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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Enquanto as obras andavam a passo de cágado no Morro da Urca, recebi de Mário Priolli uma proposta muito interessante. Fazer uma discoteca no seu Canecão, a maior casa de espetáculos do Rio, que apresentava temporadas de shows dos maiores artistas brasileiros. O espaço era sensacional, todo equipado com palco, som e luz, mas uma discoteca era totalmente incompatível com os shows que Mário apresentava às nove da noite. A discoteca teria que funcionar depois dos shows, que terminavam às dez e meia. Poderíamos mudar completamente a decoração da casa, a cenografia, o palco, tiraríamos as mesas e cadeiras e abriríamos às onze e meia como discoteca. Uma idéia muito louca: duas casas em uma. Mas eu não queria fazer uma discoteca como o Dancing Days e todas as outras, tocando discomusic, copiando as americanas. Queria uma diferente, com música latina e decoração tropical, com uma big band de 20 músicos regida por Guto Graça Mello tocando para dançar
um repertório de sabor latino. Salsas e merengues cantados e dançados por duas crooners animadíssimas, vestidas de rumbeiras num cenário cheio de palmeiras, frutas e flores, duas jovens atrizes que cantavam muito bem e tinham pernas sensacionais, Tânia Alves e Elba Ramalho. Era o Tropicana.

A temporada durou quatro meses e todas as sextas e sábados as equipes de montagem do Canecão iam à loucura, tirando centenas de mesas e cadeiras e, em uma hora, transformando a casa de shows numa discoteca. O Tropicana era uma floresta de palmeiras e plantas tropicais, com paredes cobertas por estamparias de frutas e exuberante cenografia florida no palco. O DJ Chris Jones era um crioulo jamaicano que conheci em Nova York, irmão da disco-diva Grace Jones, e que — em escolha infeliz e precipitada — importei para tocar no Tropicana. A bicha era tresloucada, cheirava como um tamanduá, adorou o Rio de Janeiro, mas as suas músicas eram nova-iorquinas demais para as massas que iam ao Tropicana e gostavam das Frenéticas e de Tim Maia. O som latino não pegou, o pessoal gostava mesmo era da disco-music do DJ Ricardo Lamounier (da New York City Discotheque), que substituiu Chris às pressas e garantiu as pistas lotadas. As Frenéticas foram chamadas para fazer os shows e o Tropicana encheu. Mas não teve a menor graça. Eu não agüentava mais disco-music. Mas estava adorando a vida noturna, que vivia como uma festa permanente, onde me divertia e ganhava dinheiro, convivendo com estrelas da música, da televisão e dos esportes.

Chegava em casa sempre de madrugada e depois de incontáveis brigas, de idas e voltas, de vidas cada vez mais separadas, o casamento acabou com muito sofrimento para nós dois. Marília ficou com Esperança na casa do Joá e eu me mudei para uma cobertura no Edifício Imperator, o último da Praia de Copacabana, no Posto Seis, no 13º andar de um prédio art-déco dos anos 40. Aos 34 anos, eu ia morar sozinho pela primeira vez. A distensão “lenta, gradual e segura” do general Geisel continuava, com a revogação do AI-5, o abrandamento da Censura (“Cálice”, “Apesar de você” e muitas outras músicas foram liberadas) e, no final do ano, a anistia. Um fervor nacionalista e estatizante unia governo e oposição, o general João Figueiredo tomava posse prometendo a redemocratização.
Em julho, fui cobrir para O Globo e a TV Globo o Festival de Jazz de Montreux. A grande estrela da “Noite brasileira” era Elis Regina, que depois de 15 anos tinha saído da Polygram para assinar com seu velho amigo André Midani na Warner. A gravação de um disco ao vivo em Montreux era parte importante do novo contrato, para dar um impulso à sua carreira internacional. Com César Camargo Mariano e um pequeno grupo de músicos de alto nível, Elis montou com César e André um show com seus grandes sucessos, até mesmo “Upa neguinho”, poucas canções políticas e, meio contrariada, mais bossas novas do que gostaria: eram obrigatórias no circuito internacional. Os arranjos eram simples e eficientes, como ouvi no ensaio na véspera do show, mas sem maiores brilhos e surpresas, pelo menos para ouvidos brasileiros. Elis estava nervosa, mas procurava se acalmar cantando tecnicamente, à
meia voz, repetindo divisões rítmicas, ensaiando finais. A lotação do velho Cassino de Montreux estava esgotada há dias e Hermeto Paschoal, vindo de gravações com Miles Davis e idolatrado nos meios jazzísticos como um “bruxo dos sons”, faria a primeira parte da “Nuit
bresiliene”.

