Mário de Andrade intuiu que o ethos da cultura popular traz consigo as marcas da história: é palimpsesto do tempo. E que, atravessando tecnologias e contextos históricos, os gestos vocais e de escuta guardam os fragmentos de essencialidade da gaia ciência.
De seu contato com os índios Pacáas Novos, Mário anotou: “Pra eles o som e o dom da fala são imoralíssimos e da mais formidável sensualidade. As vergonhas e as partes não mostráveis dos corpos não são as que a gente consideramos assim. (...). Consideram o nariz e as orelhas, as partes mais vergonhosas do corpo, que não se deve mostrar a ninguém, nem pros pais, só marido e mulher na mais rigorosa intimidade. Escutar, pra eles, é o que chamamos de pecado mortal. Falar pra eles é o máximo gesto sexual” (O turista aprendiz. 2002: 85-86). E sobre os “Índios Dó-Mi-Sol”, Mário observa que mais importante do que aquilo que se comunica está o modo de se comunicar.
Para o criador de Macunaíma, mais do que uma colagem de sonoridades indígenas, africanas e europeias a música brasileira deveria ser o amálgama unificador indistinguível das configurações artísticas nacionais. Social (coletiva) e primitiva a música brasileira deveria rejeitar exotismos e estrangeirismos que maculasse a pureza do folclore fonte e matéria prima. Caberia ao cancionista mesclar inconscientemente cultura erudita e cultura popular. Ou seja, promover a utópica mistura da nação com a modernidade.
A questão é que certa hierarquização ainda persiste na classificação de canção. Não que o popular deva se imiscuir com o popularesco, mas a percepção marioandradina parece ter dado mais argumentação aos apocalípticos do que aos integrados, para usar os termos de Umberto Eco, se é que podemos separar tais instâncias tão nitidamente assim no Brasil.
Parece que herdamos de nossa matriz indígena a fala como espaço da exuberância erótica, da proliferação barroca, da polifonia vocal. “Máximo gesto da expressão vocal”, falar é roçar o outro, entrar em contato, se misturar: falar sempre, falar mais é nossa questão brasileira no eterno retorno da pulsão nacionalista distintiva. Daí que para entender as relações de poder na semiótica Brasil não basta pensar apenas o embranquecimento da população, mas também, em comunhão perspectiva, o enegrecimento: seus pontos de resistência diante das atrocidades do colonizador. E mesmo a indigenização.
Trago à discussão três exemplos que considero significativos de tais resistências. No capítulo 5 do Sermão IX, Padre Antonio Vieira comenta “o milagre da salvação da armada do Príncipe Dom João de Áustria no Mar de Lepanto”. Vieira lembra que, no Apocalipse, São João diferencia as criaturas senhoras do mar. Por exemplo, a baleia que “comeu” Jonas e o peixe que “salvou” João da Áustria.
Anota Vieira: “Passando de Nápoles para Túnis com grossa armada, foi tal naquela travessa a fúria de tormenta, que os pilotos, desconfiados de todo o remédio e indústria humana, se deram por perdidos. Recorrendo, porém, todos aos socorros do céu, e invocando o católico e piedoso príncipe a sua singular patrona, e suplicando-a que, assim como lhe tinha dado vitória contra os inimigos, lha concedesse também contra os elementos, que sucedeu? Caso verdadeiramente raro, e com perigo sobre perigo e milagre sobre milagre, duas vezes maravilhoso. No mesmo ponto cessou a tempestade, mas não cessou o perigo. Cessou a tempestade, porque subitamente ficou o vento calmo e o mar leite; mas não cessou o perigo, porque o galeão que levava a pessoa real, sendo o mais forte e poderoso vaso de toda a armada, visivelmente se ia a pique. (...) Mas a soberana Rainha e Senhora do mar não sabe fazer mercês imperfeitas. Assim como tinha cessado a tempestade do vento, assim cessou a da água. (...) Com a força da tempestade tinha-se aberto um rombo junto à quilha da nau, por onde a borbotões entrava o mar, quando um peixe do mesmo tamanho, por instinto da poderosa mão que o governava, se meteu pela mesma abertura, de tal sorte ajustado ou entalhado nela, que, sem poder tornar atrás nem passar adiante, cerrou totalmente aquela porta. (...). Assim se vê hoje pintado em Nápoles, e pendente ante os altares da Virgem Santíssima, o retrato de todo o sucesso: a tempestade, o galeão naufragante, e o peixe que o salvou atravessado, em perpétuo troféu e monumento do soberano poder e nome de Maria, como Senhora, não só do mar, mas de quanto sobre ele navega ou dentro nele vive”.
