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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




01 - Primeiras Lembranças

Corria já metade de 1942. O mundo chorava a perda de entes queridos de todas as nacionalidades na Segunda Guerra Mundial. No Brasil, escutávamos Hitler no rádio, hipnotizando milhões de alemães, falando ao restante da humanidade sobre todo o seu poderio e a disposição de mais invasões, continuando seu sonho paranóico de conquistar o mundo. Países que nem imaginavam participar, pois ainda lhes doíam as feridas da Primeira Guerra, foram obrigados a tomar posição diante da louca investida. Quando a Inglaterra foi atacada, o grupo dos Aliados cresceu. Os Estados Unidos se tornaram sede e porta-voz de todo um bloco, empenhados em conter o avanço ensandecido de Hitler. O Brasil também se alinhou e, naturalmente, foi convocado a enviar tropas. E derramou seu sangue na Itália, onde o soldado brasileiro demonstrou força e coragem na tomada de Monte Castelo. Aqui na pátria, Getúlio Vargas governava um país em formação, cheio de problemas e ansioso por conquistar uma posição mundial que assegurasse lugar de destaque no conceito universal. Assim, quando os Estados Unidos pediram a coleta de qualquer espécie de metal a ser fundido e transformado em matéria-prima para construção de armamentos e até aviões que abasteceriam o front, começou a Campanha das Pirâmides. O povo jogava na rua o que lhe sobrava ou encontrava de metal, em forma de brinquedo, mesa, cadeira, bicicleta, tudo o que pudesse ser derretido e enviado aos Estados Unidos. Essa campanha era abrilhantada com shows artísticos — como é antiga essa história de showmício! A grande patronesse era Darcy Vargas, a quem os artistas devotavam carinho especial. Em vários pontos da cidade acumulavam-se as enormes pirâmides de ferro-velho. No encerramento da campanha, realizou-se no Teatro Municipal uma grande festa, patrocinada por “dona” Darcy Vargas. O grand finale era o show do Trio de Ouro, formado por Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas, com a participação de um garotinho de quatro anos, filho de Dalva e Herivelto: eu. Fui colocado em cima de uma cadeira, para aparecer um pouco mais naquela imensidão  de palco, devidamente fardado, de branco, olhos verdes bem arregalados, cantando o hino especialmente composto por Herivelto para a Campanha das Pirâmides. Posso considerar esse show minha estreia como cantor. É minha primeira lembrança de palco, de público me ouvindo cantar. Mas havia o bicho-papão: a guerra. Nosso vizinho na Urca era um general do Exército. Tinha fotos recém-chegadas das batalhas, enviadas pelo filho. Arame farpado espalhado por um campo, pessoas penduradas ou enroscadas, mortas, abatidas por tiros. Essas imagens me fizeram perder o sono muitas noites. O fantasma da guerra nos rondava, a narrativa das pessoas que retornavam me perturbava. As fotografias mostradas pelo general me deixavam uma sensação cinzenta no ar. Triste. A guerra, mesmo a distância, dava uma impressão de perda. De choque. De luto. Como não havia televisão, era o jornal antes dos filmes no cinema que nos dava ideia do que ia pelo mundo. Eram imagens fortes. Ver Hitler discursando, eu não entendia bem por quê, me dava uma profunda tristeza. Depressão. Até hoje as reportagens que tratam da guerra me evocam uma sensação familiar. Como se eu tivesse vivido aquilo tudo de perto. Guerra e luto, música e alegria. Minha mãe gravava a versão para o lançamento brasileiro do grande clássico de Walt Disney, Branca de Neve e os sete anões, enquanto eu dublava o anãozinho Dengoso. Dalva interpretava a Branca de Neve. A versão tinha sido feita pelo compositor Braguinha, o célebre João de Barro, autor de “Carinhoso”, “Pastorinhas”, “Touradas em Madrid” e dúzias de outras obras-primas do Carnaval brasileiro. Braguinha era diretor do trabalho de dublagem e também dono do estúdio, onde não havia ar-condicionado. Ele conta que eu, muito garoto, fui ficando agoniado com o calor; aos poucos, fui pedindo para tirar a roupa. Tira uma peça, tira outra… acabei cantando completamente nu, sob os olhares invejosos dos adultos presentes no estúdio. Um pouquinho mais velho, aos oito anos, participava das gravações do Trio de Ouro com meu pai, fazendo a terça em alguns vocais ou tocando tamborim. Era um desafio gravar nessa época. Tratava-se do processo mono, isto é, gravava-se um cantor acompanhado de orquestra, ritmistas e coro em apenas um canal e registrava-se a matriz num disco de cera importada, que dava origem aos discos de 78 rotações. Ensaiava-se uma música à exaustão: 
além de a execução precisar estar perfeita, não se podia exceder os três minutos e meio, tempo máximo de registro na cera. O produtor ficava cronometrando o ensaio até atingir o tempo adequado. A cera usada para registrar o som era muito cara, não podia ser reaproveitada, e qualquer erro era fatal. Herivelto, apesar de todas essas complicações, introduziu inovações. Ele foi um mulatólogo ilustre, influência de seu sangue português, e pioneiro em colocar, nos palcos, grupos de sambistas oriundos das escolas de samba e dos morros. Seu grupo de sambistas (na época diziam “sua escola de samba”) era composto de mulatas do melhor samba-no pé e de ritmistas dos mais afinados, que ele punha no estúdio para gravar. A Escola de Samba de Herivelto Martins, mais tarde Escola de Samba de Salão, era composta de oito a dez mulatas e outros tantos ritmistas. Jupira, Cordélia, Sureia, Vanda, Ruth (depois mulher de Luís Bonfá), Brotinho e Carmen Costa, mais tarde cantora famosa, são algumas das passistas que se destacaram ao seu lado. Abel Ferreira, Valter Boca de Sopa, Leonel do Trombone, Buci Moreira, Arnô Carnegal e Boca da Cuíca são nomes ilustres das raízes do samba e de alguns de seus músicos e ritmistas. O compositor Monsueto Menezes, também: o autor de “A fonte secou” era o ritmista mais divertido da Escola de Samba de Herivelto. Minha mãe contava uma história engraçada de um desses ritmistas. Um de meus brinquedos preferidos era um “cachorrinho” improvisado com um quadro (o rosto de um índio com cocar). Dalva tinha ganho a tela de um dos ritmistas da Escola de meu pai. Ninguém deu muita bola. Eu puxava aquele rosto de índio de um lado para o outro, amarrado por um barbante, dizendo que era meu “cachorro”. O pintor era “tocador de prato” na Escola de Samba de meu pai. Seu nome: Heitor dos Prazeres. Isso mesmo! Este meu “cachorrinho” era o primeiro quadro de um pintor que se tornaria um dos mais importantes primitivistas do Brasil, premiado e celebrado mundo afora. Quando tomamos conhecimento disso, muito tempo depois, com o nome de Heitor despontando no mercado das artes, foi aquela correria na casa de minha mãe: “Onde está aquele cachorrinho que o Pery arrastava?”. Felizmente, encontraram o quadro no sótão da casa de minha mãe, em Jacarepaguá. E hoje, orgulhosamente, ele está na parede de minha sala.



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