Depois do ensaio, impressionado com a multidão que queria ver Elis e não tinha entradas, o diretor do festival Claude Nobs pressionou seu velho amigo André, que convenceu Elis a fazer uma matinê extra, às três da tarde, no dia do show. Na matinê superlotada, Elis arrasou. Cantou com segurança, técnica e discreta emoção um repertório de alto nível, já muito conhecido dos brasileiros, mas encantador para o público internacional. Fez o show como se fosse um ensaio geral, como uma preparação para a grande noite. À noite, no show de abertura, Hermeto Paschoal e seus músicos fizeram a casa vir abaixo, foram aplaudidos de pé durante 15 minutos, com o público gritando e exigindo mais. Depois de um intervalo de meia hora, com uma orquídea azul nos cabelos, como Billie Holiday, Elis entrou no palco do Cassino de Montreux. Com um vestido longo e um penteado que a faziam mais velha, Elis parecia nervosa e tensa, cansada e intimidada, quando começou a cantar. Com dez minutos de show, ela transpirava muito e parecia exausta, fazendo grande esforço para cantar. Não cantava mal, cantava com precisão e cautela, sem tentar qualquer efeito. Na coxia, André entrou em pânico, pensou que Elis ia desmaiar. Entrou no palco com um copo d’agua, que ela bebeu imediatamente. O show continuou. Para os jornalistas brasileiros, o repertório era por demais conhecido, os arranjos discretos demais, a performance de Elis com muita técnica e pouca emoção, quase burocrática. Já os estrangeiros estavam maravilhados com sua afinação, seu timbre belíssimo, sua técnica impecável, sua tensão criativa. No palco, Elis sofria intensamente, como se não estivesse fazendo o que mais gostava na vida, mas cumprindo um doloroso dever. O show terminou com muitos aplausos, mas muito menos intensos do que os de Hermeto. Elis estava exausta e saiu rapidamente do palco. No meio da gritaria, Claude Nobs chamou de volta à cena Hermeto Paschoal, que assistiu a todo o show de Elis na coxia. Recebido com uma espetacular ovação, o bruxo albino se encaminhou vitorioso para o piano enquanto, de surpresa, Claude chamava de volta Elis Regina! Sempre altamente competitiva, Elis sabia que tinha perdido a noite para Hermeto. Frustrada e furiosa, entrou no palco pisando duro e sorrindo tensa para o público. Silêncio total, piano e voz.

Hermeto começa a tocar “Corcovado” e, quando Elis começa a cantar, suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis — ou para qualquer cantor do mundo — se manter dentro da mesma tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe, tornando o velho clássico quase irreconhecível, genialmente irreconhecível. E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não-ensaiada. Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreira, como um músico. Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, a cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso de seu duelo com Hermeto. Foram delirantemente aplaudidos. Quando Hermeto começou a tocar “Garota de Ipanema” (que Elis odiava e jurava que jamais cantaria em sua vida), ela baqueou. Mas logo se recuperou e cantou, com todo vigor, como se fosse a última música de sua vida, improvisou como uma negra americana, virou a música pelo avesso, provocou Hermeto, voou com ele diante da platéia eletrizada. Com o público de pé, “Asa branca”, Elis e Hermeto no round final, o baião de Luiz Gonzaga em ambiente free-jazz e atonal, harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmo e de andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizada por dois virtuoses. Ao meu lado, meu velho amigo Nesuhi Ertegun, agora vice-presidente da Warner americana, estava pasmo e livido.

