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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



O som de John Lennon cantando “Starting Over” explodiu nas caixas e a pista se encheu de gente pulando feito pipoca, as telas de TV mostravam frases, versos e imagens de Lennon. Em seguida, Júlio detonou uma saraivada de hits arrebenta-pista de Kid Creole e Blondie, de Tim Maia e Rita Lee, e assim foi até o fim da noite, fechada novamente com “Amarcord”, com a pista meio vazia, alguns néons queimados, roupas amassadas e maquiagens desfeitas. Na mesma época — foi uma das bombas do ano —, depois de 15 anos de glória, Walter Clark saiu da TV Globo brigado com Roberto Marinho e assumiu a TV Bandeirantes. Cheio de idéias e projetos, louco para mostrar do que era capaz, para dar uma resposta à TV Globo. Walter mudou-se para São Paulo e me chamou para produzir e apresentar um programa semanal de duas horas para o público jovem, seria o que eu quisesse, um programa sofisticado, de vanguarda, de linguagem moderna, como eu jamais poderia fazer na TV Globo. Mudei-me para São Paulo, para a casa de minha nova namorada May Pinheiro, na Rua Atlântica, mas passava os fins de semana na  cobertura da Avenida Atlântica e no Noites Cariocas.

“Mocidade independente” foi o nome que escolhi para o programa, que teria música ao vivo, teatro, artes plásticas, entrevistas e debates, com uma linguagem fragmentada e montagem anárquica, inspirada pelo quadro que Glauber Rocha apresentava no programa “Abertura”, uma revista de Fernando Barbosa Lima na TV Manchete. Glauber era sensacional na TV, se movimentava o tempo todo, falando sem parar, debatendo com seus entrevistados no meio da rua enquanto dirigia, ao vivo, as movimentações da câmera, os problemas do microfone, discutindo política e cultura como nunca se tinha visto na televisão, não só no conteúdo, mas principalmente na forma. Fui seu entrevistado em um dos programas, discutindo a geração de 68 e os rumos da cultura brasileira, e saí inspiradíssimo. Eu queria fazer um programa glauberiano, pós-tropicalista, new wave, concretista, alguma coisa diferente dos musicais “sérios” e comerciais que se viam nas televisões. Walter Clark achou o nome ótimo e recebi sinal verde para iniciar as gravações, com todo o apoio e entusiasmo do querido “Dr. Demente Neto”, que Walter tinha trazido para dirigir a produção. 

Para a parte “teatral” do programa, chamei um grupo de jovens atores cariocas, amigos da praia e do Noites Cariocas, que eu acompanhava desde a sua primeira montagem hilariante de ‘O inspetor geral’ até o sensacional ‘Trate-me leão’, que assisti várias vezes no Teatro Ipanema. Os garotos eram a melhor expressão do teatro moderno, tinham um humor diferente, uma nova atitude política, eram alegres, libertários e originais. Talentosos e carismáticos, logo se tornaram ídolos da juventude da Zona Sul do Rio. Mas em São Paulo pouca gente conhecia Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita, Patrícia Travassos, Perfeito Fortuna e Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, que parecia muito mais uma banda de rock do que uma companhia teatral. Felizes da vida eles assinaram o seu primeiro contrato de televisão, para apresentar — o que quisessem — todas as semanas num quadro de dez minutos dentro do “Mociddade independente”.

A idéia deles era um seriado: as aventuras de um grupo de jovens atores cariocas que vai para São Paulo fazer televisão, enfrentando as dificuldades com piadas e improvisos, misturando realidade e ficção. Para me ajudar na direção, produção e edição chamei um grupo de jovens recém-formados em televisão na Escola de Comunicação de São Paulo, que exibiram um vídeo muito bem-feito sobre um poeta concretista no Pauliceia Desvairada. Contratei-os no ato. Walter Silveira, Tadeu Jungle, Ney Marcondes e Paulo Priolli formavam uma equipe de TV, mas também tinham a atitude de uma banda de rock. Eles formavam a “TV Tudo”, todos faziam produção, direção e edição, mas nunca tinham trabalhado em televisão comercial. Foram os responsáveis por boa parte da modernidade narrativa do programa e seus melhores momentos anárquicos, trouxeram com eles a vanguarda paulistana, artistas plásticos, músicos, poetas e visionários. Mocidade pra lá de independente. 

