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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




No festival MPB-81 da TV Globo, a Gang 90, depois de uma apresentação arrebatadora na eliminatória, com uma grande performance de Júlio, vai à final, não se apresenta tão bem e não leva nada. A favorita absoluta do público é uma balada de Guilherme Arantes, “Planeta água”, que fica em segundo lugar, mas se torna um dos maiores sucessos do ano. “Perdidos na selva” consegue boa execução nas rádios, e a Gang 90 está em todos os programas populares de televisão, está nas revistas e jornais, se apresenta com sucesso no Rose Bom-Bom e no Napalm de São Paulo e no Noites Cariocas e começa a fazer shows esporádicos e caóticos pelo Brasil. Júlio começa a beber mais e, como quase todo mundo no circuito artístico, cai de nariz no pó. Noites brancas nos trópicos: a década de 80 começa com a cocaína se espalhando e se popularizando nas noites não só cariocas, mas brasileiras e internacionais. Com uma diferença: enquanto um papelote de cocaína custava US$ 150 em Nova York, no Brasil custava US$ 10. Talvez seja uma explicação para a hiperatividade e o ritmo acelerado de boa parte dos sucessos do nascente rock brasileiro. E explique muitos de seus fracassos. Sem conseguir gravar um Lp com a Gang 90, Júlio volta para Nova York.

Na TV Globo, faz sucesso a série “Grandes nomes”, dirigida por Daniel Filho: shows musicais gravados ao vivo no Teatro Fênix, com produção musical de Guto Graça Mello e roteiro de Luiz Carlos Maciel e Maria Carmen Barbosa. O sucesso foi imediato: o som era ótimo — uma raridade na época —, os cenários discretos, a platéia quentíssima, cheia de VIPs nas primeiras filas, estrelas das novelas da Globo. Grandes nomes cantando o melhor de seus repertórios e recebendo convidados. Começou com “Simone Bittencourt de Oliveira” e “Caetano Emanuel Vianna Telles Veloso”, mas o programa mais aguardado era “João Gilberto Prado Pereira de Oliveira”. Há muitos anos João não cantava no Brasil e havia grande expectativa: ele se apresentaria com uma grande orquestra de cordas, com arranjos escritos por Dory Caymmi e Guto Graça Mello. E teria um convidado especial, secretíssimo. 

A maioria achava que seria Caetano Veloso ou Gal Costa, baianos e cool como ele, bossa-novistas antes de tropicalistas, seus fãs e discípulos ardorosos. Ou até mesmo os devotos Novos Baianos, ou Gil, Nara Leão? Daniel e Guto mantinham silêncio absoluto e aumentavam o suspense na plateia abarrotada. Na entrada, os VIPs disputaram lugares como macacas de auditório. Durante uma hora, João hipnotizou a plateia, cantando primeiro só com o violão e depois com a orquestra, homenageou Caetano com uma sublime versão de seu “Menino do Rio”, mas quando chamou o convidado especial a plateia explodiu em espanto e aplausos ensurdecedores: era a rainha do rock, Rita Lee. Rita era a estrela do momento, com sucessos estrondosos como “Mania de você”, “Chega mais” e “Lança perfume”, todos em parceria com seu marido Roberto de Carvalho. Linda e vaporosa, com os longos cabelos vermelhos balançando, ela cantou com João o antigo sucesso de Mário Reis, “Juju e balangandãs”, com infinita graça e alta precisão. Sua voz pequena e cool, sua inteligência musical, seu bom gosto e sofisticação a aproximavam muito mais de uma cantora de bossa nova do que o volume, peso e potência vocal esperados de uma rainha do rock. João sorria feliz e Rita aliviada, quando no final o público explodiu em aplausos delirantes exigindo bis.

Menino do Rio, o filme de Antônio Calmon produzido por Bruno Barreto, não tinha nada a ver com a música “Menino do Rio”, de Caetano Veloso, lançada para o sucesso nacional um ano antes com a gravação de Baby Consuelo para a abertura da novela “Água viva”. A canção homenageava o surfista Petit, um habitue do Dancing Days e do Noites Cariocas, disputado por gente de todos os sexos e várias gerações. O filme era uma comédia de praia com André de Biasi, Cláudia Magno e Evandro Mesquita, misturando romance, música e aventura, dirigida ao público jovem. Fiz a direção musical do filme e as letras de quase todas as músicas de sua trilha sonora, de Lulu Santos e Guilherme Arantes. A simpatia dos personagens e da turma, o bom humor, a gostosura das garotas, os ambientes de surfe e asa-delta na exuberância do Rio de Janeiro fizeram do filme um sucesso espetacular, que surpreendeu até mesmo seus otimistas produtores. Rapidamente fez mais de dois milhões de espectadores e uma das músicas, o bolero havaiano “De repente Califórnia”, que escrevi com Lulu, estourou em todo o Brasil, na gravação original de meu enteado Ricardo Graça Mello, filho do primeiro casamento de Marília Pêra e um dos principais atores do filme.