Experimentado crítico de jazz, que acompanhou a carreira de Miles Davis e outros gênios, Nesuhi disse que raras vezes tinha testemunhado um dueto tão emocionado e tão técnico, tão audacioso. Saiu do cassino eufórico, me convidando para celebrarmos num jantar com André e Elis. Festejada por Nesuhi, Elis foi a contragosto, quase não falou, mas disse para André, ameaçadora: “Este disco não vai sair, não é?” André não respondeu, mas Elis sabia que o disco ao vivo em Montreux, que poderia impulsionar sua carreira internacional, não sairia. Porque ela não queria, porque, tirando os números com Hermeto, ela achava que o resto não valia a pena, que não tinha cantado bem. Achava que tinha chutado um pênalti para fora. De volta ao Brasil, exigiu de André um juramento de que nunca lançaria aquela gravação, nunca, nem depois que ela morresse. Em Janeiro de 1980, no alto do Morro da Urca, abriram-se as cortinas vermelhas do Noites Cariocas, com uma grande orquestra — a Metalúrgica Dragão de Ipanema, regida por Edson Frederico, todo mundo de smoking — tocando música brasileira para dançar, como nos velhos dancings dos anos 50, e Dom Pepe tocando exclusivamente música brasileira, rock, samba, baião, frevo, forró, reggae e até mesmo disco-music, mas tudo nacional. O Noites Cariocas seria a casa do que Júlio Barroso tinha chamado de “Música Prapular Brasileira” no seu “Manifesto gargalhada”: “Minha visão da Música Popular é: Alô! A Música Prapular Brasileira chegou aqui com a primeira caravela negra, o desembarque da Banda do Zé Pretinho.
Veio o upa neguinho na estrada do sol e do soul cantando “Eu sou o samba”. Ela desce a ladeira da história, a 120 por hora, no embalo das  Melodias Contemporâneas (...) Quem sabe, sabe, não chama jacaré de meu benzinho.” Milhares de jovens da Zona Norte e da Zona Sul se encontravam nos fins de semana no Noites Cariocas, para dançar com os discos de Rita Lee e dos Novos Baianos, de Tim Maia e Raul Seixas, de Zé Ramalho e Alceu Valença, com a orquestra tocando arranjos modernos e dançantes de clássicos de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Jorge Ben e Chico Buarque. Na pista superlotada, todos continuavam pulando feito pipoca. Júlio idolatrava Dom Pepe, que considerava o seu grande mestre DJ, um designer musical, e passou a frequentar assiduamente a cabine de som — além da pista de dança. E aos poucos Dom Pepe foi dando espaço a Júlio para pilotar a música — enquanto se esbaldava na pista.

Depois de dois meses tocando todas as sextas e sábados as mesmas músicas, trocamos a orquestra, que tinha 20 músicos de primeiro time (mas que nunca tinham tempo para ensaiar novos arranjos) e era caríssima. Mas trocamos para melhor, para a Banda Black Rio, de Oberdan Magalhães, o som negro dos subúrbios cariocas, funk, soul e samba, morro e Motown, dez dos melhores músicos cariocas tocando um repertório moderno, pra pular: o público cresceu e dançou ainda mais.

O conceito de “Música Prapular Brasileira” de Júlio foi a transição entre a MPB e o pop, com a Banda Black Rio fazendo a ponte entre a praia e o subúrbio, as novas gerações viraram a década dançando frevos e xaxados elétricos e estilizados, uma saraivada de hits de Zé Ramalho (“Admirável gado novo”), Amelinha (“Frevo mulher”), Novos Baianos (“Lá vem o Brasil descendo a ladeira”), Pepeu Gomes (“Malacacheta”), Alceu Valença (“Coração bobo”) e Robertinho do Recife (“O elefante”), todos nordestinos. Um paraibano, uma cearense, vários baianos e dois pernambucanos tomaram de assalto as paradas de sucesso e o gosto popular, fazendo a fusão entre a música regional e o pop internacional, explodindo nas pistas de dança cansadas do bate-estaca massificado da discoteca decadente. O público delirava quando Zé Ramalho cantava: “Virgulino Ferreira, o Lampião, bandoleiro das serras nordestinas sem temer o perigo e nem ruínas foi o rei do cangaço do sertão mas um dia sentiu no coração o feitiço atrativo do amor a mulata da terra do condor dominava uma fera perigosa. Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor...”