Para o primeiro programa convidei Caetano Veloso e um jovem representante da fervilhante vanguarda paulistana, o paranaense Arrigo Barnabé, que tinha lançado um disco independente muito bom e cultuado em SP. O programa foi gravado no Paulicéia Desvairada, Caetano cantou músicas de Paulo Leminsky (“Verdura”) e, a pedido de Regina Casé, de Henri Salvador (“Dans monile”). Arrigo se apresentou com uma big band, fechando com seu hit underground “Clara Crocodilo”, que começa com ele falando glauberianamente como um radialista policial, gritando entre dodecafonismos e rock, e cantando com voz rouca e rasgada junto com as duas gatinhas dos vocais, Vânia Bastos e Suzana Salles.

Depois reuni os dois numa entrevista em que Arrigo disse que o que ele estava fazendo não era vanguarda, era só uma continuação lógica, uma radicalização do tropicalismo, era uma das linguagens musicais que deveriam ter se seguido ao movimento, mas o processo tinha sido interrompido e só agora estava sendo retomado. Caetano gostou e contou que, no início do tropicalismo, secretamente se perguntava, temeroso e reverente, “O que João Gilberto estará achando disso tudo?”, deles fantasiados, rebolando no palco, com guitarras. E um dia criou coragem e perguntou.

“Que nada! Eu acho isso que vocês fazem maravilhoso, acho linda essa animação de vocês, todo esse rebolado, esses movimentos, essa alegria... eu gosto disso, só que eu tenho tudo isso... aqui”, João respondeu apontando para a garganta. Ele foi um dos pontos altos do programa: 15 minutos inéditos de João Gilberto cantando — e até dizendo algumas palavras — filmados pelo produtor Zé Amâncio no Hotel Gramercy Park de Nova York. Durante toda a gravação, o artista plástico Aguillar trabalhou com sprays num imenso painel de Bob Marley, com um charo enorme na boca, ocupando uma parede inteira do Pauliceia. Editadas e picotadas, como miniclips, todas as fases da criação do painel pontuaram o programa, enquanto o reagge rolava e Marley cantava. Clips do Blondie, do Devo e, claro, de Kid Creole and the Coconuts, que ninguém conhecia no Brasil, pontuavam o programa inaugural.

O tema de abertura e encerramento foi minha primeira parceria com Lulu Santos: “Tesouros da juventude”. Ele fez a música, um rock rápido e animado, no dia da morte de John Lennon, me mandou a fita e escrevi uma letra sobre os “meninos que morreram cedo”, nas drogas, na guerrilha, na guerra urbana, e John é citado na letra, junto com Janis Joplin, Jimi Hendrix e Brian Jones.

Lulu trabalhava na Som Livre, ajudando Guto Graça Mello na produção de músicas para trilhas de novelas da TV Globo, era presença constante na praia, no Noites Cariocas, no escritório de Ipanema e, depois de breve namoro, tinha se casado com Scarlet Moon, roubando-a de Júlio Barroso, que ficou furioso com a perda. Pouco depois o Vímana acabava, por briga coletiva, mas principalmente porque Lobão, com 19 anos, em espetacular ação de antropofagia sexual e cultural, não só roubou a mulher de Patrick Moraz, como também ficou com a casa e até o piano, se tornando um herói nas noites cariocas. Estimulado por Scarlet, Lulu tentou sua primeira experiência solo na Polygram, com uma única exigência da gerência de marketing: que não usasse o nome Lulu Santos, que consideravam ridículo, mas Luiz Maurício (seu verdadeiro nome de batismo, que ele odiava). O disco foi completamente ignorado por crítica e público e Luiz Maurício voltou a ser Lulu, esqueceu de vez o progressivismo e passou a fazer rocks básicos e animados, bem new wave, com boas melodias, como “Tesouros da juventude” e “Areias escaldantes”.
Júlio criou um slogan modernista para o programa, que foi usado, aos gritos, na campanha de lançamento na TV: “Pra quem desce na nossa onda, toda semana é de arte moderna!” “Mais ovo e menos galinhagem!” era outro, criado por Charles Peixoto, que formava com Bernardo Vilhena, Chacal e Ronaldo Santos o grupo carioca Nuvem Cigana, jovens poetas que também se comportavam como uma banda de rock. “Já que é proibido pisar na grama, o jeito é deitar e rolar”, de Chacal, era outro de nossos favoritos, junto com a máxima de Oswald de Andrade (“A massa ainda comerá dos biscoitos finos que fabrico...”), transformada no slogan “Mocidade independente — Biscoitos finos para a massa!”.