Como não reconhecer aqui fragmentos do mito mariano de Nossa Senhora Aparecida, padroeira negra(?) do Brasil? Bem como de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Ajuda, de Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição. Todas Maria. Todas sincretizadas a Iemanjá, Oxum e outros orixás aquáticos vindos de cantos distintos da África e reunidos no (uno) Brasil. Várias, de cada região geograficamente específica da África, aqui Iemanjá é uma, como Maria, em permanente processo de proliferação e condensação do mito.
Sobre Nossa Senhora Aparecida, no livro Mamãe me adora, o escritor Luís Capucho registra que debaixo da famosa basílica haveria uma gruta onde vive uma sereiazinha, que não fala português nem se comunica com ninguém. Quem sabe não seria Nananborocô, a mãe primeira do panteão afro-brasileiro, orixá das águas paradas, velha sereia?
O segundo exemplo de permanência da resistência vem do livro O outro pé da sereia, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da Virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: “Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem” (COUTO: 2006, p. 113).
Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural, para permanecer sendo o que se é. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem).
E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.
E assim chego ao terceiro exemplo. Como não reconhecer o recolhimento em expansão destas filigranas históricas na grandeza épica e étnica da voz de Virgínia Rodrigues? Ao cantar “Canto de Iemanjá”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell (Mares profundos, 2004), Virgínia tenciona erudito e popular recuperando da Mãe de Jesus a Kianda, de Ulisses amarrado ao mastro (cruz sacrificial) ao culto dos mártires, dos nomes das caravelas portuguesas à índia Paraguaçu.
Divindades e orixás bailam e se misturam na voz de Virgínia. Voz apolínea que guarda profundos mares do estado dionisíaco. A sutileza da presença percussiva dos tambores, em harmonia com o acompanhamento melódico orquestral de cordas, não nega as marcas da história, posto que tudo está em presença na voz. “Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é dona Janaína que vem / Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é muita tristeza que vem // Vem do luar no céu / Vem do luar / No mar coberto de flor, meu bem / De Iemanjá / De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu, meu bem / Triste no mar”, canta Virgínia sagrando a tragédia de um povo.
Aqui Apolo e Dioniso, arcaico e moderno se liquefazem no canto da deusa sincretizada, núcleo de potência das diversas potencialidades constitutivas do Brasil. E, inconscientemente, Virgínia revocaliza tradições matriarcais historicamente silenciadas. “Brasil, é braseiro de rosas”, verseja Sousândrade. “Para apreciar corretamente a aptidão dionisíaca de um povo, pode ser que tenhamos de pensar não somente na música do povo, mas, com a mesma necessidade, no mito trágico desse povo”, aponta Nietzsche. “Só podemos entender o mundo orecular”, observa Oswald. "Bem mais além / Bem mais além do que o fim do mar / Bem mais além", canta a sereia Virgínia.
***
Canto de Iemanjá
(Vinicius de Moraes / Baden Powell)
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem
Vem do luar no céu
Vem do luar
No mar coberto de flor, meu bem
De Iemanjá
De Iemanjá a cantar o amor
E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem
Triste no mar
Se você quiser amar
Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir Iemanjá
A cantar, na maré que vai
E na maré que vem
Do fim, mais do fim, do mar
Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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