Introdução
Cresci Sentindo minha vida devassada e narrada por uma imprensa marrom, sem o menor respeito nem senso de dignidade. Minha personalidade se formou sob enorme pressão. Não sentia o direito de ter opiniões próprias ou de discordar de algo em nossa vida. Tinha medo de pensar, pois achava que meu pensamento seria descoberto por quem estivesse por perto. Minha opinião sofria sempre um prejulgamento, para não ferir ou magoar ninguém. Isso sem contar a sensação de desamparo, de solidão, e o pavor de tomar qualquer atitude: podia não estar de acordo com algum comando (colégio, meu pai, Exército…). Assim, passei a ter profundo medo de autoridade. Medo de professor. Medo de meu pai. Medo de qualquer pai. Medo de polícia. Medo de barulho. Medo de escândalo. Medo de tudo. Medo de viver no Brasil. Acho que esta é a razão maior que me levou ao México por quase dois anos e depois por mais quatro aos Estados Unidos. E, ainda hoje, me leva a buscar um espaço profissional fora do Brasil. Talvez seja porque lá fora não me sinto tão nu. Essa nudez forçada e brutal a que fui submetido aqui desde criança. Sei que é um contraste enorme, porque ninguém ama mais este país do que eu. E cada vez que ando pelas ruas e alguém me pergunta se sou filho de Dalva de Oliveira, o orgulho de ter uma mãe consagrada por todo um país é muito grande. Só que ao mesmo tempo isso me desnuda, porque sei — ou imagino — estar ali alguém que sabe de minha história, que participou de minha intimidade, por meio do conhecimento de um drama. Ali está alguém que, na maioria das vezes, numa ingênua postura, para engrandecer minha mãe, se colocará contra meu pai, ou pelo menos dirá: “Seu pai foi grande, mas sua mãe foi muito maior!”. Tudo isso é muito forte. E olhem que já tratei muito de minhas feridas, ou não poderia escrever este livro com o máximo de amor e a imparcialidade que pretendo, num verdadeiro processo de catarse. A eterna exposição que a vida de artista traz me ensinou — na marra! — a administrar isso em meu interior e a superar os fantasmas. Posso hoje, por livre iniciativa e premente necessidade interior, contar toda a minha história com meus pais. Talvez seja essa a razão da apreensão de meus irmãos com tal relato: por não terem vida pública como eu, não tiveram de continuar a conviver com tudo isso. A partir do momento em que nossa história saiu de cena, virando “jornal de ontem”, puderam ir se beneficiando do véu do esquecimento que o tempo estende. Creio até que sem muito esforço. Para eles, hoje em dia, seria como se não tivesse havido nada: afinal, quase meio século se passou… Daí manifestarem tanta reação à ideia do livro, à ideia de revolver os fantasmas já enterrados por eles! O que não imaginam é que eu tenha sido obrigado a encarar sempre esses nossos fantasmas, pelas ruas e pelos palcos da vida. Nunca tive o direito à bênção do esquecimento. E, mais terrível ainda, ao ser artista também, passei a enfrentar a eterna cobrança das pessoas, pois carrego nos ombros o fardo da comparação com o brilho de meus pais, convivendo com isso minuto a minuto. Sei que, talvez, ainda precise limpar melhor meus porões, empoeirados e abençoados por uma herança que me pertence e da qual não pretendo abrir mão. Uma herança conflitante, em tonalidades muitas vezes diferentes das que gostaria de encontrar. Mas, ao vivenciá-la, não tenho o que negar: foi pintada com a verdade e a mais profunda emoção! Além de tudo, devido ao feeling universal que a vida de artista sem fronteiras me trouxe, sei também da importância que os mitos Dalva e Herivelto alcançaram em nosso país, como sei da premência de passar a limpo com respeito e amor, sem maldade, suas histórias, eternizando-os para a História.
Pery Ribeiro
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