“Garota eu vou pra Califórnia, viver a vida sobre as ondas, vou ser artista de cinema, o meu destino é ser star...” Lulu tocou guitarra na gravação e Liminha foi o baixista. Outra música da trilha, “Garota dourada”, uma letra que fiz para um rock de Lee Marcucci e Wander Taffo, que haviam formado o grupo Radio Táxi em São Paulo, impulsionada pelo filme, também se tornou um dos sucessos do verão. Mas o maior hit do ano foi de Ritchie, “Menina veneno”, um rock com letra de Bernardo Vilhena, que vendeu um milhão de discos e o transformou num pop star: o primeiro Lp de Ritchie, Vôo de coração, vendeu mais do que o de Roberto Carlos. Com Lulu, fiz “Areias escaldantes” (“A caravana do delírio”), um rock aventura falando de “a luz do fogo ilumina os corpos de belas nuas dançarinas, são vulcões de mel/ perfume de aventura inundando o ar de emoção e calor/ luxo e luxúria nas noites do Oásis do Amor”. Na mesma linha Oriente Médio fizemos “Palestina”, aventuras sexo sadomaso- políticas de uma guerrilheira/terrorista que provocou protestos nos shows. Tanto de judeus como de árabes. Com estaladas de chicote marcando o ritmo, Lulu cantava no disco: “Essa garota é mesmo um perigo, não vale a pena ser seu inimigo, cuidado com ela, bela menina, cuidado, pois ela é palestina.” As músicas tocaram bastante no rádio, nas poucas FMs da cidade, popularizaram o nome de Lulu, mas não fizeram seu primeiro Lp para a Warner — Tempos modernos — passar de 20 mil vendidos, mesmo com o sucesso de sua gravação de “De repente Califórnia”. Para promover o disco e ganhar uns trocados, ele fazia nos fins de semana shows de play-back nos subúrbios e na Baixada Fluminense, às vezes quatro ou cinco numa mesma noite. Como aparecia freqüentemente em programas populares como o Chacrinha e os shows paulistas de Raul Gil, Bolinha e Barros de Alencar, Lulu era muito solicitado no circuito suburbano. Chegava ao clube no meio do baile, o DJ tocava a fita com a base musical e Lulu cantava ao vivo cinco ou seis músicas e partia com o motorista e o segurança para o próximo show. Foi só com “De leve”, versão que Gilberto Gil e Rita Lee fizeram para “Get Back”, dos Beatles, incluída na trilha sonora da novela “Brilhante”, que Lulu Santos chegou pela primeira vez às paradas de sucesso. E passou a fazer shows de playback também em outros estados.

Enquanto Lulu e Ritchie chegavam ao alto das paradas e caíam na estrada, outro ex-Vímana, Lobão, tocava bateria nas bandas de Marina, Luiz Melodia e Gang 90, era parceiro de Júlio Barroso e produzia um Lp independente associado ao poeta Bernardo Vilhena, com quem tinha feito algumas músicas. Nos precários oito canais do estúdio Tok, gravou as dez faixas de Cena de cinema, com participações de Marina, Lulu, Ritchie, Ricardo Barreto e Marcelo Sussekind, pensando em vender a fita para uma gravadora. Além disso, namorava a ex de Júlio, Alice “Pink Pank”, fumava, bebia, cheirava e conspirava nas praias e bares cariocas com o ex-Asdrúbal Evandro Mesquita para a formação de uma banda de rock malandra e teatral, agressiva e sensual. Uma resposta carioca e praieira à atitude paulista-nova-iorquina
da Gang 90: a Blitz. Nada de pessoal: Lobão e Júlio tinham gostos parecidos e se adoravam. Júlio escrevia de Nova York: “Não existe nada de novo, existe tudo sendo feito de maneira nova, velhos riffs renascidos através da paixão criativa dos que vivem o tempo de agora, apaixonadamente. Nós sabemos que não existe nenhuma nova onda, new wave. Mas uma onda permanente.”

