degrau em degrau, de bunda, a escada acarpetada até o final, subindo novamente e recomeçando a brincadeira, enquanto assisto aos shows de Jean Sablon, Josephine Baker, Charles Trenet, Carmen Miranda e, claro, de meus pais, Dalva e Herivelto. Entra a dupla de acrobatas Vicky and Joy : seus corpos, cobertos de purpurina dourada ou prateada, evoluem em câmera lenta, diante de meus olhos de criança, extasiados com a beleza dos movimentos. E as dançarinas, mulheres lindas de origem europeia, em geral muito altas, com figurinos muito ricos… Interessante: vejo agora que minha fixação por mulheres altas e loiras deve ter nascido aí, olhando as gringas. Assim, entrando pela porta dos artistas no Cassino da Urca, derrapando pelas escadas, fui apresentado ao mundo artístico de meus pais. O jogo nos cassinos funcionava a todo o vapor. Recebia turistas do Brasil e do exterior. Motoristas de táxi, garçons, crupiês, arrumadeiras, maîtres, músicos, bailarinos, cantores, cozinheiros, eletricistas. O jogo e os shows milionários davam trabalho a milhares de profissionais. Os espetáculos se alternavam entre os cassinos do país: Urca, Copacabana, Icaraí, Pampulha, Santos, Guarujá, Quitandinha. O Brasil assistia a grandes artistas internacionais: Pedro Vargas (México); Bing Crosby (eua); Yma Sumac (Peru); Trio Los Panchos (México), que gravou “Caminhemos”, de Herivelto, para a América Latina; da França, Jean Sablon, Charles Trenet, George Boulanger, Josephine Baker, que contracenou com Grande Otelo; nossa Carmen Miranda; entre tantos outros anônimos talentos vindos de todas as partes, trazendo brilho e alegria ao público, lotando os cassinos e criando no Brasil um polo do show business mundial. Morávamos na Urca, ao lado do Cassino. O dono, Joaquim Rolla, fazia questão de apresentar também shows com elenco nacional, a chamada “prata da casa”. Herivelto era o diretor artístico da parte nacional, ao lado de Carlos Machado. Junto com Chianca de Garcia, montou um dos maiores espetáculos já vistos no Rio: Vem, a Bahia te espera, com tema especialmente composto por eles e um dos maiores sucessos do Trio de Ouro. O show tinha a participação de Grande Otelo, nosso vizinho na Urca. Ele não saía lá de casa! Também eram nossos vizinhos Carmen Miranda, Dick Farney,
Nelson Gonçalves, Lourdinha Bittencourt, entre outros artistas. A Urca foi um lugar fantástico nos anos 40, até perder o brilho quando o presidente recém-eleito, general Eurico Gaspar Dutra, em seu primeiro despacho, decretou, em 1946, o fechamento dos cassinos em todo o território nacional, deixando sem trabalho famílias inteiras de um exército de profissionais. O povo brasileiro e a classe artística, principalmente, se sentiram traídos, pois em campanha, quando já se especulava sobre o destino dos cassinos, Dutra prometeu jamais fazer isso. Muito se discute sobre os porquês dessa atitude, porém o que sempre vem à tona é que Dutra teria sucumbido à dona Santinha, sua mulher, conhecida carola. Em nossa pesquisa, nos aproximamos de uma personagem que viveu de perto toda essa história e pôde nos contar o que realmente se passou. Essa senhora — que nos pediu sigilo de seu nome — frequentava a mesma mesa de jogo que o filho de Santinha e do presidente Dutra. Ele jogava sem controle algum, vivia mergulhado em dívidas. A família acudia sempre. Comentava-se na época que chegaram ao ponto de vender a maravilhosa casa em que viviam na rua São Clemente, onde havia morado Rui Barbosa e hoje é um espaço cultural da cidade, para pagar suas dívidas de jogo. Daí a ojeriza de dona Santinha e do general Dutra pelo jogo, que consideravam coisa do diabo. Jamais assistirei novamente a cenas de tanta tristeza, revolta, indignação, sentimento de traição, como quando fecharam o Cassino da Urca. Famílias inteiras indo em romaria até o Palácio do Catete, então sede do governo federal, pedindo, implorando ao presidente. Chefes de família se suicidando, problemas de toda ordem. Tudo em vão. O Brasil, que era colorido, ficou cinza, negro, banhado em lágrimas. E, a partir daí, músicos, bailarinos, girls, contra-regras bus-caram outras soluções para poder continuar vivendo daquilo que sabiam fazer. Nasceram os espetáculos em nightclubs: Night and Day, Grill do Copacabana Palace, Cassino Atlântico. Surgiram os primeiros shows na praça Tiradentes, nos teatros João Caetano, Carlos Gomes e Recreio. Nessa fase, despontou o maior produtor de shows que este país conheceu. Walter Pinto foi o criador do Teatro de Revista, espetáculo de esquetes variados, reunindo cantores, humoristas, bailarinos e as vedetes. Nomes como Virgínia Lane, Eloína, Wilza Carla e Carmen Verônica estrelaram seus shows. Nessa época, mesmo que os artistas e compositores não morassem no mesmo bairro, a música popular brasileira era uma única e grande família. Todos se frequentavam, trocavam experiências. Nossa casa se tornou ponto de encontro de compositores, cantores, músicos, artistas de teatro, atraídos pela inteligência, pelo humor e espírito crítico de meu pai, no auge do sucesso do Trio de Ouro. Um compositor, apesar de sua tendência clássica, ia à nossa casa com frequência. Dizia: “Herivelto, como é possível, você não sabendo uma nota musical, tocando mal esse violão, ser autor de uma maravilha como ‘Ave Maria no morro’? Enquanto eu, formado, erudito, não consegui ainda fazer algo assim?”. Seu nome era Heitor Villa-Lobos. Amante da música popular brasileira, admirador do talento inato de Herivelto e apaixonado por Dalva, a quem considerava a maior cantora de todos os tempos, impressionadíssimo por sua voz, Villa-Lobos tinha personalidade forte e sistemática. Estava sempre tentando convencer Herivelto a estudar música. Quando diziam que Villa havia chegado, ele resmungava: “Lá vem aquele chato”. Mas havia muito respeito nessa intimidade, e Villa-Lobos, quando resolveu se mudar para a Europa, insistiu muito com Herivelto para ir também. “Fazer o que no estrangeiro?”, dizia Herivelto. “Não sei a língua deles, nem sei música, como você mesmo fala.” “Ora, Herivelto, com esse talento todo, basta estudar um pouco que terá a Europa a seus pés. E, não se esqueça, lá é o berço sagrado da música.” Mas meu pai não deu bola àquele convite para o berço da civilização ocidental.
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