Lancei meu segundo livro, Música, humana música, uma coletânea de textos musicais publicados em O Globo e selecionados por Evandro Carlos de Andrade. Com apresentação de Glauber Rocha (“O Brazyl musical se estrutura neste jardim. Do outro lado do parayzo é
possível delinear a geografia do inferno cultural [...] alma bendita, erva pacificadora nas guerras negativistas, tem a bandeira desfraldada na tempestade...”), teve ótimas críticas e vendas ridículas. Noite de autógrafos animadíssima. Até Nelson Rodrigues foi. O Fluminense nos unia mais do que a política nos separava. Eu era seu fã desde os folhetins de “A vida como ela é”, lia apaixonadamente todos os seus livros, vi todas as suas peças, me divertia com suas crônicas e tinha imensa alegria de encontrá-lo sempre no Antonio’s, na TV Globo e no Maracanã. Ele me gozava freqüentemente em suas crônicas, dizendo que eu era um pálido romântico tentando passar por um revolucionário incendiário, que eu era doce e inocente como uma cambaxirra. Eu ficava furioso — porque, tirando a palidez, tudo era verdade. Volta e meia Nelson escrevia que, quando me encontrava nos corredores da TV Globo, “pálido como um ‘Werther’ de ópera”, tinha vontade de me perguntar “Quando é o suicídio? Quando é o suicídio?”. Bronzeado pelo sol do Posto Nove e feliz da vida, eu me divertia, honrado por estar na sua crônica. A presença de Nelson, que eu adorava, valeu a noite e o livro. Comemoramos a passagem da década com uma festança no Noites Cariocas: “Os jardins suspensos de Iemanjá”, produzida pelo carnavalesco Joãosinho Trinta, da Beija-Flor de Nilópolis. O Morro da Urca foi completamente transformado por Joãosinho. Já na entrada, quando os convidados saíam do bondinho, atravessavam a estação de passageiros passando por sete cortinas de contas e plástico transparente, caindo do teto em cachoeira. As árvores foram decoradas com grandes imagens de Iemanjá e uma alegoria de cinco metros de altura saudava os convidados na entrada.

No anfiteatro, as arquibancadas foram transformadas em camarotes em diversos níveis, sem separações, todos estofados e forrados de branco, com uma imensidão de almofadas brancas de todos os tamanhos e formas. Eram ninhos coletivos e aconchegantes, todo mundo meio deitado em volta de grandes cestas de frutas, entre véus e telas, cortinas de contas, uma mistura de “Mil e uma noites” com Império Romano de chanchada da Atlântida. Na pista, todo mundo dançou “Música Prapular Brasileira” até meia- noite, quando uma mulata sensacional da Beija-Flor desceu no meio da pista, vinda das árvores deslizando num cabo de aço, sob os refletores e os aplausos delirantes de 1.500 pessoas. Sem parar de sambar, ela destravou o gancho que a prendia ao cabo e anunciou festivamente a nova década. No palco, explodiram a bateria e os passistas da Beija-Flor.

Nos camarotes, na pista, nos bares e nos banheiros, os bicheiros de Nilópolis se confraternizaram com os artistas e a sociedade carioca. Mesmo separados formalmente e vivendo em casas diferentes, Marília e eu continuávamos nos encontrando informalmente. Pouco mais de um mês depois de um desses encontros “secretos” ela me disse que estava grávida. Decidimos ter a criança — mas também que tudo continuaria como estava, cada um com sua casa e sua vida. Marília começou a ensaiar a revista Brasil, da censura à abertura, produzida e dirigida por Jô Soares no Teatro da Lagoa, e trabalhou, cantou e dançou de maiô, salto alto e plumas na cabeça até o oitavo mês. Nina Morena nasceu em junho de 1980, no dia em que o Papa chegou ao Brasil.


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