No fim do ano, num dos melhores programas da série “Grandes nomes”, outro encontro inesperado: “Maria da Graça Costa Penna Burgos”, Gal Costa, convidou Elis Regina para dois duetos. Pela primeira vez as grandes rivais se encontraram em “Estrada do sol”, de Tom Jobim e Dolores Duran, e “Amor até o fim”, de Gilberto Gil. Entre beijos e abraços cantaram e dançaram juntas, Elis mais rítmica e agressiva, Gal mais doce e harmônica, em gravação histórica. Elis também se aproximou muito de Marília, para quem telefonava freqüentemente para falar de marido e filhos e comentar as novidades. Quando a onda discoteca se esgotou, a Warner decidiu fazer um disco das Frenéticas cantando os sambas e marchas de Lamartine Babo, com produção de Sérgio Cabral, que batizei de Babando Lamartine. Não sabíamos quem chamar para fazer os arranjos e, conversando com Marília, Elis “ofereceu” César Mariano, que foi imediatamente chamado. Mas mesmo com seus arranjos e com algumas ótimas faixas, o disco naufragou e as Frenéticas começaram a acabar. Na manhã de 19 de janeiro de 1982, pelo telefone, Marília me disse, com voz pausada e contida, que tinha uma notícia ruim sobre Elis. Comecei a chorar. Parada cardíaca, álcool e cocaína. Sozinha trancada no quarto. Três filhos. Trinta e seis anos!!!

Fui imediatamente para São Paulo, para o Teatro Bandeirantes, onde o corpo de Elis estava sendo velado e uma multidão chorava a perda de sua estrela. Abracei César e Ronaldo, que choravam muito. Atrás do vidro do caixão, com os cabelos curtinhos e o rosto sereno, Elis vestia a camiseta de seu programa da série “Grandes nomes” que tinha sido proibida pela Censura: uma estilização da bandeira brasileira com o “Ordem e progresso” substituído por “Elis Regina Carvalho Costa”. Todas as rádios tocavam suas músicas, “Upa neguinho”, “O bêbado e a equilibrista”, “Arrastão”, “Madalena”, “Maria Maria” e sua última gravação, uma lindíssima versão de “Me deixas louca”, velho bolero de Armando Manzanero, com letra de Paulo Coelho. A cidade onde ela floresceu para o sucesso, onde viveu seus grandes triunfos e a maior parte de sua vida artística parou para chorar a sua estrela. No alto do carro do Corpo de Bombeiros, coberta de flores, Elis percorreu as ruas da cidade pela última vez, ovacionada pelas multidões que encheram as janelas e calçadas de todo o trajeto até o Cemitério do Morumbi. Nunca um artista brasileiro recebeu igual consagração popular. Acompanhei o cortejo no carro da amiga jornalista Regina Echeverria, devastado de tristeza e perplexo. Trinta e seis anos!!! Entre Krishna e Lacan, entre Cristo e Buda, entre cabeça e coração, procuro um sentido e um consolo para aquela perda, imagino o avesso de um milagre, do mesmo milagre que fez de uma garota baixinha e pobre da periferia de Porto Alegre uma das maiores cantoras do mundo. Vivi sua morte como um antimilagre. Para mim era novidade até que Elis estivesse cheirando pesado nos últimos meses, não fazia o seu estilo. Elis nunca foi drogada nem dependente de nada. Bebia um pouco de vez em quando, fumava um baseado aqui e ali, mas nunca fez nada compulsivamente. Estava entrando na cocaína numa hora em que muita gente já estava começando a sair. Pior: sempre preocupada com a voz, a garganta, seus maiores bens, estava evitando inalar cocaína, preferindo misturá-la com uísque: dessa forma a droga vai para o estômago e demora mais a entrar na corrente sangüínea, tornando muito difícil controlar as quantidades. Foi o que matou Elis.

Convidado por Roberto de Oliveira e Cláudio Petraglia, que tinham uma produtora independente, passei a apresentar junto com Scarlet Moon o talk-show diário “Noites cariocas”, que ia ao ar às 11 da noite, só no Rio de Janeiro, pela TV Record. Gravávamos três entrevistas todos os dias, de manhã, primeiro numa sala do Hotel Marina, na Praia do Leblon, e depois na Pizzaria Gattopardo, de Ricardo Amaral. Lá, além de todos os nossos amigos, entrevistamos também políticos, artistas, atletas e empresários, de Darcy Ribeiro a Marcello Mastroianni, e — pela primeira vez na televisão depois de 64 — o histórico líder comunista Giocondo Dias, com o partido ainda na ilegalidade. Além de nossas entrevistas, o programa tinha “colunas” audiovisuais, com o cronista Carlos Eduardo Novaes, o escritor João Ubaldo Ribeiro e o futuro repórter policial Marcelo Rezende comentando futebol. 