O primeiro programa, que consumiu noites insones de edição baseada no conceito glauberiano de “montagem nuclear”, que ninguém sabia bem o que era, fragmentado em milhares de cortes, saiu bem perto do que imaginávamos: não parecia em nada com o que se via na televisão, muito pelo contrário. Mereci um perfil entusiasmado de Okky de Souza na Veja, com o título de “A fonte da juventude”, e uma crítica elogiosa assinada por um jovem que tinha se formado em cinema na Califórnia e começava a trabalhar e  televisão no Brasil, Walter Salles Jr. Mas pouca gente viu o programa, exibido sábado às nove da noite, contra a novela da TV Globo: deu menos de 5% de audiência. Nenhuma mocidade que se preze, muito menos a independente, estaria em casa naquela hora vendo televisão.

No Paulicéia, a mocidade paulistana desvairava, todas as semanas novas bandas se apresentavam ao vivo, Júlio Barroso realizava seu sonho de DJ e armava sua jogada mais audaciosa: uma banda de rock. A idéia da Gang 90 e as Absurdettes nasceu num encontro de
Júlio com seu cunhado Okky de Souza (casado com Denise Barroso) numa noite frenética no Earle Hotel, histórico muquifo de Greenwich Village, no inverno americano de 1980. Júlio escreveu a letra e compôs a primeira parte do rock “Perdidos na selva”, a divertida aventura de um desastre aéreo com happy end, que ele apresentava como “um heavy iê/iê/iê: um desastre aéreo com um ‘happy end’ na ‘veia’. Cenário de uma produção chanchadesca, paródia da paródia, nova estética do deboche”: “Quando o avião deu a pane, eu já sabia tudinho, me Tarzan, you Jane, incendiando mundos neste matinho. Eu e minha gata rolando na relva, rolava de tudo, num covil de piratas pirados, perdidos na selva.”

Em São Paulo, Júlio mostrou seu rock para Guilherme Arantes, que adorou e musicou, na hora, o refrão que faltava (“Eu e minha gata...”) e aceitou ser o tecladista e arranjador da banda. Com Wander Taffo (guitarra) e Lee Marcucci (baixo), músicos de primeira linha do rock que tocavam com Rita Lee, o baterista Gigante Brasil e Guilherme nos teclados, Júlio fez a “premiere mundial” da Gang 90 e as Absurdettes no Paulicéia Desvairada. Ele era uma espécie de Kid Creole brasileiro e roqueiro, embora não fosse cantor e não tocasse nenhum instrumento, e suas Coconuts eram as Absurdettes: sua irmã Denise (que adotou o nome artístico de “Lonita Renaux”), minha namorada May (rebatizada por Júlio de “May East”), a ex-secretária/DJ Luíza, e a nova namorada de Júlio, a holandesa Alice “Pink Pank”. Alice chegou uma noite no Pauliceia com um bilhete de um amigo em comum de Londres para Júlio. Quando se apresentou, ele a olhou nos olhos, gostou do que viu, abriu os braços e exclamou: “Quero ser seu escravo!”. E, antes mesmo de ler o bilhete, abraçou-a e beijou-a na boca, longa e  apaixonadamente, foi correspondido e o namoro começou ali.Ao contrário das outras Absurdettes, de quem Júlio exigia, conceitualmente, desafinação absoluta e total não-musicalidade para

dar sentido ao nome, Alice sabia cantar: tinha participado em Londres de alguns backing-vocals do primeiro disco da nova banda irlandesa U2, que ninguém conhecia no Brasil. A Gang 90 seria o primeiro grupo contratado do meu recém-criado selo Hot, que seria distribuído pela Warner de André Midani. Com Leonardo Netto e Guilherme Arantes, numa longa noite frenética nos estúdios Vice-Versa, produzimos a gravação de “Perdidos na selva” e, por insistência de Júlio, acabei cantando nos backing-vocals junto com as Absurdettes. Com o nome artístico de Mielsen Notte, como ele colocou nos créditos, à minha revelia. Durante a gravação, um susto: pelo microfone da técnica, Guilherme comunicou ao estúdio que estava perdidamente apaixonado por uma Absurdette, mas que não diria por qual delas. As Absurdettes se olharam, eu e Júlio nos olhamos, olhamos para as nossas namoradas Alice e May, e como Denise era casada com Okky, ficou um certo mal parado no ar. Tentei disfarçar mas fiquei meio nervoso, ciumento e ameaçado, mas Júlio se divertia: não ligava mais para essas coisas. Só no final da gravação, estimulado por Júlio, Guilherme se entregou: era Luíza a sua paixão. Ufa! O namoro começou imediatamente e pouco depois eles se casavam e tinham o primeiro filho, Gabriel. O Pauliceia Desvairada era muito divertido no começo, mas as despesas e os problemas foram crescendo, as receitas diminuindo, o público era cada vez mais punk, não se ganhava dinheiro, e o melhor era fechar logo, sem decadência.