Como o programa era só local, nos permitíamos algumas liberalidades, como eventuais piadas mais grossas e palavrões mais leves, ou a descrição que Darcy Ribeiro fez de sua participação num concurso de punheta entre garotos para ver quem gozava primeiro e mais longe. Outras vezes, quando o convidado era chato (o que muitas vezes acontecia), Scarlet e eu o ignorávamos e conversávamos animadamente entre nós. O público se divertia, recebíamos centenas de cartas e éramos vistos por mais de 500 mil pessoas todas as noites. No verão de 82, uma novidade na praia do Arpoador: um circo. Uma idéia maluca de Perfeito Fortuna, ex-Asdrúbal, com Márcio Galvão e o cenógrafo Maurício Sette. Um circo de verdade, em frente ao mar, armado na areia da praia dos roqueiros e surfistas, um circo com bichos muito loucos e sem trapezistas, um circo de teatro e música — e naturalmente muitos malabarismos e acrobacias. 

Como os que fez Perfeito para convencer dona Zoé Chagas Freitas, primeira-dama do Estado, a interceder junto ao prefeito Júlio Coutinho para ceder, de graça, um pedaço de praia, e, também de graça, fornecer força e luz. Afinal, seria só durante o verão e seria uma grande alegria para a cidade, prometia Perfeito ao prefeito. Não só cumpriu como foi além: o Circo Voador foi a grande atração do verão carioca, com cursos de teatro e aulas de dança e acrobacia de dia e peças de teatro e shows de música à noite. Empolgado, me inscrevi no curso de teatro de Regina Casé, Patrícia Travassos e Hamilton Vaz Pereira, e durante um mês — com 38 anos — desreprimi minha porção ator e tomei um banho de juventude me divertindo em exercícios de expressão teatral com uma garotada em torno de 20 anos.

Perfeito Fortuna tinha seu próprio grupo, o Pára-quedas do Coração — Cia. do Ar, e teve entre seus alunos Cazuza, que participou ativamente das aulas e de uma montagem punk de A noviça rebelde, como o Barão Von Trapp e um travesti no papel imortalizado por Julie Andrews. Outro curso, de Evandro Mesquita e Patrícia Travassos, com o grupo Banduendes Por Acaso Estrelados, preparava a montagem de A incrível história de Nehemias Demutcha. À noite, shows de estrelas como Chico Buarque e Caetano Veloso, que era amigo e fã ardoroso de Regina Casé, para quem fez “Rapte-me camaleoa”, e novas bandas de rock, como o Brilho da Cidade (de Cláudio Zoli e Arnaldo Brandão), o Barão Vermelho (de Roberto Frejat, Cazuza, Dé e Guto Goffi) e a Blitz (de Evandro Mesquita, Ricardo Barreto e Lobão). Foi de Patrícia Travassos, namorada de Evandro, a ideia de acrescentar duas vocalistas à banda: Márcia Bulcão, namorada de Barreto, que chamou a amiga e bailarina Fernanda Abreu.

A Prefeitura também cumpriu sua parte: assim que terminou o verão o circo foi despejado do Arpoador, para alívio dos residentes na área. Quando o circo foi desarmado, o compacto da Blitz com “Você não soube me amar” já estava explodindo em todo o Brasil. A fala ritmada, carioca e malandra de Evandro, os vocais de resposta de Fernanda e Marcinha, a guitarra do “homem-baile” Barreto, a bateria suingada de Lobão eram a fórmula do sucesso:
“Sabe essas noites em que você sai caminhando sozinho, de madrugada, com a mão no bolso...” “Na rua!”, respondem as garotas. “E você fica pensando naquela menina, você fica torcendo e querendo que ela estivesse...” “Na sua!”, elas completam. “Aí finalmente você encontra o broto, que felicidade...” “Que felicidade! Que felicidade!”, confirmam elas. “Você convida ela pra sentar.” “Muito obrigada.” “Garçom, uma cerveja!” “Só tem chope.” “Desce dois! Desce mais!” “Amor, pede uma porção de batata frita?”, elas pedem dengosas. Ele concede: “Ok, você venceu: batata frita.” Em três meses a Blitz vendeu mais de 100 mil discos e se tornou uma mania nacional, foi capa de várias revistas e estrelou todos os musicais da televisão. Chacrinha adorava a Blitz, Evandro o imitava na gravação de “Você não soube me amar”, Fernanda e Marcinha dançavam com as Chacretes na TV. Eles eram o sucesso do momento quando entraram no estúdio, produzidos por Mariozinho Rocha, para gravar o primeiro Lp. Quando Júlio voltou de Nova York, a Blitz era um grande sucesso. Ele reagrupou a Gang 90, manteve May, Denise e Alice e acrescentou uma vocalista/tecladista/paulista, sua nova mulher Taciana Barros, e o baixista e vocalista cearense Herman Torres, com quem passou a compor. Uma das músicas, “Nosso louco amor”, é o tema de abertura da novela “Louco amor” e vira um grande sucesso nacional da noite para o dia.

“Nosso louco amor está em seu olhar quando o adeus vem nos acompanhar. Já foi assim, mares do sul, entre jatos de luz, beleza sem dor, a vida sexual dos selvagens...” A Gang arrebenta nos programas de televisão e grava seu primeiro Lp, Essa tal de Gang 90 e as Absurdettes. O disco não acontece, mesmo com grandes músicas como “Corações psicodélicos” (parceria com Lobão), “Telefonema”, “Eu sei mas eu não sei” (“Eu quero e eu consigo/ eu perco, mas eu não ligo/ I’m your dog, but not your pet/ quero e sou absurdette”) e o rap “Românticos a Go-Gô”, só com a fala suingada de Júlio sobre a base pulsante, entre o rock tropical e o new samba: “Donga, Cartola, Guevara, Sinhô/ Jimi, Caymmi, Roberto, Melo/ Rita, Lolita, Del Fuego, Bardot/ Gato, Coltrane, Picasso, Cocteau/ Nietzsche, Nijinsky, Kandinsky, Allan Poe/ Marley, Duchamp, Oiticica, Xangô.” “O poeta é o traficante da liberdade”, proclamava Júlio nos shows. As Absurdettes desfilavam pelo palco com suas minissaias e ele confidenciava ao público: “Elas podiam ser misses, mas nunca leram O pequeno príncipe...”

Os barmen dos hotéis adoravam Júlio. Mas os contadores da gravadora, que pagava as contas, iam à loucura. Em um hotel paulista, Júlio convidou o poeta Tavinho Paes para uma delivery de comida japonesa e em seguida para duas garotas de programa. Orientais, naturalmente. Claro, Júlio não tinha um tostão, mas tinha um amigo no bar, que lhe mandou as contas “frias” de diversas lagostas à Thermidor e várias garrafas de vinho, que assinou alegremente. E recebeu o dinheiro em espécie, menos a gorjeta. Lobão, depois de gravar o disco da Blitz, dar entrevistas no lançamento e posar para a capa de várias revistas, antes mesmo de começar a turnê nacional, sai do grupo e inicia carreira solo. A espetacular opção de Lobão, de abandonar o grupo de maior sucesso do momento e vender para a RCA a fita do seu Cena de cinema, chocou e dividiu a cena roqueira carioca. Para uns, era um doidão que estava rasgando um bilhete premiado; para outros um herói, que recusava o estrelato para fazer sua arte independente. Cena de cinema saiu três meses depois do disco da Blitz e foi lançado com um show no Circo Voador — agora em seu novo endereço, nos Arcos da Lapa. Quando saiu da Blitz, Lobão deixou uma maldição no ar: que a banda acabaria tocando na festa da chegada de Papai Noel no Maracanã, o mais terrível pesadelo de um roqueiro rebelde.

As aventuras da Blitz, extremamente bem produzido, recheado de boas músicas de Evandro e Barreto, cheias de gírias e malandragens cariocas e com um humor e uma alegria irresistíveis, tornase um retumbante sucesso nacional. As apresentações ao vivo da Blitz em shows e na televisão, dirigidas por Patrícia Travassos, vão muito além da música e dança, são cheias de efeitos teatrais, piadas, figurinos especiais, performances tão sensacionais como não se via desde Os Mutantes, o Secos e Molhados e as Frenéticas. A Blitz foi a estrela máxima da festa de chegada de Papai Noel no Maracanãzinho no Natal de 82.


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