“Perdidos na selva” é classificada para o novo festival da TV Globo, o MPB-81, no Maracanãzinho. A Gang 90 vai a pleno vapor e depois de tantos ensaios, até as Absurdettes perderam a desafinação inicial, mas ganharam em graça e atitude. Júlio cresce como front-man e, para quem nunca tinha cantado, canta surpreendentemente bem. Naufraga toda a nova programação de Walter Clark para a Bandeirantes: depois de oito programas e por falta de audiência e de anunciantes, o “Mocidade independente” vai ao ar pela última vez no
dia 22 de agosto de 1981. No mesmo dia em que Glauber Rocha morria no Rio de Janeiro.

O velório de Glauber, no mesmo Parque Lage onde ele filmou Terra em transe e Joaquim Pedro de Andrade Macunaíma, parecia um grande momento épico de seus filmes. Cinema, música, teatro e política em transe: os que o amavam e o odiavam, os que ele amou e odiou, com intensidade, reconheciam seu gênio e choravam a perda monumental. A noite inteira, manhã adentro. O enterro saiu a pé pela Rua Jardim Botânico e caminhou mais de três quilômetros sob o sol até o Cemitério São João Batista, onde Glauber teve um funeral de herói. No dia seguinte, voando para Florianópolis para participar do show de encerramento de um festival de música da TV Catarinense, eu pensava em Glauber olhando as nuvens da janela do avião. Sempre fomos muito amigos, desde a estréia de Deus e o diabo na terra do sol no Rio de Janeiro, mas foi nos seus últimos anos que estivemos mais próximos: pouco mais que 400 metros, entre meu apartamento na Avenida Vieira Souto e o dele, na esquina da praia com Joaquim Nabuco, onde ele morava com a mulher Paula Gaetán, uma linda loura colombiana, e seus filhos Ava Iracema e Erik Aruak. Nos encontrávamos freqüentemente caminhando na calçada da praia e outras vezes ele me recebia em casa, de camisolões marroquinos ou pijamas, para longas conversas e diversos baseados.

Glauber foi para mim e para muitos mais que um amigo, uma espécie de “guru cultural”, assim como Vinícius de Moraes tinha sido para os jovens músicos e letristas de minha geração. Nos últimos anos, os mais sofridos de Glauber, à beira do abismo, ele dizia sofrer pelo Brasil, somatizando em seu corpo as dores e doenças do país. Sua pequena obra-prima, o curta Di Cavalcanti, é premiado em Cannes mas proibido judicialmente no Brasil pela família do pintor, que considerou a homenagem ofensiva. Aos 42 anos, pobre e doente, com seu último filme — A idade da Terra — fracassado e incompreensível, mudou-se para Portugal, onde adoeceu para a morte. Glauber não tinha saída: muitas vezes pensei, não que ele se mataria, mas que se deixaria morrer. “Não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura, gladiador defunto mas intacto, tanta violência mas tanta ternura.”

Os versos de Mário Faustino, ditos pelo poeta agonizante de Terra em transe, pareciam ter sido escritos para Glauber morto. Em Florianópolis, à noite, na praça em frente ao mar, 20 mil jovens assistem ao show de encerramento do festival, com transmissão ao vivo pela TV. Quando o apresentador Cacau Menezes me chamou ao palco, o público aplaudiu, agradeci e gritei o poema no microfone e depois disse: “A perda de Glauber Rocha é tão grande que eu não vou pedir para ele um minuto de silêncio. Vou pedir um minuto de... esporro total!!!!” O público explodiu, gritou e assobiou e urrou, glauberianamente. O general João Figueiredo, que havia prometido prender e arrebentar os que se opusessem à sua abertura política, vai levando aos trancos e barrancos o processo de redemocratização. Há mais liberdade e, entre
bombas e atentados, as forças políticas se reorganizam, a economia cresce, o país respira e produz. Os artistas vivem um momento de efervescência criativa.  



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